É
no sacramento do Crisma que a pessoa revalida aquilo a que os seus
padrinhos se comprometeram em seu nome ao baptizá-lo. Ainda me lembro de um hino
que aprendi em pequena, quando acompanhava a minha irmã na catequese, que ela
teve que fazer para a sua comunhão solene, com um vestido branco que eu lhe invejei
, embora fosse provisório porque de aluguer, que a minha irmã, aliás, repudiou,
no horror inesquecível de ter sido obrigada a percorrer montes e vales, a pé,
criança pequena, com a minha mãe, de Pinheiro a Cercosa e a Reigoso e a Campia
e a Ribeiradio e outras terras, até que finalmente encontrou um “pronto a
vestir”, o tal que eu lhe invejei, nos meus seis ou sete anos imaturos, face à
sua compostura angélica dos sete ou oito, que teríamos por essa altura, quando
se comprometeu, desta vez em nome próprio, a seguir os preceitos da Santa Madre
Igreja, hino cuja letra e música eu própria não mais esqueci, mau grado a falta
de zelo apostólico, que os nossos pais, nas canseiras do seu trabalho diário e
na independência de um espírito paterno pouco submisso, nos não habituaram a
manter lá nas terras quentes e livres de Moçambique:
Prometi no dia
do meu Baptismo
A Jesus sempre sempre adorar.
A Jesus sempre sempre adorar.
Meus padrinhos em meu nome falaram,
Hoje as promessas venho renovar.
Fiel sincero, eu mesmo
quero.
A Jesus prometer seu
amor (bis)
Vem
a referência a propósito dos textos seguintes do OBSERVADOR, de Alberto
Gonçalves e de João César das Neves, que, no fundo, são
farinha do mesmo saco, em torno de um povo e de um governante que, agarrado ao
poder que usurpou, estabeleceu uma astuciosa aliança de misericórdia e dolo que
nos vai fazendo escorregar para o abismo, com a conivência dos panegiristas do
regime. Nem vale a pena comentar, cada um dos artigos brilha com luz própria, na
complementaridade e confirmação das respectivas teses, deixemo-nos iluminar, como bênção especial de "Dia das Mães", por cá:
Crimes e castigos: introdução
às regras do bom debate público
OBSERVADOR, 6/5/2017
Há
dias, no Observador, João Marques Almeida comparou o dr. Costa ao sr. Trump.
Dada a dimensão da ofensa, muito boa gente esperaria que o presidente dos
EUA publicasse quinze “tweets” irados e ordenasse um ou dois bombardeamentos em
cima do colunista. Não aconteceu nada. Quem curiosamente se ofendeu,
também através do Twitter, foi um deputado do PS chamado Qualquer Coisa Simões,
que não só achou o texto “vergonhoso” como sugeriu a aplicação de “1 par de
bofetadas” (sic) no respectivo autor. Instado, mais tarde, a comentar a sugestão,
o sr. Simões explicou que apenas pretende ressuscitar o, cito, “bom registo do
debate público no final do século XIX, início do século XX, que infelizmente já
não existe”. E acrescentou: “Se Almeida soubesse esgrimir, eu
desafiava-o para um duelo. Como ele não sabe o que é um florete e muito menos
um sabre, só me restou um figurativo e literário par de bofetadas.”
Os
socialistas são uma bênção. Além de recorrentemente assegurarem a paz social e
o progresso económico, ou vice-versa, ainda querem devolver-nos à época feliz
do “final do século XIX, início do século XX”, quando meio mundo, literário até
à medula, tratava dos seus assuntos em fascinantes colóquios de esgrima e
paulada sortida. Na falta de talento dos
contemporâneos para o manuseamento do florete e da moca de Rio Maior, tendência
que se lamenta, restam as bofetadas, que já um ex-ministro do actual governo
prometera a dois críticos. Com jeito, porém, o zelo tradicionalista do
PS irá a tempo de recuperar os duelos clássicos, isto para não falar da
sífilis, da fome negra e de outras conquistas do passado.
Por
enquanto, importa limitarmo-nos aos métodos disponíveis de reparação da honra.
Mas não me parece correcto limitarmo-nos às tais bofetadas. Portugal
vive um período fulgurante: o salário mínimo aumenta, o desemprego diminui, a
desigualdade salarial encolhe, os salários encolhem, os sindicatos colaboram,
os patrões são postos em sentido, a dívida avança rumo a recordes e
reestruturações, o imperialismo estrangeiro contempla abismado o caso de estudo
em que nos transformámos, etc. Se em tudo seguimos o glorioso trilho da
revolução bolivariana, não há motivos para não imitarmos a Venezuela no que
respeita à punição de elementos subversivos ao regime. Por isso, em prol
do “bom registo do debate público”, proponho uma breve lista de
infracções e castigos:
Referir
o dr. Costa sem adicionar os epítetos “O Grande”, “Príncipe da Política”,
“Diplomata” ou “Hábil Negociador”: puxão de orelhas e advertência verbal.
Insinuar
que, embora glorioso, o dr. Costa ocasionalmente comete erros: invasão
da casa do perpetrador, com direito a ameaças ao próprio e à família.
Afirmar
que, embora os serviçais o proclamem glorioso, o dr. Costa é um erro em si
mesmo: julgamento “popular” e prolongada pena de prisão.
Aludir
ao domínio da língua portuguesa apresentado pelo dr. Costa: agravamento
da pena de prisão e sessões de bordoada às terça e quintas.
Mencionar
que o dr. Costa está gordo e raramente apara os pêlos das orelhas: quatro
penas perpétuas, bordoada, tortura do sono, aulas diárias de reeducação cívica
e linchamento público, por ordem a apurar.
Comparar,
desde que favoravelmente, o dr. Costa a Buda ou Gandhi: um lugar de
opinador independente na TSF e uma comenda do prof. Marcelo.
A
propósito do prof. Marcelo, este confessou-se impedido pelo bom senso a
comentar a situação na Venezuela. Tem inteira razão: para quê louvar o
imenso sucesso alheio se o nosso para lá caminha?
Nota de rodapé
Ontem,
o jornal “i” publicou uma entrevista comigo e “chamou” para a capa a frase:
“Não consigo discordar da política migratória da sra. Le Pen”. Na entrevista
propriamente dita, lembrei que a vitória da senhora constituiria uma
calamidade para a Europa e sobretudo para Portugal. Não lembrei, porque não era
preciso, a aversão da senhora ao euro e à Nato, o proteccionismo económico, o
nacionalismo aberrante, a demagogia exacerbada e a transformação, nada inédita,
da política numa guerra entre “nós” e “eles”, em que “eles” são todos os que,
mal por mal, ainda acreditam numa ou duas virtudes da democracia.
Escrevo
isto não para me desculpar, mas para notar que, nem de propósito, calhei de
concordar com a sra. Le Pen no único ponto que a extrema-esquerda, a
indígena e a forasteira, não partilha: o receio face aos avanços do
islão. Em matéria de discriminação, diga-se, a extrema-esquerda prefere
exercê-la contra Israel e os judeus, que obviamente são a grande ameaça ao modo
de vida ocidental. No resto, conforme José Manuel Fernandes já aqui recordou, as propostas da
candidata às “presidenciais” francesas não se distinguem das propostas
do sr. Mélenchon, o candidato entretanto derrotado (e apoiado, por exemplo,
pelo BE e pelo Podemos). Ou das propostas habituais do Bloco e do PCP.
As
semelhanças são tantas que os esforços para negá-las são “presidenciais”
francesas não se distinguem das propostas do sr. Mélenchon, o candidato
entretanto derrotado (e apoiado, por exemplo, pelo BE e pelo Podemos). Ou das
propostas habituais do Bloco e do PCP.
As
semelhanças são tantas que os esforços para negá-las são engraçados ou
inexistentes. Uma sondagem feita pelo França Insubmissa (o nome nem disfarça)
do sr. Mélenchon aos seus eleitores, acerca da segunda volta, incluía três
possibilidades: votos brancos e nulos; abstenção; Macron. Não incluía a sra.
Le Pen, a escolha plausível da maioria. Por cá, alminhas várias de BE e
PCP exibiram, trémulos, a convicção de que seria irrelevante optar por Macron ou
pela sra. Le Pen.
Não
seria. Macron, decerto uma figura menor, é uma promessa – débil – de
“normalidade”. A sra. Le Pen é um perigo. Um perigo em quase tudo
semelhante a BE e PCP, que por cá influenciam o poder sob a simpatia dos
exactos “media” que andam aflitíssimos com a hipótese Frente Nacional. Como
se consegue tal acrobacia? É fácil: basta à extrema-esquerda apelidar a sra. Le
Pen de “fascista” e assim evitar que, por uma vez, a palavra seja aplicada com
precisão: fascista é, também, a extrema-esquerda. Sobram, claro, as diferenças
visões de ambos perante o islão “imoderado”. Mas o islão “imoderado” é o quê?
Escusam de responder.
2º Texto: A desforra
de Sócrates
João César das NevesOBSERVADOR, 4/5/2017
No
tempo de Sócrates ainda se falava de plano tecnológico e necessidade de
crescimento. Agora apenas se referem reposições de benesses e direitos da
função pública, como se o dinheiro caísse do céu.
Se
não fosse trágico, seria irónico ver um país recair na mesma armadilha em menos
de dez anos. O otimismo da conjuntura, com défice e desemprego a
cair e a economia a acelerar, são a quase perfeita reprodução da situação de
2007-2008. A grande diferença é a ausência da crise internacional,
catástrofe de dimensões históricas que transformou a breve primavera na maior
crise do Portugal moderno. Será que desta conseguimos?
De
alguma maneira, a situação atual parece constituir a desforra de José Sócrates.
O governo maioritário do PS há dez anos parecia ter tudo controlado, quando foi
traído pela derrocada financeira global, de que era inocente. Agora António
Costa, com o PS maioritário na extrema-esquerda, tem uma segunda oportunidade
de cumprir esse desígnio. As condições externas estão indiscutivelmente mais
favoráveis, e até devem melhorar, logo que a Europa abandone a austeridade e
seja benevolente com o Sul. Será finamente possível cumprir o programa
injustamente cortado há dez anos?
Esta
tese, que implicitamente fundamenta o executivo, tem um pequeno problema:
ignora a verdade da situação. Porque a derrocada de 2008-2009 não se deveu à
crise internacional, mas à insustentabilidade da trajetória interna. A
perturbação externa foi apenas a faísca que deflagrou a pólvora do nosso
desequilíbrio.
O
problema que destruiu Sócrates, e mais cedo ou mais tarde derrubará Costa, é a
secular doença lusitana. Podemos chamar-lhe a «síndrome do Conde de Abranhos».
Hoje, como tantas vezes no passado, larga percentagem da população vive de
benesses públicas que a economia não pode pagar. Pensionistas, funcionários,
câmaras, construtoras, subsídios, dominam a situação política, para conseguir
garantir as suas rendas. O aparelho produtivo acaba espremido pelas exigências
das classes não produtivas.
Esta
dinâmica, que há 200 anos domina a democracia portuguesa, reproduz hoje a
versão de 2007, com apenas duas diferenças importantes. A primeira é
que, com o PCP e o BE no poder, a atitude é mais aberta e descarada. No tempo
de Sócrates ainda se falava de plano tecnológico e necessidade de crescimento. Agora
apenas se referem reposições de benesses e direitos da função pública, como se
o dinheiro caísse do céu.
A
segunda diferença, muito mais influente, está na fonte usada para os
pagamentos. Nos meados da década passada, como nos 15 anos anteriores, ainda
era possível alimentar os interesses instalados com dívida externa. Hoje
essa via está totalmente fechada, havendo mais a necessidade de liquidar os
juros dos longos tempos de ilusão. Apesar desta terrível situação, foi ainda
possível imitar a prosperidade através da redução do investimento, público e
privado e a poupança em mínimos históricos. Sócrates, como Guterres e Barroso
simularam o sucesso, estimulando a conjuntura pelo endividamento. Costa faz o
mesmo, comendo o capital.
Assim, a ruína nacional entrou numa nova fase. Mas
talvez Sócrates ainda consiga a desforra, se Costa ficar na história ainda pior
que ele.
Professor
Catedrático da Católica Lisbon School of Business and Economics
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