domingo, 7 de maio de 2017

CONFIRMAÇÃO



É no sacramento do Crisma que a pessoa revalida aquilo a que os seus padrinhos se comprometeram em seu nome ao baptizá-lo. Ainda me lembro de um hino que aprendi em pequena, quando acompanhava a minha irmã na catequese, que ela teve que fazer para a sua comunhão solene, com um vestido branco que eu lhe invejei , embora fosse provisório porque de aluguer, que a minha irmã, aliás, repudiou, no horror inesquecível de ter sido obrigada a percorrer montes e vales, a pé, criança pequena, com a minha mãe, de Pinheiro a Cercosa e a Reigoso e a Campia e a Ribeiradio e outras terras, até que finalmente encontrou um “pronto a vestir”, o tal que eu lhe invejei, nos meus seis ou sete anos imaturos, face à sua compostura angélica dos sete ou oito, que teríamos por essa altura, quando se comprometeu, desta vez em nome próprio, a seguir os preceitos da Santa Madre Igreja, hino cuja letra e música eu própria não mais esqueci, mau grado a falta de zelo apostólico, que os nossos pais, nas canseiras do seu trabalho diário e na independência de um espírito paterno pouco submisso, nos não habituaram a manter lá nas terras quentes e livres de Moçambique:
 Prometi no dia do meu Baptismo
A Jesus sempre sempre adorar.
Meus padrinhos em meu nome falaram,
Hoje as promessas venho renovar.
Fiel sincero, eu mesmo quero.
A Jesus prometer seu amor (bis)
Vem a referência a propósito dos textos seguintes do OBSERVADOR, de Alberto Gonçalves e de João César das Neves, que, no fundo, são farinha do mesmo saco, em torno de um povo e de um governante que, agarrado ao poder que usurpou, estabeleceu uma astuciosa aliança de misericórdia e dolo que nos vai fazendo escorregar para o abismo, com a conivência dos panegiristas do regime. Nem vale a pena comentar, cada um dos artigos brilha com luz própria, na complementaridade e confirmação das respectivas teses, deixemo-nos iluminar, como bênção especial de "Dia das Mães", por cá:

Crimes e castigos: introdução às regras do bom debate público
OBSERVADOR, 6/5/2017
Há dias, no Observador, João Marques Almeida comparou o dr. Costa ao sr. Trump. Dada a dimensão da ofensa, muito boa gente esperaria que o presidente dos EUA publicasse quinze “tweets” irados e ordenasse um ou dois bombardeamentos em cima do colunista. Não aconteceu nada. Quem curiosamente se ofendeu, também através do Twitter, foi um deputado do PS chamado Qualquer Coisa Simões, que não só achou o texto “vergonhoso” como sugeriu a aplicação de “1 par de bofetadas” (sic) no respectivo autor. Instado, mais tarde, a comentar a sugestão, o sr. Simões explicou que apenas pretende ressuscitar o, cito, “bom registo do debate público no final do século XIX, início do século XX, que infelizmente já não existe”. E acrescentou: “Se Almeida soubesse esgrimir, eu desafiava-o para um duelo. Como ele não sabe o que é um florete e muito menos um sabre, só me restou um figurativo e literário par de bofetadas.”
Os socialistas são uma bênção. Além de recorrentemente assegurarem a paz social e o progresso económico, ou vice-versa, ainda querem devolver-nos à época feliz do “final do século XIX, início do século XX”, quando meio mundo, literário até à medula, tratava dos seus assuntos em fascinantes colóquios de esgrima e paulada sortida. Na falta de talento dos contemporâneos para o manuseamento do florete e da moca de Rio Maior, tendência que se lamenta, restam as bofetadas, que já um ex-ministro do actual governo prometera a dois críticos. Com jeito, porém, o zelo tradicionalista do PS irá a tempo de recuperar os duelos clássicos, isto para não falar da sífilis, da fome negra e de outras conquistas do passado.
Por enquanto, importa limitarmo-nos aos métodos disponíveis de reparação da honra. Mas não me parece correcto limitarmo-nos às tais bofetadas. Portugal vive um período fulgurante: o salário mínimo aumenta, o desemprego diminui, a desigualdade salarial encolhe, os salários encolhem, os sindicatos colaboram, os patrões são postos em sentido, a dívida avança rumo a recordes e reestruturações, o imperialismo estrangeiro contempla abismado o caso de estudo em que nos transformámos, etc. Se em tudo seguimos o glorioso trilho da revolução bolivariana, não há motivos para não imitarmos a Venezuela no que respeita à punição de elementos subversivos ao regime. Por isso, em prol do “bom registo do debate público”, proponho uma breve lista de infracções e castigos:
Referir o dr. Costa sem adicionar os epítetos “O Grande”, “Príncipe da Política”, “Diplomata” ou “Hábil Negociador”: puxão de orelhas e advertência verbal.
Insinuar que, embora glorioso, o dr. Costa ocasionalmente comete erros: invasão da casa do perpetrador, com direito a ameaças ao próprio e à família.
Afirmar que, embora os serviçais o proclamem glorioso, o dr. Costa é um erro em si mesmo: julgamento “popular” e prolongada pena de prisão.
Aludir ao domínio da língua portuguesa apresentado pelo dr. Costa: agravamento da pena de prisão e sessões de bordoada às terça e quintas.
Mencionar que o dr. Costa está gordo e raramente apara os pêlos das orelhas: quatro penas perpétuas, bordoada, tortura do sono, aulas diárias de reeducação cívica e linchamento público, por ordem a apurar.
Comparar, desde que favoravelmente, o dr. Costa a Buda ou Gandhi: um lugar de opinador independente na TSF e uma comenda do prof. Marcelo.
A propósito do prof. Marcelo, este confessou-se impedido pelo bom senso a comentar a situação na Venezuela. Tem inteira razão: para quê louvar o imenso sucesso alheio se o nosso para lá caminha?
Nota de rodapé
Ontem, o jornal “i” publicou uma entrevista comigo e “chamou” para a capa a frase: “Não consigo discordar da política migratória da sra. Le Pen”. Na entrevista propriamente dita, lembrei que a vitória da senhora constituiria uma calamidade para a Europa e sobretudo para Portugal. Não lembrei, porque não era preciso, a aversão da senhora ao euro e à Nato, o proteccionismo económico, o nacionalismo aberrante, a demagogia exacerbada e a transformação, nada inédita, da política numa guerra entre “nós” e “eles”, em que “eles” são todos os que, mal por mal, ainda acreditam numa ou duas virtudes da democracia.
Escrevo isto não para me desculpar, mas para notar que, nem de propósito, calhei de concordar com a sra. Le Pen no único ponto que a extrema-esquerda, a indígena e a forasteira, não partilha: o receio face aos avanços do islão. Em matéria de discriminação, diga-se, a extrema-esquerda prefere exercê-la contra Israel e os judeus, que obviamente são a grande ameaça ao modo de vida ocidental. No resto, conforme José Manuel Fernandes já aqui recordou, as propostas da candidata às “presidenciais” francesas não se distinguem das propostas do sr. Mélenchon, o candidato entretanto derrotado (e apoiado, por exemplo, pelo BE e pelo Podemos). Ou das propostas habituais do Bloco e do PCP.
As semelhanças são tantas que os esforços para negá-las são “presidenciais” francesas não se distinguem das propostas do sr. Mélenchon, o candidato entretanto derrotado (e apoiado, por exemplo, pelo BE e pelo Podemos). Ou das propostas habituais do Bloco e do PCP.
As semelhanças são tantas que os esforços para negá-las são engraçados ou inexistentes. Uma sondagem feita pelo França Insubmissa (o nome nem disfarça) do sr. Mélenchon aos seus eleitores, acerca da segunda volta, incluía três possibilidades: votos brancos e nulos; abstenção; Macron. Não incluía a sra. Le Pen, a escolha plausível da maioria. Por cá, alminhas várias de BE e PCP exibiram, trémulos, a convicção de que seria irrelevante optar por Macron ou pela sra. Le Pen.
Não seria. Macron, decerto uma figura menor, é uma promessa – débil – de “normalidade”. A sra. Le Pen é um perigo. Um perigo em quase tudo semelhante a BE e PCP, que por cá influenciam o poder sob a simpatia dos exactos “media” que andam aflitíssimos com a hipótese Frente Nacional. Como se consegue tal acrobacia? É fácil: basta à extrema-esquerda apelidar a sra. Le Pen de “fascista” e assim evitar que, por uma vez, a palavra seja aplicada com precisão: fascista é, também, a extrema-esquerda. Sobram, claro, as diferenças visões de ambos perante o islão “imoderado”. Mas o islão “imoderado” é o quê? Escusam de responder.

2º Texto: A desforra de Sócrates
João César das NevesOBSERVADOR, 4/5/2017
No tempo de Sócrates ainda se falava de plano tecnológico e necessidade de crescimento. Agora apenas se referem reposições de benesses e direitos da função pública, como se o dinheiro caísse do céu.
Se não fosse trágico, seria irónico ver um país recair na mesma armadilha em menos de dez anos. O otimismo da conjuntura, com défice e desemprego a cair e a economia a acelerar, são a quase perfeita reprodução da situação de 2007-2008. A grande diferença é a ausência da crise internacional, catástrofe de dimensões históricas que transformou a breve primavera na maior crise do Portugal moderno. Será que desta conseguimos?
De alguma maneira, a situação atual parece constituir a desforra de José Sócrates. O governo maioritário do PS há dez anos parecia ter tudo controlado, quando foi traído pela derrocada financeira global, de que era inocente. Agora António Costa, com o PS maioritário na extrema-esquerda, tem uma segunda oportunidade de cumprir esse desígnio. As condições externas estão indiscutivelmente mais favoráveis, e até devem melhorar, logo que a Europa abandone a austeridade e seja benevolente com o Sul. Será finamente possível cumprir o programa injustamente cortado há dez anos?
Esta tese, que implicitamente fundamenta o executivo, tem um pequeno problema: ignora a verdade da situação. Porque a derrocada de 2008-2009 não se deveu à crise internacional, mas à insustentabilidade da trajetória interna. A perturbação externa foi apenas a faísca que deflagrou a pólvora do nosso desequilíbrio.
O problema que destruiu Sócrates, e mais cedo ou mais tarde derrubará Costa, é a secular doença lusitana. Podemos chamar-lhe a «síndrome do Conde de Abranhos». Hoje, como tantas vezes no passado, larga percentagem da população vive de benesses públicas que a economia não pode pagar. Pensionistas, funcionários, câmaras, construtoras, subsídios, dominam a situação política, para conseguir garantir as suas rendas. O aparelho produtivo acaba espremido pelas exigências das classes não produtivas.
Esta dinâmica, que há 200 anos domina a democracia portuguesa, reproduz hoje a versão de 2007, com apenas duas diferenças importantes. A primeira é que, com o PCP e o BE no poder, a atitude é mais aberta e descarada. No tempo de Sócrates ainda se falava de plano tecnológico e necessidade de crescimento. Agora apenas se referem reposições de benesses e direitos da função pública, como se o dinheiro caísse do céu.
A segunda diferença, muito mais influente, está na fonte usada para os pagamentos. Nos meados da década passada, como nos 15 anos anteriores, ainda era possível alimentar os interesses instalados com dívida externa. Hoje essa via está totalmente fechada, havendo mais a necessidade de liquidar os juros dos longos tempos de ilusão. Apesar desta terrível situação, foi ainda possível imitar a prosperidade através da redução do investimento, público e privado e a poupança em mínimos históricos. Sócrates, como Guterres e Barroso simularam o sucesso, estimulando a conjuntura pelo endividamento. Costa faz o mesmo, comendo o capital.
Assim, a ruína nacional entrou numa nova fase. Mas talvez Sócrates ainda consiga a desforra, se Costa ficar na história ainda pior que ele.

 Professor Catedrático da Católica Lisbon School of Business and Economics

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