Um
artigo bombástico, na sua escrita sem exaltação, antes com objectividade historiográfica,
este de Vasco Pulido Valente sobre a visita do Papa Francisco a Fátima e os
interesses que movem uns e outros - os da Igreja e do Vaticano e os do interesse
português, indiferente ou ignorante dos rumores de fora. De toda a maneira,
pretexto para a transcrição de um extracto da obra de VPV «A República Velha - 1910-1917», publicada em
2010 pela Alêtheia Editores, sobre o fenómeno “Fátima”.
Quanto à entrevista de Pedro Passos Coelho é provável
que tenha razão, VPV, sobre a compostura de um verdadeiro “chefe da
oposição” numa entrevista conduzida por «dois comentadores
que se imaginam muito sabidos e muito espertos». A mim, destituída que
sou de pruridos de altivez aristocrática, e com a consequente ignorância plebeia
dos convencionalismos sociais, pareceu-me que Pedro Passos Coelho esteve à
altura da esperteza e sabichice dos entrevistadores, figura bem viva e
respondendo ao que se lhe pediu, com o conhecimento que a experiência da governação
anterior lhe fornecera e a nobreza e calma suficientes para pôr no seu lugar a
demasiada presteza no atafulhar das perguntas, sem verdadeiro interesse pelas
respostas, dos entrevistadores cumpridores do seu papel de formuladores de
questões em exibicionismo pessoal pouco criterioso. Se Pedro Passos Coelho
tivesse mostrado hesitação ou fuga às questões, outros motivos haveria para ser
atacado, como mostrou firmeza e pundonor, deveria ter sido menos facundo e mais
senhor da sua própria importância, sem se rebaixar à plebe com as suas
explicitações. Também não há pachorra!
Diário de Vasco Pulido Valente
Passos Coelho, o Papa
e Fátima
OBSERVADOR, 9/4/2017
… hopes expire of a
low dishonest decade… W. H.
Auden
A entrevista de Pedro Passos Coelho –
A entrevista à SIC de Pedro Passos Coelho foi um desapontamento. Até
metade, parecia uma conversa com um qualquer ministro de um hipotético
“governo-sombra”. O chefe da oposição não pode, ou não devia, discutir de
igual para igual as minúcias da política económica e financeira de António
Costa com dois comentadores que se imaginam muito sabidos e muito
espertos. Como o presidente do PSD não devia especular em público sobre
quem, segundo a intriga, o pretende substituir ou, pior ainda, sobre o que fará
ou não fará se o partido perder as eleições locais. O papel que cabe a
Passos Coelho é mostrar um destino melhor a todo o país. E esse
destino não se esgota nas querelas sobre a gestão corrente do governo, para que
bastam os senhores deputados, que são 89 e que, fora uns votos e umas palmas,
não têm servido para nada. A Passos cabe responder à pergunta: ainda
podemos viver civilizada e democraticamente? Ainda podemos reformar o Estado
central e a administração local como ela hoje existe; reformar a justiça e o
ensino; e defender as pouquíssimas instituições independentes que nos restam?
Disto depende tudo. Há talvez no PSD dúzia e meia de pessoas capazes de criar
uma maioria de direita. Só Passos não a usa.
A visita do Papa a Fátima – Este
passeio tem provocado grande excitação na Igreja e mesmo entre ateus ou
indiferentes, que acham a presença de Francisco em Fátima óptima para
promover Portugal. Mas, por outro lado, levanta duas questões muito
interessantes a quem conserva alguns neurónios na cabeça. A primeira
questão é a da burocracia da fé tal como a descreve a irmã Ângela Coelho numa entrevista quase pornográfica. Será de facto
assim que se fabricam santos e beatos? A segunda questão é da contestação do
Papa por um número considerável de cardeais que gostariam, e já em privado não
escondem, que ele se demitisse. Porquê? Porque uma nota de pé de
página da encíclica Amoris Laetitia parece permitir a interpretação de que os
divorciados podem comungar. Este ponto essencial do cristianismo, que assenta
em Lucas, Marcos e Mateus, não admite discussão. Mas vários
cardeais o discutem e alguns, na Alemanha, até aceitaram que os divorciados
comungassem, abrindo assim um cisma técnico na Igreja Romana. De qualquer
maneira, o mal-estar no Vaticano aumenta e, segundo certos rumores, o
secretário de Estado, Pietro Parolin, dirige uma fronda contra Francisco,
enquanto Francisco deixa crescer as dúvidas e a tensão no catolicismo
universal. Aqui, evidentemente, não se falou do assunto.
Anexo: Um fragmento de “A república velha”
Fátima – Ao país inteiro parecia que a hora do apocalipse tinha
chegado, e a ninguém mais do que aos católicos. Sob pretexto de que a Igreja insistia em manter
comunidades religiosas (no caso, de freiras), seis bispos foram expulsos das
suas dioceses só em 1917: em Fevereiro, os bispos de Portalegre e Bragança; em
Julho, o do Porto; em Agosto, o cardeal-patriarca de Lisboa; em Dezembro, os
arcebispos de Braga e de Évora. Sem a revolução de Sidónio Paes, todos os
bispos haveriam sido eventualmente desterrados, porque a representação que dera
origem ao desterro dos dois últimos, os de Braga e Évora, estava assinada por
todos.
A guerra e o exacerbamento da ditadura democrática
intensificaram também, como não podia deixar de ser, as perseguições ao clero
menor. A Lei de Separação
oferecia oportunidade a infinitos tormentos. O poder civil, frequentemente
democrático, ou pelo menos sob a intimidação dos democráticos, proibia ou
autorizava a seu arbítrio as manifestações exteriores da Igreja. À medida que os desastres se acumulavam, os
padres e os católicos iam pagando o desespero dos “bons republicanos”. Eles
eram os culpados por excelência e as vítimas predestinadas de tudo o que
corresse mal e quase tudo corria mal aos putativos obreiros do
engrandecimento pátrio. Os portugueses não gostavam da guerra?
Influência e perfídia dos padres, mancomunados com os talassas. O povo
revoltava-se nas cidades, porque não tinha pão, e na província, porque lhe
requisitavam os cereais? Manobras do clericalismo. Os preços subiam? Intrigas dos
jesuítas. Portugal parecia não estimar o dr. Afonso Costa de acordo com os seus
muitos méritos? Monomania religiosa. As represálias vinham a
seguir: padres presos porque tocaram sinos; procissões interrompidas porque o
bispo se atrevera a pôr vestes talares; igrejas fechadas porque abriam a porta
a mulheres e crianças durante o dia, ou porque o pároco local dissera missa por
um “conspirador”, ou porque oficiais de uniforme haviam ajudado à missa (papel
delicadamente descrito como “trazer os panos”), ou porque o sacristão
expendera na mercearia da aldeia “opiniões defectistas e germanófilas”. Sobre
isto, a cada incidente, a imprensa local e nacional convocava o seu velho
repertório de insultos e torpezas: o padre concupiscente que “cevava os
instintos” nas virgens e nas mulheres casadas, o padre homossexual, o padre
comilão, o padre ladrão, as beatas talassas, as crianças envenenadas pelo
“fanatismo”, os aldeões que temiam a Deus e por aí fora na mesma veia.
Em Agosto os bispos reagiram atacando brutalmente a
República: “Vexados,
perseguidos, punidos e, como complemento, caluniados, eis a sorte dos católicos
neste país! A República Portuguesa é que se cobre de glória com tais actos de
força, quando deixa impunes, segundo a voz corrente, malversões, peculatos,
crimes gravíssimos de toda a espécie; quando lhe falta energia para pôr cobro à
desorganização dos serviços, à ganância dos especuladores, à ambição dos
incompetentes, à desordem social, quase anarquia declarada, que vai campeando e
crescendo dia a dia.” Esta pastoral já não era, nem procurava ser, um
documento de orientação religiosa dos fiéis. Perante a óbvia fraqueza do
Partido Democrático e, ao mesmo tempo, a sua intolerável violência, a Igreja
tomava, sem vacilar, a cabeça da oposição política. Os republicanos
moderados estavam desfeitos e, aparentemente, resignados. O movimento
monárquico oficial tinha recebido ordem de Londres para se abster enquanto a
guerra durasse. A Igreja Católica ocupou o vazio.
Cem anos antes, em 1822, a causa realista fora
reanimada por um milagre. A Virgem aparecera em Carnaxide para declarar que
Portugal sobreviveria à impiedade maçónica. Sob o patrocínio de D. Carlota Joaquina, grandes
peregrinações se fizeram aos locais sagrados, onde Deus garantira a dízima, os
bens dos conventos e a perenidade das classes dominantes. Povo e nobreza
associaram-se nessa devoção, destinada a exorcizar “a pestilenta cáfila dos
pedreiros” e a promover o ódio às Cortes, onde eles “campeavam”. Quando a
insurreição armada começou uns meses depois, trazia já consigo uma sobrenatural
legitimidade.
Em 1915 e 1916 os pastorinhos, Lúcia de Jesus Santos,
de 8 anos, e os irmãos, Jacinta e Francisco, de 7 e 5 anos, viram oito vezes,
em vários sítios da freguesia de Fátima, um anjo, que declarou ser o anjo de
Portugal. Ao princípio, o
anjo não era muito nítido e não dizia nada. Pouco a pouco, porém, foi-se
definindo e explicando. De acordo com a ortodoxia, estas visitas prepararam os
acontecimentos de mais consequência que se seguiram. Entre Maio e
Outubro de 1917 a Virgem apareceu quatro vezes a Lúcia, Jacinta e Francisco
(agora, respectivamente com 10, 9 e 7 anos), sempre no dia 13, sempre à mesma
hora e sempre na Cova da Iria, excepto em Agosto, por razões que adiante se
dirão. As relações das crianças com a Virgem variavam: Lúcia via,
ouvia e falava, Jacinta via e ouvia, mas não falava; Francisco
via, sem ouvir nem falar. Lúcia e Jacinta receberam a chamada mensagem,
uma série de trivialidades evangélicas, com apenas duas alusões à realidade,
ambas sobre assuntos correntes. Alegadamente, a Virgem comunicou que a
Segunda Guerra Mundial seria “horrível”, uma ideia muito compreensível, quando
a primeira mostrava diariamente o seu horror, e preveniu também que a Rússia
revolucionária se preparava para subverter o mundo, coisa que os jornais
publicavam na primeira página, dia sim, dia não, desde Fevereiro. As
profecias, evidentemente corrigidas por quem de direito, resumiam as
preocupações e a angústia do conservadorismo português da época. Embora,
sem dúvida, além da capacidade das crianças miraculadas (umas das quais
Francisco, em substância passiva, e a outra, Jacinta, uma testemunha assaz
suspeita), reflectissem perfeitamente as opiniões e os sentimentos do padre
médio, esmagado pelo triunfo terreno do mal, tremendo com a perspectiva
de novas catástrofes e sonhando com a eventual conversão dos pecadores. Que
Deus partilhasse as aflições dos inimigos da República era coisa insusceptível
de espantar o clero português em 1917.
As aparições da Virgem foram precedidas e acompanhadas
pelo que um perito descreve como “singularidades astronómicas e atmosféricas”. Destas singularidades, a mais famosa consistiu
no “milagre do Sol”. Lúcia pedira à Virgem que fizesse um
milagre, “para todos acreditarem que Vossemecê apareceu”. A Virgem não só
anuiu, mas marcou data, hora e lugar. Na altura própria, e perante 100 000
pessoas, o Sol “dançou”, tendo alguns dos presentes visto de facto o Sol dançar
e outros achado que o Sol não dançara.
À primeira aparição não assistiu ninguém. À segunda
assistiram 60 vizinhos curiosos. Para a terceira, no entanto, já vieram 5 000
peregrinos e, para a última, como se sabe, 100 000. Não se conhece o mecanismo pelo qual se passou de
60 a 100 000 pessoas, ainda que nele esteja o verdadeiro segredo de
Fátima. A simples publicidade dos jornais não bastava com certeza nesse
agitado ano de 1917. A guerra, os assaltos, as greves, os tiros e as bombas, se
predispunham o espírito para uma intervenção divina, também o distraíam. Sucede
que, por acaso ou desígnio, os milagres de Fátima foram muito bem organizados.
A repetição periódica das aparições e a pontualidade da Virgem permitiram que,
de mês em mês, ao longo de seis meses, o caso se fosse tornando conhecido e a
expectativa aumentasse. Para os 100 000 espectadores de Outubro não se
tratava já de crer, ou não, que houvera milagres, mas de verificar se havia (e,
naturalmente, bom número deles ficou convencido). Acresce que em Agosto as
autoridades republicanas, com a exaltada estupidez do seu programático ateísmo,
deram à campanha uma ajuda decisiva. Para a aparição de 13 de Agosto tinham
vindo 5 000 pessoas dos concelhos limítrofes. O administrador do concelho de
Vila Nova de Ourém resolveu pôr ponto final às manobras dos “inimigos da Pátria
e da República”. A Virgem andava desde Junho a prometer “acabar com a guerra”,
se os portugueses deixassem de “ofender Nosso Senhor”. Em 1917 isto era
um convite mais do que explícito à liquidação dos democráticos e o Sr. Oliveira
Santos, sendo representante do governo, teve a ideia notável de prender as
criancinhas, a fim de impedir apelos subversivos e provar que em Portugal o
Omnipotente obedecia às autoridades. A Virgem tencionava aparecer aos pastores
na Cova da Iria a uma hora certa de 13 de Agosto? Muito bem: a essa hora os
pastorinhos estariam na administração do concelho e a Virgem, se quisesse, que
aparecesse às ervas. Não é difícil imaginar o contentamento de um espírito
forte com tão subtil estratagema. Infelizmente, a Virgem foi apenas obrigada
a esperar uns dias e a mudar de sítio e, a 19, em Valinhos, continuou a série
das suas provocações à República, com a redobrada popularidade da perseguição.
Não vale a pena medir a parte espontânea e a parte
simulada dos milagres. O pároco local garantiu a ocorrência de “factos
extraordinários” e falou imediatamente em “obra de Deus”. A partir de Junho, ou
seja, da segunda manifestação da Virgem, os três pastores passaram a ser
rodeados por dezenas de padres, de cuja vigilância nunca mais saíram em
vida. O clero local e, depois, de todo o país colaborou activamente nas
primeiras peregrinações, que, pela própria natureza das coisas, eram
simultaneamente um protesto contra a guerra e contra a República. Ao começo, a
hierarquia manteve uma distância prudente, como se costuma dizer. O que
significa que, ajudando e permitindo, só se comprometeu quando a reputação de
Fátima estava estabelecida e o seu valor como símbolo político confirmado. Produto
do ano mais difícil para a Igreja portuguesa moderna, Fátima foi o fenómeno de
um tempo em que “o Inimigo triunfava” e “o Leão rugia”.
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