Também
nunca compreenderei. Um saber que flui e se esvai na autocontemplação e no
desprezo altivo, loquaz mas falacioso, pois, poderoso definidor das
trajectórias que impelem o mundo de turbilhão em que nos despenhamos, deita
constantemente mais achas na fogueira da nossa insanidade, em perseguição
imparável contra um homem que tentou erguer o país, e mantendo-se ambíguo e
matreiro na aceitação de um governo que está a destruir o país. Mas Alberto Gonçalves
não se deixa impressionar pelo banquete lauto com que nos mimoseia Pacheco
Pereira a cada passo com os seus escritos poderosamente impantes. Inteligente e
sensato, se usa o traço denegridor ou burlesco é bem no sentido de pretender
cortar cerce o mal que a nossa tolice de povo movido apenas pelo espectáculo do
ruído e da emoção vai permitindo que nos destrua. Por isso, estranha,
naturalmente, que o homem culto e desprezador do ignorante se alie a esse homem
ignorante, com a sua flauta encantatória conduzindo-o indefectivelmente para o mergulho de afogamento.
Uma tragédia portuguesa
OBSERVADOR, 8/4/2017
De
vez em quando, do alto da montanha de livros e merchandising partidário que
acolhe na Marmeleira (?), Pacheco Pereira olha para baixo e deprime-se. Voltou
a acontecer esta semana, na qual, em crónica no Público, o popular intelectual
lamenta o desprezo que, cito, “a escola, a universidade, a sociedade, a
comunicação – já para não falar das chamadas ‘redes sociais’ – e a política
hoje dão às humanidades e aos estudos clássicos”. Desencantado, Pacheco
Pereira atribui parte da culpa desta desgraceira ao governo PSD-CDS (cá
dentro) e ao sr. Trump (lá fora). Amargurado, Pacheco Pereira constata que
os jovens e os adultos de agora não fazem uma ideia sobre “Polifemo ou Salomão,
ou Judite ou o Bom Samaritano”, não suspeitam coisa nenhuma acerca da
“Odisseia, ou da Antologia Grega”, não sabem “quem era Argos ou Tifão”, nem
conhecem “Esparta e Atenas”, e “Sófocles e Tucídides”.
Como
careço dos pergaminhos de Pacheco Pereira, não duvidarei dos ilustrados e
remotos tempos em que jovens e adultos recitavam a Antologia Grega nas feiras e
nos mercados. O importante é ficar implícito que Pacheco Pereira domina
todos os temas acima, erudição que decerto exercita nas conversas em “off” com
o amigo Jorge Coelho – um evidente especialista em Calímaco e São Gregório de
Nazianzo. Por outro lado, fica explícito que tamanha sapiência não lhe serve de
muito, já que mesmo assim continua um encarniçado defensor da sofisticada gente
que manda no país.
Já
a gente que obedece constitui um enigma. Se é verdade que, nos cafés ou nas
paragens de autocarro, a populaça só esporadicamente troca palpites alusivos a
Plutarco, é igualmente verdade que a sua rudeza não a impede de
partilhar com Pacheco Pereira o gosto pela frente de esquerda que governa a
nação, sob o sorriso da oligarquia e a reverência da generalidade dos “media”.
Pelos vistos, frequentar os clássicos ou ignorar a respectiva existência produz
resultados idênticos.
A
julgar pelas sondagens, os portugueses andam satisfeitíssimos com quase tudo.
E, empurrados pela confiança do PR e a tranquilidade do PM, acreditam em tudo.
Acreditam que a história do Montepio vai correr bem. Acreditam que o golpe do
Novo Banco correrá melhor. Acreditam que há alternativa à “austeridade”.
Acreditam que a satisfação das clientelas não lhes custará um cêntimo.
Acreditam que o “recorde” do défice é para levar a sério. Acreditam que o
recorde da dívida não é para levar a sério. Acreditam que Pedro Passos Coelho e
o “estrangeiro” conspiram contra o nosso sucesso. Acreditam no nosso sucesso.
Acreditam em consumados mentirosos. Acreditam que gregos são os do Benfica e o
sr. Varoufakis.
Descontada
a última convicção, os portugueses acreditam de facto na visão alucinada em que
Pacheco Pereira, por conveniência, finge acreditar. É aqui, e apenas aqui, que
se nota a diferença propiciada pela intimidade com os clássicos. Nas cabecinhas
erradas, as referências certas inspiram um curioso apreço pela dissimulação. Ou
seja, os ignorantes são enganados; os instruídos colaboram no engano. Pacheco
Pereira tenta provar a falta de sabedoria na sociedade e prova abundantemente a
falta, também perigosa, de vergonha na cara.
No
meio disto, a eventual boa notícia é que o rumo que o país adoptou encurta
diariamente a distância das massas a Atenas. À medida que nos aproximamos de
nova bancarrota e de novo resgate (ou – Deus nos valha – de resgate nenhum),
a familiaridade com os gregos arrisca-se a aumentar a olhos vistos. E quem
diz os gregos diz, com um pedacinho mais de azar e um pedacinho menos de
“Europa”, os venezuelanos. Para quê ler as tragédias clássicas se
podemos protagonizar uma?
Nota de rodapé
Regressado
de férias em terras do tio Trump, confesso-me um bocadinho a leste (ou, para
ser preciso, a oeste) das novidades da pátria. O único assunto do género a
perturbar-me o descanso chegou por via de um telefonema, no qual a minha mãe me
informou apavorada de que o prof. Marcelo estava num desfile de moda a tecer
comentários acerca das “tendências” de vestuário da próxima estação. Ambos, o
telefonema e os comentários, eram redundantes: é sabido que o prof. Marcelo
irrompe nos mais extraordinários lugares a aliviar-se dos mais extraordinários
palpites; e é sabido que a tendência que nos ficaria a matar seria a clássica
camisa-de-forças.
Na
dramática ausência desse traje, continuamos a julgar-nos no melhor dos
mundos: o nosso. A vida avança por prados verdejantes e, enquanto não
surgir o fatal precipício, tudo está bem. Tudo? Não exageremos. Mal aterrei em
Pedras Rubras, o joelho de um sujeito descolou a caminho do nariz de outro
e, quase por desfastio, este abençoado país descobriu alguma coisa com que se
afligir. A subjugação geral a uma aliança de leninistas e oportunistas
não perturba ninguém. O particular apêndice nasal de um infeliz, operado de
urgência, lançou a indignação pela semana fora.
Porquê?
Porque o golpe de luta-livre aconteceu num campo de futebol, e porque chegámos
a um ponto em que apenas o que acontece aí tem relevância. Falar em
anestesia é dizer pouco: a atenção das gentes esgota-se na bola e nas figuras
que, literal ou figurativamente, correm atrás dela. Um dia, Portugal estoura e,
entretidas com o “Mais Bastidores”, as pessoas nem reparam. Talvez reparem nas
consequências. Ou nem isso, que depois vem o “Dia Seguinte”.
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