Um longo artigo de José Manuel Fernandes que põe a nu
as mazelas de um povo que, a preto e branco, tem não esse passado salazarista
que é sempre de bom tom referir, mas um passado recuado e progressivo, que não
houve meio de desemperrar da sordidez crassa de uma educação fechada ao
progresso e toda ela centrada nas manigâncias silogísticas de uma cultura
dogmática de orientação religiosa. O pobre
do Salazar é que apanha pela tabela, mas esquece-se de que ele teve que erguer
o país do atoleiro maior de uma dívida externa e sem recurso ao exterior. E
construiu para o povo - casas, escolas, hospitais e pontes - e até fez uma
Exposição do Mundo Português com dinheiro próprio, contrariamente à nossa outra
de 98, Universal, mas com dinheiro alheio, «Sempre uma coisa defronte
da outra Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma
coisa nem outra….»
Mas angústia sim.
Pelas gerações que aí vêm, em condições piores do que as que vivemos antes,
como bem descreve José Manuel Fernandes. Angústia que um Estado Providência (que
felizmente existe para ir colmatando o que retirou aos cidadãos, num país onde
é escassa a produção), mais realça, talvez porque seja reduzida a educação e
farta a trafulhice nesse país. Sim, agora a televisão e o cinema são a cores, mas
a fartura de imagens, de par com a destruição de valores que transformam o
mundo em manicómio, tornam tudo um pesadelo, - que, no nosso caso, ainda é
amplamente realçado pelas expressões trágicas de um Jerónimo de Sousa ou as de graciosidade
meiga das donzelas do BE, a exigirem que sejam contados os anos de trabalho
menineiro do nosso povo, (que já no tempo da ditadura proibia o trabalho
infantil), e que fazem finca-pé nisso, a arrasar mais o erário, indiferentes a
uma dívida monstruosa que para esses não é dívida porque se trata de
solidariedade entre os povos e mal agradecida pelo nosso povo e os seus defensores
generosamente sequiosos, como é seu fadário.
Páginas assustadas as
de José Manuel Fernandes. Com fartas razões para isso.
A angústia dos 60 anos
CONSERVADOR, 12/4/2017
Lá
aconteceu: já sou "sexagenário". Mas não é isso que me custa.
Custa-me muito mais fazer contas ao Portugal que os da minha geração não
deixaram, nem estão a deixar, aos seus filhos e aos seus netos
Fiz
60 anos.
Costumo
brincar com os amigos – alguns mais adiantados que eu, outros quase lá – que
ninguém gosta de ser sexagenário. É aquela idade em que, se formos atropelados,
os jornais escreverão “sexagenário atropelado”. Nunca escrevem “septuagenário”
ou “octogenário”, mas há esta fatalidade de ser sexagenário, uma idade em que
antes já se era “velho” mas hoje ainda se é “novo”, ou pelo menos assim se
pensa.
Não
sei por isso se foi um aniversário feliz. Nunca tive problemas por ser mais
velho, ou mais novo, mas aos 60 anos há algo que é para mim cada vez mais
evidente: a minha geração não deixou, não está a deixar, aos seus filhos
(quando os tiveram) e aos seus netos (os que já os têm) o país que eles
mereciam.
Nestas
alturas apetece olhar para trás, pensar um pouco no que vivi e no que este país
viveu — e escolheu.
O
país em que nasci não tem nada a ver com o Portugal de hoje. Nada mesmo. Não
era só o país a preto e branco de um tempo bisonho sem liberdade – era também
um país onde a pobreza era uma constante, o atraso uma fatalidade e o atavismo
uma condição natural. É bom recordá-lo, até para não nos deixarmos deslumbrar
pelo imenso caminho percorrido.
O
tempo que vivi foi excepcional. Tinha 12 anos quando o homem pousou na Lua, 17
acabadinhos de fazer quando aconteceu o 25 de Abril, 32 quando o Muro de Berlim
caiu. Optimismo tecnológico, optimismo histórico. E muitas oportunidades
para viver a História naqueles momentos em que ela se escreve com H grande,
quando o tempo parece que acelera e o destino está a nosso favor.
Ben
Bradlee, que era director do Washington Post no tempo do Watergate, escreveu
umas memórias dos seus muitos anos como jornalista a que chamou “A Good Life”, e eu também posso dizer, mantidas
as devidas distâncias, que a minha profissão me proporcionou uma vida cheia,
vivida com a felicidade de quem faz aquilo de que gosta. Não me queixo, nunca me
queixei, pelo contrário.
Contudo…
Contudo
a verdade é que olho à minha volta e não gosto de demasiadas coisas que vejo.
Sobretudo não gosto desta sensação de que a minha geração teve oportunidades
que as próximas gerações não terão – porque não lhas deixamos.
Eu
sei – sei muito bem – que neste meu país os mais velhos trabalharam muito,
esforçaram-se imenso, e que para a maioria a recompensa é bem escassa: em 2013,
último ano nas estatísticas (Pordata), 78,6% das pensões do
regime geral da Segurança Social eram inferiores ao ordenado mínimo. Quase
inacreditável de miserável, mesmo sabendo que muitos pensionistas acumulam mais
de uma pensão.
Mas
isso não me impede de reconhecer que, ao mesmo tempo, este país se foi
gradualmente tornando cada vez mais complicado para os mais novos. E que isso
não era inevitável.
A
riqueza por habitante nos dias da minha vida foi multiplicada por cinco, ou
mais exactamente por 4,8, se considerar os PIB per capita em 1960 e em 2015
(Pordata). O problema é que este número, que podia mostrar uma história de
sucesso, esconde uma de insucesso: todo esse aumento da riqueza aconteceu até
2001, ano em que a riqueza por habitante era só marginalmente inferior à de
2015. De então para cá temos estado estagnados. Não foram apenas quatro anos de
crise — foi uma década e meia de anemia aguda.
Este
falhanço tem imensas implicações para o futuro dos meus filhos e dos meus netos
— de todos os que têm menos de 35, 40 anos. Em 2001, o tal ano em que éramos
mais ou menos tão ricos como somos hoje, as despesas da segurança social
consumiam 10,2 do PIB. Em 2014 consumiram 21,7%. O que é absolutamente
natural: quando eu nasci não existia em Portugal Estado Providência;
enquanto eu cresci esse Estado Providência foi sendo alargado e, a cada ano que
passa, abarca mais gente por uma boa razão (vivemos muito mais anos) e por uma
má razão (garante demasiado os “direitos adquiridos” de uma fracção dos mais
velhos e desprotege em demasia os direitos futuros dos mais novos). Mas
sendo natural, é assustador: o rolo compressor das despesas sociais pesará cada
vez mais sobre a tal economia que não cresce e uma população activa cada vez
mais pequena.
Sim,
porque há também o problema da demografia. E sim, é verdade: foi na minha
geração que os portugueses começaram a ter menos filhos do que os
necessários para manter o equilíbrio demográfico. O primeiro ano em que
isso aconteceu foi 1982, tinha eu 25 anos. A situação só tem piorado
desde então. O que significa que, no futuro, haverá cada vez menos
trabalhadores a sustentarem cada vez mais reformados – e provavelmente com os
mais novos a terem ainda menos filhos, porque também têm menos oportunidades.
Ora
sucede que as oportunidades que tivemos nestas décadas dificilmente se
repetirão. Nasci no mesmo ano em que nasceu a União Europeia, pouco antes de,
ao lado dela, ter nascido também a EFTA, ou Associação Europeia de Livre
Comércio, a que Portugal aderiu, começando a abrir-se ao exterior e permitindo
o período de mais rápido crescimento económico da nossa história, no final da
década de 1960 e início da de 1970. Assisti, e vivi, a adesão à
União Europeia, que proporcionou o segundo período de rápida expansão da
economia. Não sei se mais alguma vez conseguiremos algo de semelhante. Mas
sei que aquilo que conseguimos com esses dois choques externos que obrigaram a
nossa economia a abrir-se nunca mais repetimos quando deixámos que a nossa
economia se habituasse ao conforto da nossa pequenez, dos nossos amparos
públicos, dos nossos “empenhos” e dos nossos subsídios.
O
que mais me aflige foi ver como aqueles que melhor tiraram partido desses
anos excepcionais foram os que trataram sobretudo de proteger os seus
“direitos”, blindar as suas regalias e, sempre que as coisas corriam mal,
gritarem “a culpa não foi minha”, essa frase tão portuguesa que Alexandre
O’Neill um dia a escolheu para definir aquilo que somos: “Em
Portugal nunca deixamos cair nada; são os objectos que se escapam das nossas mãos”. Desta vez
escapou-se a possibilidade de sermos um país europeu, mesmo.
Dois
bons exemplos de como tratámos de nós e pouco cuidámos dos que vêm a seguir é o
que se passa na Segurança Social e no mercado de trabalho.
No
sistema de pensões os dados variam conforme o optimismo ou o pessimismo dos
diferentes cenários, mas se hoje um trabalhador se reforma com uma pensão que,
em média, se aproxima de 60% do seu último salário (há profissões onde é bem
melhor, nomeadamente na administração pública), em 2025 essa taxa de
substituição deverá ter caído para 45% e lá para 2060 para apenas 30%. Isto
para trabalhadores que terão de reformar-se bem mais tarde.
Quanto
ao mercado de trabalho, este é tragicamente dual: uns têm muitos
direitos e garantias, os outros quase nada. Em Portugal quase sempre dominou, e ainda domina, a cultura de que não
há profissões, há posições. Como já notei em tempos, quem as ocupa chama-lhes suas, e
barra o caminho aos competidores. A desigualdade é gritante. Todos
conhecemos os números do desemprego, que penaliza sempre os mais novos –
conhecemos menos os números que nos dizem como estes são penalizados no mercado
de trabalho pela tal dualidade entre quem tem todos os direitos e garantias de
um contrato sem termo e quem apenas tem um contrato a prazo. Em média,
em 2015, 22% dos contratos de trabalho eram a prazo, uma das percentagens mais
elevadas da Europa, uma realidade que é o contraponto de um dos mercados de
trabalho mais rígidos, mesmo depois de todas as “reformas”. Mas entre os que
tinham de 25 a 29 anos essa percentagem subia para 43%. Quase o dobro. E para
67% no intervalo dos 15 aos 24 anos (Livro Verde sobre as Relações Laborais 2016).
Todos são iguais, mas uns, ao que parece, são mais iguais do que outros.
A
forma como nos organizámos como sociedade, as escolhas políticas que
referendámos, não se limitaram a criar essa desigualdade: também atiraram para
o futuro com o pior dos legados, o da dívida. Sim, a dívida.
E as dívidas públicas, como sabemos desde sempre, são impostos que escolhemos
não pagar hoje e deixar para que outros paguem amanhã. Podíamos fazê-lo em nome
de mais crescimento, mas fizemo-lo com menos crescimento. Fizemo-lo mesmo com
nenhum crescimento. Para o futuro só ficou o encargo e os juros.
Há
mais de seis anos, ainda não tinha chegado a troika, quando os Deolinda
levantaram os Coliseus de Lisboa e do Porto com a sua canção sobre “a geração
sem remuneração” escrevi, reconheci, que se a minha geração viveu e vive muito melhor do que a dos meus
pais, que se eles já viveram melhor do que os pais deles, quando olhava para as
gerações que vinham a seguir sentia, sabia, que já não iria ser assim.
Uma
parte do que está a acontecer ultrapassa Portugal. A vida dos “millenials” não
parece fácil em todo o mundo desenvolvido, muito porque as nossas economias
avançadas deixaram de crescer ao ritmo de outros tempos. E, tal como nós,
envelheceram. Os estados providência modernos contavam com ritmos de crescimento
mais elevados e uma demografia mais favorável.
Mas
outra parte deriva de escolhas que fizemos. Que a minha geração fez, por muito
que isso custe a admitir. Por isso não me apanham a repetir “não fui eu, não
tive culpa”. Afinal de contas nasci em 1957, o mesmo ano de José Sócrates. Ou
de Marques Mendes. Ou de António Vitorino. Ou ainda de Rui Rio.
(E Durão Barroso e Pedro Santana Lopes são de 1956).
Seria
fácil culpá-los apenas a eles, aos “políticos”, até porque houve muita
irresponsabilidade, até porque houve muito dolo e corrupção (ou se houve). Há
mesmo figurões a que nunca perdoarei. Uns foram políticos, outros banqueiros,
outros espertalhaços que souberam extrair da nossa economia riquezas e
privilégios e, no fim, ainda se estão a rir. Mas enganar-me-ia se ficasse
apenas por essa recriminação.
Quando
olhamos para o mundo à nossa volta, vemos sociedades abertas, onde há
oportunidades, risco, inovação e criação de riqueza. E vemos outras onde os
poderes se empenham sobretudo em autoperpetuar-se, sociedades que em vez de
serem criativas e competitivas, são “extractivas”. A diferença não está nos
povos, estás nas instituições que estes souberam criar, como bem explicam Daron
Acemoglu e James A. Robinson em Porque Falham as Nações – e foi aí que a minha
geração teve a sua grande oportunidade e o seu grande falhanço.
A revolução criou a oportunidade de reconstruir o Estado, mas
fizemo-lo no modo clientelar e seguindo regras estatistas e centralistas. A
integração europeia permitiu abrir a economia, mas passámos o tempo a proteger
os instalados até que o país rebentou e, de repente,
vimos tudo (ou quase) ir parar a mãos estrangeiras. Demorámos a criar autoridades independentes, e quando finalmente o
fizemos começámos logo a atacá-las e a miná-las (como
hoje sucede com um descaramento nunca visto, falemos do Conselho de Finanças
Públicas ou da Entidade Reguladora da Comunicação Social).
Querem
um boa demonstração de como até parece que não sabemos viver de outra forma?
Vou dar um exemplo pessoal, algo que me faz imensa impressão. Acontece sempre
que alguém me bate nas costas e elogia o que considera ser a minha “coragem”.
Coragem? Coragem por escrever o que penso, e sempre o ter feito, acertando e
errando? Coragem? Afinal não vivemos num país livre? Coragem foi necessária
noutros tempos, naqueles em que ainda cheguei a andar a fugir da polícia ou a
esconder-me para distribuir propaganda ilegal. Hoje não é preciso ter coragem
para se escrever o que se pensa – mesmo que às vezes se possa estar naquela
posição de “minoria de um”, para usar uma expressão de George Orwell e,
também, Margaret Thatcher (“a minority of one”) que aprecio de forma especial.
É
verdade, não me esqueci que a última palavra dos Lusíadas é “inveja” e que
muitos gostam de invocar essa marca da cultura nacional (que não iludo) como
sendo a razão de mais uma vez termos falhado. Mas agora que já tenho 60 anos e tive a felicidade de uma vida
cheia, devo dizer que acho bem pior aquele hábito de estar sempre a repetir
“não tenho culpa”. Nisso o diagnóstico de Alexandre O’Neill
é porventura bem mais actual e pertinente do que o de Camões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário