Nela, José Pacheco Pereira demonstra, retrata e
condena. Valeria a pena tomar nota e acabar de vez com o espectáculo desempenhado
por um homem, de braço dado com o seu acólito, bem combinados entre si, nas
trapaças indesvendáveis, acarinhados, a espaços, pelas televisões, que trazem à
ribalta o seu desplante impunível, num processo interminável, feito de arranques
e paragens e mais espectáculo intercalado. Um espectáculo triste, tal como
todos os dos diversos casos que por aí vão brotando, na insaciabilidade dos
média, a quem o escândalo faz render mais dinheiro mas não corrige os costumes,
antes os enfraquece, pela imitação que propõe:
Impedir abusos, defender direitos, liberdades e
garantias é connosco e não com Sócrates
Temo
mais do que um culpado que escape uma justiça persecutória que possa ser
motivada politicamente.
18
de Março de 2017
Desculpem
este longo título que é intencionalmente programático, mas tinha de ser. Toda a
gente sabe que em matérias de críticas a José Sócrates, político, deputado,
ministro, primeiro-ministro, cidadão público, não tenho lições a receber de
ninguém. De há muito me apercebi que havia algo de muito errado na sua
actuação pública, mesmo naquela que não era susceptível de constituir crime.
Desde a história das marquises, passando pelas histórias das ETAR, do
Freeport, do currículo académico, das rasuras na ficha biográfica de deputado,
do contrato com Figo e muito mais, era-me factualmente evidente que este
homem era capaz de tudo, embora eu não soubesse da dimensão do tudo. Como
já referi, a ficha biográfica de deputado rasurada em fotocópia foi para mim
a epifania, porque eu sabia bem como as coisas funcionavam na Assembleia e tudo
aquilo era tão completamente implausível que tinha de haver, numa expressão
plebeia, marosca.
Mais
tarde, na comissão de inquérito parlamentar sobre as interferências de
Sócrates na liberdade de expressão, através da tentativa de usar a PT para
comprar a TVI com o objectivo de calar as vozes que lhe eram incómodas, no
quadro de outros abusos do poder que levaram os magistrados de Aveiro a
acusá-lo, eu pude ter em primeira mão acesso ao modo como uma parte importante
da elite do poder económico e político mentia com a maior displicência e desaforo
para proteger Sócrates. A maioria deles está agora indiciada no mesmo
processo da Operação Marquês, o que não me surpreende de todo.
Depois,
há um julgamento que qualquer pessoa pode fazer a partir das explicações
absurdas que Sócrates deu e dá sobre o seu actual processo, que insultam
de tal maneira a inteligência e o bom senso, que são ofensivas para qualquer
pessoa. Ele quer-nos convencer que tinha com um amigo, cujos negócios
dependiam em muito do acesso ao poder político, uma espécie de contrato para o
“pôr por conta”. Esse “pôr por conta” não tinha contabilidade, nem
limites, fluindo centenas de milhares de euros por todo o lado, uma parte em
numerário, transportado por um motorista, porque, dizia Sócrates, desconfiava
dos bancos. Vá contar essa a outro.
Sócrates
hoje está sozinho no seu labirinto. A direita que o louvou como o
“social-democrata” do PS, como aquele que tinha “roubado” o programa ao PSD,
que andou ali a fazer-lhe a corte nos interesses e na política, agora,
certamente por complexo de culpa, vai lá apedrejá-lo como se nada tivesse que
ver com o homem. Mais, em vários momentos cruciais, protegeu-o de acusações
muito semelhantes àquelas de que hoje lhe faz o Ministério Público.
Na
comissão de inquérito parlamentar, por cuja existência pugnei bastante sozinho,
o PSD indicou como seu porta-voz Agostinho Branquinho, que depois de assistir à
inquirição dos responsáveis da Ongoing, envolvidos na trama de Sócrates, acabou
por ir para lá trabalhar como assalariado. Mas a verdade, é que quando se
tratou de chegar às conclusões do inquérito, por uma intervenção pessoal de
Branquinho, Miguel Relvas e Passos Coelho, travaram tudo o que incriminava
Sócrates, “porque não era politicamente conveniente” e era “um ataque pessoal”.
Repito o que já escrevi há muitos anos sobre Sócrates e as cumplicidades do
PSD: estamos conversados.
Hoje
Sócrates é um proscrito, por muito que se engane a si próprio com sessões de
prosélitos. Foi vítima de si próprio em primeiro lugar, mas
também de uma política de fugas de informação sistemáticas, de que, aí sim, tem
razões de queixa. Embora formalmente ainda não tenha sido acusado de
nada, foi vítima na praça pública de uma política de fugas com o mais que claro
dedo do Ministério Público, destinada a condicionar a opinião pública. Ora,
para além do crime que constituem as fugas de informação, o problema é de
cidadania, porque a publicação, certamente selectiva, de dados do processo,
atenta contra as nossas liberdades, o nosso direito à defesa. Como é boa
para a comunicação social e para o voyeurismo colectivo, é aceite com demasiada
complacência. Hoje é com Sócrates, mas amanhã é com qualquer um, seja culpado,
seja inocente.
Também
por isso sou absolutamente contra os sucessivos adiamentos dos prazos que têm
sido concedidos pela procuradoria aos magistrados que estão encarregados do
inquérito, e, em particular, na sua última versão que, de facto, acaba com
qualquer obrigação de prazo. A questão não pode ser vista apenas em termos
de legalidade, mas em termos de cidadania. A escolha constitucional da presunção
da inocência é uma escolha de cidadania, do modo como queremos viver
civilizadamente em conjunto, não dos juristas, nem dos advogados, nem dos
polícias.
Aqui
já deixa de ser Sócrates (embora também seja) para ser um problema de todos
nós, dos nossos direitos, liberdades e garantias. Não é a questão
jurídica da legalidade da decisão, nem sequer da constatação de que essas
contínuas renovações de prazos possam ser necessárias, mas a concepção
megalómana que o Ministério Público tem do processo, para meter tudo no saco da
Operação Marquês, é um abuso legal, ao manter alguém acusado na praça
pública indefinidamente. Sim, pode haver abusos persecutórios
alicerçados numa legalidade objectiva, mas mesmo assim excessivos e ameaçadores
para um cidadão, seja culpado ou inocente. Já referi a minha convicção
subjectiva da culpabilidade de Sócrates — que, insisto, nada vale —, mas
tenho de admitir que ele ou qualquer outro seja inocente e recusar a contínua
destruição de uma vida normal pela utilização do imenso poder que tem a
Justiça, quando abusa da sua capacidade, que a tem, de triturar a vida de
alguém. Hoje é com Sócrates, mas amanhã é com qualquer um, seja culpado, seja
inocente.
E
não há argumento qualquer de necessidade, como o que se dá, também com base
numa fuga do processo, das cartas rogatórias enviadas para diferentes países. E
se os angolanos ou os luxemburgueses não responderem a tempo, ou não
responderem nunca? Fica tudo parado de novo? Na justificação da procuradora
abre-se um novo protelamento, mudando aqui a sua posição prévia de impor um
limite fixo.
Em
vez de querer andar a fazer No entanto, por que razão é que, não havendo
prescrição tão cedo para os crimes de corrupção, aqueles que tudo indica têm sido
mais difíceis de provar, o Ministério Público não acusa já com o que tem e
deixa para depois outras acusações? Um megaprocesso de Sócrates,
Ricardo Salgado, Granadeiro, Carlos Silva, Bava, Vara, etc., etc., podia
avançar com as acusações que de há muito anda a sugerir ter provas, como a fraude
fiscal, e depois processa de novo, e de novo, quantos os crimes que
entretanto venha a considerar ter provas sólidas? Não foi assim com Vale
de Azevedo? A não ser que se pretenda fazer um processo de um período da
história portuguesa e, aí sim, pode haver uma intencionalidade política, como,
aliás, se sugere com alegria no comentariado à direita. E aí a pergunta sobre o
que é que aconteceu com o BPN passa a ter sentido.
Embora
isso não tenha qualquer valor jurídico, já disse que estou convicto de que
Sócrates é culpado da maioria das coisas de que é acusado, da fraude fiscal à
corrupção. Porém, isso não me impede de me preocupar pelos abusos
que, não lhe dando razão, são preocupantes para todos, para além do estrito
mecanismo das regras jurídicas, por razões de cidadania. Com o Ministério
Público essas preocupações não são de agora; vêm de muito antes, quando um
procurador teorizava que, em casos em que não se conseguia fazer provas, as
fugas de informação funcionavam como punição.
Em
processos como o da Casa Pia revelou-se uma perigosa tentação de fazer uma
“pesca de arrasto” contra os políticos em geral e, num ou noutro caso, em
processos de pedofilia, no processo dos skinheads, houve cedências a uma
opinião pública e a uma imprensa justicialista que clamava por sangue antes de
clamar por provas. Em nenhum dos casos, as pessoas envolvidas me eram
particularmente antipáticas, pelas suas ideias ou práticas, como é o caso de
Sócrates, mas temo, mais do que um culpado que escape, uma justiça
persecutória que possa ser motivada politicamente, nem que seja apenas por
aquilo que os sociólogos chamam as “presunções prévias” que os magistrados
têm sobre a sociedade, a política ou a justiça. Estas preocupações fazem parte
da essência da nossa tradição humanista.
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