Ao olho arguto de Alberto Gonçalves, não escapou a taça
do prémio, que ele classifica de horrenda. Eu também a achara sensaborona,
manejada um pouco displicentemente por Salvador Sobral, que a passou caprichosamente
à irmã, mas o estrondo da vitória sobrepôs-se a esses pormenores de aparente
humilhação e o regozijo foi grande, por ser a primeira vez, como aconteceu com
a Rosa Mota, que virou estrela nacional e o Carlos Lopes, que também virara,
sempre muito acarinhados, até talvez também pela sua modéstia e simpatia. Os
DDT também brincaram com os tics do Salvador, mas tratou-se de caricatura, que
deu para rir. Mas Alberto Gonçalves não ri e a sua interpretação do cantor e da
população portuguesa, dependente da côdea alheia para reconhecer o mérito dos
seus próprios, é bastante severa. Julgo que, mais uma vez, acertou, pese embora
a nossa satisfação pelo acontecimento, patriotas que somos.
Portugal: doze pontos
20/5/2017,
A Eurovisão está para a música como o restaurante do
Barbas para a literatura ou o clã Mortágua para a economia. Mas bastou
reconhecer esta nação valente para que adquirisse o prestígio de Bayreuth.
1. Durante décadas, os portugueses
desprezaram o Festival da Eurovisão sob dois pretextos: a) os arranjinhos
“regionais” influenciavam a votação da coisa, pelo que era impossível
ganhar; b) a coisa não passava de um desfile de futilidades primitivas,
pelo que seria vergonhoso ganhar. De repente, uma vitória do representante
português anulou ambos os constrangimentos – nas cabeças dos que festejaram
tamanho avanço civilizacional. No mundo real, claro que a Eurovisão
está para a música como o restaurante do Barbas está para a literatura ou o clã
Mortágua para a economia. Mas bastou o reconhecimento desta nação valente para
que, entre nós, aquilo adquirisse o prestígio de Bayreuth ou, vá lá, do
Piquenicão, reviravolta que nada diz acerca do valor do festival e diz bastante
acerca dos valores dos portugueses.
2. Não faço questão de comentar a
cantiga e a interpretação vencedoras. Apenas noto que, por um lado, estão
certamente a milhas das misérias derrotadas (das quais, por puro engenho, me
livrei de aturar), e que, por outro, ficam um bocadinho aquém do Segundo Advento
que muitos anunciaram. Aparentemente, talvez porque habitassem sob penedos ou
“playlists” da TSF, os fanáticos de “Amar Pelos Dois” nunca tinham ouvido uma
canção decente na vida e deixaram-se assombrar pela mera competência.
3. Sendo portuguesa, a vitória
não se poderia limitar aos razoáveis méritos de um produto nitidamente superior
aos restantes. Assim, procurou-se logo glorificar o rosto do produto: Salvador
Sobral, daqui em diante o paradigma da modéstia, da inteligência, do
patriotismo, do humanismo e, já agora, da originalidade.
4. Sobre a modéstia, destaque-se
o instante em que, com uma taça horrenda nas mãos, Salvador Sobral desatou a
rebaixar os demais participantes de uma competição em que entrou com nojo e,
quiçá, sob ameaça de arma. De seguida, afirmaria que a proeza dele seria, cito
de memória, assaz importante para a arte e para a cultura portuguesas. A última
ocasião em que assistira a tamanha humildade foi quando o sujeito que me pintou
a parede da sala comparou o resultado à “Ronda da Noite”.
5. Sobre a inteligência,
Salvador Sobral pareceu não perceber que, ao desacreditar a concorrência,
desvalorizava, aliás com razão, a sua vitória.
6. Sobre o patriotismo,
Salvador Sobral teve a coragem (?) de cantar em português, ousadia sem
precedentes excepto por todos os vencedores de todos os festivais da RTP. Logo
que se acabe de esconder os exemplares do disco que Salvador lançou há meses,
cantado quase na íntegra em inglês, o rapaz arrisca-se a uma medalha do
Instituto Internacional da Língua, a dois Prémios Pessoa e a uma resma de
Prémios Camões.
7. Sobre o humanismo, este
projectou-se para o mundo a partir da t-shirt de apoio aos refugiados que
Salvador Sobral exibiu numa conferência. Não tenho dúvidas de que, no final,
deixou o seu endereço de forma a alojar uns tantos.
8. Sobre a originalidade,
recorde-se que, apesar da proficiência técnica, Salvador Sobral começou nos
concursos de descoberta de talentos (têm-se descoberto imensos) e terminou (por
enquanto) a concluir o impressionante trilho desbravado por Fernando Tordo,
pelos Gemini e por Da Vinci. Além disso, e além de se inspirar em
“standards” americanos e brasileiros dos anos 40 e 50, veste de preto e usa
rabo-de-cavalo, façanhas praticamente inéditas na História da Terra.
9. Mas Salvador Sobral, músico com
algumas virtudes, não é evidentemente o problema. O problema é o descaramento
com que tantos se banham num sucesso que, discutível ou não, é inequivocamente
dele. Na linha da frente, conforme é inevitável, surgiram os
profissionais do ramo. O dr. Costa louvou a “expressão pessoal do sentimento”.
E o prof. Marcelo jurou que “quando somos muito bons, somos os melhores dos
melhores”. A primeira frase é o vazio, a segunda um embaraço. O facto é que,
movidas pelo oportunismo ou pela maior das inocências, as ejaculações
nacionalistas padecem de um princípio comum: a convicção de que festejar
o êxito alheio nos dispensa de trabalhar em prol do próprio.
10. Sempre que não andam a comemorar
a magnificência do país, os portugueses dedicam-se a insultar os descrentes
incapazes de encontrar a dita no televoto da Eurovisão. Os descrentes, ou “velhos
do Restelo”, são as pessoas amargas que criticam as coisas que, por decisão
unilateral, as pessoas doces não acham criticáveis. Pior do que isso, só quando
as pessoas amargas elogiam as coisas que, de novo sem avisar vivalma, as
pessoas doces acham criticáveis. Há uma palavra inglesa – “contrarian” – para
designar os sujeitos que rejeitam a opinião corrente. Não admira que não haja
tradução adequada. Nem admira que a consagração da alegada “diferença” de
Salvador Sobral implique um rigoroso consenso.
11. Em suma, “Portugal”
ganhou o festival deste ano e a honra de organizar o do próximo. Polémicas à
parte, é inegável o contributo de semelhante empreitada para o crescimento
económico (e o Azerbaijão, organizador em 2012, não nos deixa mentir). No
mínimo, para o crescimento económico dos indivíduos que, à revelia de maçadores
concursos públicos, se agitam nos bastidores de modo a decidir o local e
garantir a sua parcela. Obviamente só Lisboa (e a Arena Nãoseiquê) possui
condições para receber evento tão ridíc…, desculpem, sumptuoso – além das
cidades que, suponho, possuem armazéns similares. Se dependesse de mim,
a escolha obrigaria a que uma junta de topógrafos e geógrafos ou simplesmente
um tipo munido do Google Maps tivessem em consideração a minha casa e depois
determinassem o ponto do território nacional mais distante: a pândega
decorreria aí.
12. Do Minho ao
Algarve – ou a Timor, que as orgias patrióticas favorecem a reabilitação do
Império – não há sentença tão repetida quanto a velha “A mim ninguém me
engana”. E o engraçado é que não é preciso: os portugueses enganam-se
sozinhos.
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