Um artigo do Público aqui em cima dos Públicos
que a minha irmã me oferece semanalmente, que um critério de seriedade me impõe
que leia, e um de desprezo me diz que o não transcreva. É de Rui Tavares
e é sobre o tráfego de escravos praticado pelos portugueses de antanho, com que
Rui Tavares deseja virtuosamente massacrar as nossas consciências modernas
contritas, segundo os parâmetros da doutrina unilateralmente obsequiosa em
função dos desprotegidos. Já António Vieira nos acusara em seu tempo
inquisitorial, por conta dos judeus a contas com a Inquisição e os índios
ameríndios por cuja aculturação os Jesuítas da época se interessavam. Viveu
nesses tempos, foram justas as suas palmatoadas refazedoras de consciências, e
entretanto, como bem conta Rui Tavares, o tráfego acabou. Acabou? Não. Foi
continuado pelos colonos portugueses mais recentes, que em vez de chamarem os
africanos para a universidade, os utilizavam nos trabalhos mais árduos,
incluindo os de mineiros auríferos na África do Sul, com que Salazar pôde
resgatar as finanças deste nosso pobre país entupido no seu atraso e mândria. A
Rui Tavares não interessou o papel civilizacional do pioneirismo português na
abertura dos mundos terrenos e marítimos, nem os trabalhos e sofrimentos da
gesta marítima portuguesa que os muitos Tavares desprezaram, apaixonados pela
doutrina libertadora moderna, sem sequer se preocuparem com o sentido de uma
lógica evolutiva, que nos revela as etapas do percurso histórico, onde em todos
os países, do Egipto à Grécia, à Roma dos Césares e tempos seguintes, tal
progresso se fazia com o auxílio dos escravos, que ajudaram a construir
pirâmides, o povo, nas épocas mais recentes, alombando com os trabalhos mais
pesados para regalo das classes privilegiadas. Provavelmente Rui Tavares, generoso
e de intelectualidade compassiva, poderá eventualmente exigir que os trabalhos
do seu bem-estar lhe sejam fornecidos por alguém menos capacitado para discutir
Karl Marx. Também não parece incomodar-se com as riquezas de outros povos,
obtidas naturalmente com a dose de exploração necessária e de pirataria, nem
com a escravatura que ainda hoje se comete, nesses tráfegos de mulheres, nessas
uniões criminosas do mundo árabe, em que a pedofilia é ponto assente, nessas
castas indianas repugnantes na questão dos párias, na violência doméstica
comprovativa, a maior parte das vezes, de uma sociedade machista injusta para
com a mulher que escraviza quando pode. São puras banalidades que passam ao
largo da intelectualidade masculina mais vinculada à sua cartilha castigadora,
neste caso dos governos do seu país que despreza, nas suas classes dominantes
pelo menos, sobretudo as mais à direita, por natureza exploradoras.
Nem de propósito, encontro um artigo sobre o tema da
escravatura, no OBSERVADOR, de uma jovem frontal e graciosamente irónica, Maria
João Marques, que dispara contra essa voga dos actuais atacantes da
escravatura passada. Subscrevo em absoluto o que diz, resposta adequada aos
muitos Tavares das modernas fábricas de falsa virtude, debruçada sobre as
patacoadas dos escritos mais primitivos da exaltação africana ou da cartilha
marxista, na sua monocórdia temática acusatória, e desprezando os valores
literários dos grandes escritores humanistas de universalidade incontroversa.
Ao traduzir as suas experiências de estudiosa e literata, condenando a imbecilidade
dos que renegam os espessos Shakespeares da eterna lucidez humana, a favor dos
monocórdicos exploradores das temáticas da libertação, dá-nos um sagaz retrato
desta contemporaneidade de modas e de falsas sensibilites passageiras. Um belo
texto este de Maria João Marques.
Portugal: evitando falar sobre escravatura desde 1761
Quando
é que Portugal finalmente fará o grande debate público que se impõe sobre a
escravatura e o seu papel nela?
Público,
14 de Abril de 2017
Rui Tavares
Foi
à saída da exposição sobre Lisboa Cidade Global, no Museu
Nacional de Arte Antiga. Uma pessoa abordou-me, apresentou-se, e confessou-se
chocada: a exposição era linda, as peças eram magníficas, os quadros que
representam Lisboa no século XVI valiam por si só a visita, mas onde estava uma
explicação sobre como tinham vindo cá parar aquelas riquezas e, sobretudo,
aquelas pessoas? Onde estava explicado o papel pioneiro — e cimeiro — que
Portugal teve no tráfego de escravos?
A
crítica fazia sentido. Nos painéis explicativos havia menções aqui e ali aos
escravos. A realidade não foi ignorada — mas, como é infelizmente hábito,
demasiado rápido se passou à frente. E, no entanto, eles e elas lá estavam
naquelas pinturas. Era impossível não os ver. Aqui, um homem negro acorrentado.
Ali, mulheres negras carregando água do Chafariz d’El Rei. Acolá, um escravo
cheio de dejetos porque um penico lhe rebentou em cima enquanto o transportava
à cabeça. Seria impossível representar a Lisboa do século XVI sem que ela
tivesse muitos escravos. O mesmo vale para qualquer cidade portuguesa a partir
desse tempo, sobretudo no Novo Mundo. Portugal inaugurou a era moderna da
escravatura em massa a partir de África. E foi dos países que mais participou e
beneficiou daquele “ímpio e desumano abuso”, como lhe chamou o Marquês de
Pombal após a sua abolição parcial a partir de 1761.
Terá
por isso razão Marcelo Rebelo de Sousa quando ontem, no Senegal, afirmou que
Portugal reconheceu a injustiça da escravatura nesse ano? Infelizmente,
não. Aí começou apenas uma longuíssima trajetória de avanços e recuos para o
fim das relações entre o Estado português e a escravatura. E começaram também
os silêncios e eufemismos que até hoje se têm substituído a um verdadeiro
debate no nosso país sobre a escravatura e o papel dos nossos antepassados
nela.
Em
1761 Pombal ordenou que passariam a ser livres os escravos que pisassem o solo
do reino de Portugal e dos Algarves, dando como razão “os grandes
inconvenientes” que da existência de escravos no reino resultavam “contra as
Leis e costumes de outras cortes polidas”. A escravatura permaneceu pujante no
resto do império português. Quem era escravo em Portugal continuou a sê-lo e,
pior ainda, continuou a gerar filhos escravos, até que o Marquês de Pombal
publicou em 1773 — aí sim utilizando linguagem forte contra a “infâmia do
cativeiro” e os “atrocíssimos crimes” que dela resultavam — uma “lei do ventre
livre” segundo a qual os filhos e filhas das escravas nasceriam livres.
É
preciso esperar pelo liberalismo e pelos Setembristas de Passos Manuel, Almeida
Garrett e Sá da Bandeira — o primeiro governo que em Portugal chamou a si “de
esquerda” — para que haja uma tentativa de abolir o comércio de escravos no
império. Foi num decreto de 1836 que falava do “infame tráfico dos negros”
designando-o como “uma nódoa indelével na história das Nações modernas”, e que
teve grande oposição das elites coloniais. Os setembristas duram pouco no
governo e só em 1869 (com o “setembrista” Sá da Bandeira a primeiro-ministro)
sai uma lei para a abolição da escravatura em toda a jurisdição portuguesa. O
dia 29 de abril de 1878 — fará este mês 139 anos — seria o último em que alguém
poderia ser escravo em Portugal ou no império. Em 1930 ainda havia em Lisboa
gente que tinha nascido escrava.
Marcelo
fez bem em referir-se a esta triste história. O problema é que ela não acaba
aqui. Nem temporalmente, nem em termos políticos.
A
escravatura sob outro nome continuou a ser praticada por portugueses e com
caução do Estado português. Entre as duas guerras mundiais a Sociedade das
Nações instituiu uma comissão contra os trabalhos forçados: Portugal foi um dos
principais investigados por práticas semelhantes à escravatura nas suas
colónias. E mesmo depois da IIª Guerra Mundial o uso de mão-de-obra forçada é
comum nas colónias portuguesas, pelo menos até ao início da Guerra Colonial —
outra atrocidade de que só nos livrámos a partir do 25 de Abril.
E
em termos políticos? Aí a história ainda não acabou. Na verdade, ainda nem
começou. Quando é que Portugal finalmente fará o grande debate público que se
impõe sobre a escravatura e o seu papel nela? Quando é que a boa historiografia
e o bom jornalismo que se vai fazendo sobre este assunto levará os nossos
políticos a encará-lo de frente? Quando é que aparecerão os museus e as
exposições que nos mostrem aquilo que temos até agora evitado ver? Onde estão
os nomes dos escravos e as histórias das suas vidas? Tudo isto tarda há
demasiado tempo já — e não há como escapar-lhe.
Não tenho culpa da escravatura. E não pago.
Nada
tenho contra debates sobre a escravatura, nem investigação histórica sobre o
tema. Mas vou já avisando que não tenho culpa nenhuma do que se escravizou e
comerciou até ao século XIX.
Os
problemas (ou, diriam as más línguas efabulações de mentes pouco ocupadas com
assuntos do mundo de três dimensões) que de vez em quando magica a elite
jornalística e comentadeira mais à esquerda são avassaladores. De súbito,
(invento um exemplo) lembram-se como é uma discriminação atroz atentatória dos
mais básicos direitos humanos que as obras de ficção nas bibliotecas dos
países europeus contenham mais protagonistas masculinos e brancos do que
femininos e com outros tons de pele. Donde, é melhor banir todos as obras de
ficção com protagonistas masculinos – em vez de se perceber que os autores eram
maioritariamente masculinos e brancos durante séculos, porque era essa a
maioria da população escolarizada, pelo que apta a criar romances onde escrevia
o que conhecia; e, de seguida, aproveitar para notar a perda de talento que foi
o facto de outros grupos, incluindo mulheres, não serem igualmente
escolarizados e capazes de usar a veia para contar histórias.
Se
o leitor pensa que inventei um exagero, que lá estou eu com imaginação
hiperativa, saiba que é uma ligeiríssima adaptação da petição dos alunos de Yale para anular a cadeira Grandes
Poetas Ingleses. Incomodava-os – aí vem – estudarem sobretudo brancos e machos.
Diziam estes argutos alunos que havia que ‘descolonizar’ esta área. Afinal,
quem quer ler Shakespeare ou Chaucer quando pode ler um habilidoso com as rimas
de uma aldeia da República Centro Africana?
Ou
levíssima adulteração da reivindicação dos alunos da School of Oriental and African
Studies, em cuja biblioteca eu já passei umas boas horas a ler edições da The China Quarterly, para
que se abandonasse o estudo de Platão, Kant e outros presumidos filósofos que
partilhavam a característica intragável de serem brancos. Preferem os filósofos
orientais, reclamam os estudantes orientalistas. Percebo-os. Eu própria, graças
aos ensinamentos do Instituto de Estudos Orientais da Católica, posso discorrer
sobre as várias escolas filosóficas do hinduísmo, e dizer coisas sobre
Confúcio, Mencio, Xunzi, Laozi. Já ganho ímpetos de espetar agulhas em pessoas
quando leio argumentos do calibre ‘confrontar a herança estrutural e
epistemológica do colonialismo’. Não se vislumbram tolices destas n’Os
Analectos.
Bom,
por Portugal pastoreia-se agora um tema tão pertinente quanto os anteriores.
Tome conhecimento o leitor que precisa de dedicar amplo tempo do seu dia à
problemática da escravatura. Escravatura? – pergunta o leitor espantado. E
cogita com os seus botões que nunca viu um escravo, nunca possuiu um escravo,
indigna-se quando lê reportagens denunciando escravatura no século XXI em zonas
de África ou da Ásia ou ligada ao tráfico sexual aqui na Europa. Que diabo
esperam mais do leitor desprevenido?!
Aparentemente
é nossa urgente obrigação – mais de dois séculos depois da abolição da
escravatura em território português e de um século depois da abolição em todo o
império português – debater as culpas de Portugal na história da escravatura e
do comércio de escravos. Na verdade, lendo certos textos, desconfio que se
espera de nós que qualquer boa mãe e bom pai de família se entreguem à
penitência, batendo com contrição no peito enquanto envergamos uma canga, por,
há vários séculos, um ou outro dos nossos antepassados possuírem ou
comercializaram escravos. Mais: há até quem questione se nós – contribuintes que
nunca escravizámos ninguém – deveríamos pagar indemnizações aos descendentes
dos escravos. (Este debate é tanto mais importante quanto não há uma vítima
viva do comércio de escravos português.)
Tenho
duas explicações para a invenção súbita deste problema da escravatura. Uma é a
falta que faz a certas pessoas uma vivência católica. Os jacobinos ateus, regra
geral ferozmente anti católicos, necessitam tanto do processo do exame de
consciência, arrependimento, confissão e, finalmente em apoteose, penitência que,
não sendo obrigados a vivê-lo pela sua religião, inventam pecados sociais que
obriguem à experiência completa. E, tal como geralmente aborrecem toda a gente
com o seu jacobinismo militante e expansionista, também impingem a todos os
concidadãos distraídos as suas necessidades de expiar pecados inventados. Como
os moralistas religiosos, estes jacobinos não querem que o seu próximo passe
pela vida sem levar umas ensaboadelas sobre os pecados que lhes nota.
Outra
explicação é mais prosaica e, em boa verdade, a que me leva a escrever o texto.
Estas invenções de problemas, por gente ligada à intelectualidade de esquerda,
têm regra geral um fim: tentar criar um ambiente propício para espoliar
os contribuintes mais um bocadinho, na forma de conferências, projetos de
investigação, exposições, livros patrocinados por organismos públicos, e por aí
adiante. Tudo caridosamente em prol da boa população portuguesa
conseguir finalmente debater e exorcizar o tal problema que até há semanas
nunca sentiu. Quem o inventou, generosamente disponibilizar-se-á para
investigar, escrever, perorar sobre o recém-descoberto pecado social – com a
devida remuneração, claro.
Nada
tenho contra debates sobre a escravatura, nem investigação histórica sobre o
tema. Mas vou já avisando que não tenho culpa nenhuma do que se escravizou e
comerciou até ao século XIX; não vale a pena debater indemnizações porque nem
pensar que as pago; e aconselho quem quer conferenciar e investigar a preferir
financiamento privado, que os meus impostos já são anafados e não aguentam mais
este fardo.
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