quinta-feira, 18 de maio de 2017

«Cântico Negro»



O artigo do OBSERVADOR, de Maria João Avillez, revela uma figura feminina na inteireza de uma personalidade educada segundo parâmetros ousadamente e aristocraticamente reaccionários, de uma abertura e vivacidade não comprometidas pelos oportunismos das modas, ao referir memórias ou espaços vivenciais que facilmente a conotam com elegâncias de “noblesse oblige”. Facilmente concitará, talvez, opiniões democráticas rancorosamente impacientes, contra uma personalidade elegante, assim revelada na sua escrita caprichosa, que não receia afirmar-se adepta do receituário dos três FFF das intelectuais ironias anti-salazaristas, sublinhando o subdesenvolvimento do povo, apreciador do fado, futebol e Fátima, neste momento trocando o F do fado pelo do Festival que soube recompensar uma canção em tudo oposta às melodias temáticas e formais da canção nacional. Mas Maria João Avillez não se refere, talvez por enquanto, àquela canção de requebros decadentes, para mostrar o seu apreço, fixando-se antes no Benfica dos seus amores antigos, mas, sobretudo no Papa, na emoção de um entusiasmo de verdadeira comunhão, sem contestar minimamente a autenticidade de um milagre que outros põem em causa.
E esse aspecto me levou a uma estranha leitura captada na revista Ipsilon, sobre o filósofo Michel Onfray, que Jan Le Bris de Kerne analisa e entrevista, em artigo intitulado «Sem religião não há civilização. A sério?», de que extraio alguns passos:

- «Michel Onfray, filósofo-vedeta, é o autor de Décadence. Obra que quer demonstrar como as civilizações são fundadas sobre religiões, como elas nascem, crescem, conquistam, declinam e morrem.
- «A França é um país curioso, que espanta, intriga, por vezes fascina os vizinhos francófonos. Belgas, suíços, luxemburgueses observam atentamente as agitações políticas, as polémicas ideológicas que agitam os sofás da sociedade francesa, dado que, em comparação, as suas próprias actualidades sociais são calmas e, dizem eles, por vezes, aborrecidas. Este tumulto francês é possível devido à presença, em primeiro plano, dos debates, das ideias, das correntes de opinião e de pensamento, e dos filósofos. Uma dezena deles são mesmo estrelas mediáticas, chamados a comentar tudo, a explicar tudo, a contestar tudo. Agora que a França acabou de se amedrontar, permitindo que Marine Le Pen e a Frente Nacional tivessem chegado à segunda volta das eleições presidenciais, e que Michel Onfray proclama que já não vota, argumentando que os responsáveis, de todos os quadrantes, conduzem políticas exógenas, ditadas por Bruxelas, pelo FMI ou pela NATO, será interessante interrogá-lo sobre a palavra e o lugar dos intelectuais, escritores filósofos, no cenário mediático francês.
- Michel Onfray, 58 anos, é um dos filósofos-estrelas de França. Um libertário e um hedonista, situa-se muito à esquerda politicamente.»
- «Michel Onfray, enfim, é todo ele um programa e um método. Muitas das  suas biografias causaram barulho, visto que iam contra a corrente do sentimento generalizado: escreveu sobre Sigmund Freud (um mentiroso, perverso, cúpido), sobre Jean Paul Sartre (colaboracionista com o regime de Vichy), o marquês de Sade (falso ídolo do nosso tempo, e um criminoso desequilibrado, e mesmo Jesus (uma fábula sem realidade histórica).
- «O método Onfray é o seguinte: lê na íntegra a obra dessas personagens, depois tudo o que se escreveu sobre elas, e em ordem cronológica. Uma tarefa colossal, que ninguém se atreve a empreender, e que lhe permite ser categórico, dificilmente contestável, enquanto revela os elementos escondidos, por vezes explosivos, que o pensamento mainstream conseguiu ocultar.
A sua última obra “Décadence” (Flammarion), dedica-se a mostrar como todas as civilizações são ontologicamente fundadas sobre religiões, como elas nascem, crescem, conquistam, declinam e morrem. Partindo de Jesus Cristo, percorre com atordoante precisão bibliográfica, as etapas do desenvolvimento e do declínio da nossa civilização judaico-cristã, avançando um diagnóstico pessimista para os anos que se seguem, os últimos, e que serão fatais. «Chamo decadência ao que vem da força plena e que conduz ao final dessa mesma força
- «Ninguém já acredita nos deuses dos egípcios, nos dos gregos do tempo de Péricles, ou nos do México pré-colombiano. Mas essas religiões perdurarão enquanto o homem perdurar, porque elas trazem consolo àqueles a quem a filosofia não trouxe a serenidade»
«As pessoas preferem uma ilusão que lhes dê segurança, a uma verdade que as inquiete. Antes fábulas que prometem que a morte não existe e que a vida continua depois do falecimento, do que uma verdade científica que traz a prova de que, uma vez mortos, apenas conhecemos a decomposição e o vazio.»
- «Jesus Cristo nunca existiu» (segue-se a demonstração)
"Não acredito na morte do sentimento religioso. Creio na morte, de uma forma refém desse sentimento, a religião"  ….

E tantas mais informações, que gostarei de reler, nesta entrevista, que guardarei religiosamente, o artigo extenso sublinhado atentamente pela minha irmã. Em apoio da tese sobre a condição definitiva da materialidade do corpo, lembro que o próprio Genesis já o informara no seu aforismo “pulvis est et in pulverem reverteris”, mas, em sugestiva tese contrária, não podemos esquecer que Virgílio revelara essa inverdade, ao pôr Eneias a visitar o seu pai Anquises, no inferno, por artes mágicas da Sibila, é certo, o qual o recebeu de braços abertos e com muita informação sobre alguns presentes nesse além, povoado de mortos conhecidos; e até, uns séculos depois, o próprio Dante os encontrou, num inferno ainda mais povoado, e tendo por acompanhante o mesmo Virgílio, seu guia e seu mestre. Por isso, continuemos a ter esperança numa vida eterna, se tal nos tranquilizar a mente inquieta.
Vivemos em democracia e as opiniões são livres. Digamos, com José Régio, da nossa independência.  Maria João Avillez não a põe em dúvida.

 Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos........

Sentinelas da madrugada
OBSERVADOR, 16/5/2017
Mesmo suspeitando eu que o dr. Salazar não apreciava os "efes" que delimitariam o perímetro da nossa alienação, para a minha felicidade eles muito contribuíram.
1. Domingo de manhã meti-me num táxi e dei com a infalível Rádio Amália. Vinha a calhar. Na véspera, já tarde, perto da meia noite, na esquina da Duque de Ávila com a Avenida da República, observara extasiada a gloriosa passagem dos gloriosos encarnados e do seu tetra e isto para não falar, das irrepetíveis vinte e quatro horas de Fátima.
Eu não sei se António Costa foi ouvir algum fado neste domingo, após ter estado tão feliz em Fátima no sábado e de horas depois ter apanhado com a jubilosa vitória do seu e meu Benfica. Mas talvez não lhe valesse a pena andar afanosamente à procura do fado pela cidade, quem sabe se Salvador Sobral, mesmo que momentaneamente, não terá encarnado, aos seus olhos, a canção nacional. Também vinha a calhar e pela festa, parecia. O que sei é que dizer coincidência – ou dizer o que quer que seja, de resto – ficará sempre aquém da espantosa ironia do feito. Basta apenas atentar na velocidade com que se eclipsaram hoje os efeitos maléficos que ontem as esquerdas que aí estão, nos diziam que o fado, Fátima e o futebol teriam sobre o pobre povo, para perceber como a natureza humana política se ajeita ao que convém. E mesmo suspeitando eu que o dr. Salazar não apreciava qualquer dos “efes” que supostamente delimitariam o perímetro da nossa alienação, para a minha felicidade contribuíram generosamente, passe o choque desta abrupta confissão. Deve até haver pouca gente no país que lide tão bem com eles (os “efes”) e os pratique com tão pública convicção.
2. O fado só pode ter vindo ter comigo na casa onde nasci, aqui no Campo Grande. Ao tempo dos Condes de Vimioso que nela habitaram em meados do século XIX – antes de ser comprada por antepassados meus — o fado escorria pelas paredes. Havia touradas no pátio onde hoje vivo, dizia-se que vinha a Severa e cantava, a noite consumia-se por entre festas concorridas, altíssima boémia, alma e cantorias que deixaram assinatura e memória na então casa da Quinta dos Condes de Vimioso. Terei ficado com alguma coisa disso. E se não entro numa praça de touros, tenho o fado comigo desde que me lembro. Contavam-nos estas e outras histórias em pequenas, às minhas irmãs e a mim e divertíamo-nos a detalhar como seria o pátio com touros lá dentro ou guitarristas dedilhando nos degraus de pedra. Depois, no tempo dos meus pais , lembro-me que por vezes também se “fadistava” e que Amália aqui cantou. Estava longe de sequer adivinhar que um dia entrevistaria a diva com uma devoção difícil de explicar. Mas nesse tempo eu ainda não sabia que a vida –regra sem excepção — é sempre mais poderosa que o sonho.
3. O Benfica é mais inexplicável, porventura totalmente inexplicável. Foi pelos treze anos e o Campo Grande ia caindo: “do” Benfica? A família perplexizou. O meu pai honrava o Belenenses, as minhas irmãs não eram de nada, os amigos ou militavam no Sporting ou eram-lhe afeiçoados. Era como se o Benfica não fosse frequentável, julgo que nas paragens da minha infância e adolescência “se” suspeitava que seria “do reviralho” e a nossa casa era salazarista, com muito respeito. Pois bem, eu até sócia me fiz da Luz, catedral que muito frequentei durante anos, em ambas as suas versões. Acompanhei o clube como convidada a algumas jornadas europeias, entrevistei jogadores, Eriksson veio jantar a nossa casa. Guardo uma foto com Eusébio e, no dia em que ele morreu, fui para a rua homenagear a passagem do seu carro funerário. E flor entre as flores, consegui uma vez, estava então no Público, juntar Artur Jorge, treinador do Porto, e Eriksson, do Benfica, para uma entrevista quando os clubes que ambos treinavam estavam empatados no campeonato (ainda não se dizia Liga).
Paixão antiga esta, inamovível, fidelíssima. Ligeiro (ou melhor, pesadíssimo) senão: a ocorrência de um Benfica/Sporting ou de um Sporting/Benfica, revisto pela conjugalidade. Acontece-nos bastantes vezes mas é pior quando estamos fora de portas.
O silêncio do campo e a solidão do lugar acicatam-nos a rivalidade. O tom sobe, as (minhas) imprecações também, nenhum de nós vê os lances da mesma maneira. Não costuma acabar bem.
Parabéns Benfica.
4. E agora vou ao que de mais sério poderá justificar este texto. Pelo incomum significado do que se viu e ouviu em Fátima. Pela vinda do Santo Padre a Portugal na mais disponível, mais despida das condições que é a de peregrino. Pela canonização, pela primeira vez na longa vida da Igreja, de duas crianças não mártires. Rudes, simplórias e analfabetas. Pela visita do Papa Francisco a um Santuário que cumpria cem anos sobre a primeira aparição (se quiserem podem ler “visão”) de Nossa Senhora, ali celebrada pelo gesto e o verbo do Santo Padre. Eis o que, apesar de já irreversivelmente inscrito na história do mundo e na da Cristandade , perturba tanto quanto inexprimivelmente confunde.
Não é simples conviver com isto, a graça que nos foi dada a viver requer tempo para ser interiorizada e aprofundada em todo o seu alcance”, dizia-me D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima e muito inspirado cicerone daquelas horas. É verdade. Mas também me ocorrem as palavras do sacerdote espanhol José António Pagola, teólogo crucial pela forma como “pensa “ o Evangelho, quando alerta para que ”nem tudo é reduzido à razão”. Em Fátima, estes dias, percebeu-se melhor isso mesmo.
O Papa não veio por vir. Legitimou um sítio e adubou uma fé mas trouxe desafio e pediu compromisso. Reafirmou a “proximidade”, entendida como o “ir ter” com o menos apetecível dos próximos; a urgência da conversão; o poder de dádivas como é o perdão; o valor quase demencial da misericórdia.
Não veio por vir, tinha uma agenda. Vir sem depois acontecer nada no dia seguinte, não parece ser com ele. Se era só para ver Nossa Senhora, na “eternidade haverá tempo para isso”. Ele sabe que agora o tempo é de sentinelas. Naquele silêncio imóvel onde cabia a luz e a sombra, a culpa e a redenção e se ouvia o sussurro de Deus, Francisco pediu essa coisa imensa que são sentinelas. Sentinelas da mensagem de Fátima sob a forma de uma nova madrugada.
5. Não se esquecerá, julgo eu, a dignidade, a beleza, a cadência, a sobriedade , a intimidade, das cerimónias no Santuário. Desde o minuto em que um helicóptero com um homem á janela vestido de branco descia sobre a Cova da Iria, até à despedida ao pé de um avião imobilizado numa pista, cada pessoa daquela magna organização sabia a cada momento, o que estava a fazer. Não posso — nem quero — impedir-me de felicitar os seus mais altos responsáveis pela intensidade por eles preservada deste momento irrepetível da nossa vida colectiva. Com ou sem fé.
6. Havia portugueses suficientes para tudo o que aconteceu em Portugal no sábado?, perguntava ontem ao telefone um filho que vive longe e fora. De facto.

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