Só
o que desejamos é que o “rei nu” acabe como a rã da fábula, em confronto com o
boi da mesma: rebentando, por si só, já que parece não haver uma solução mais
racional neste teatro do mundo, de razão acobardada ou insegura, que permite
que o mosquito espicace o leão de modo a enlouquecê-lo de dor e raiva, sem ao
menos lhe estender a teia da aranha onde facilmente o mosquito pode ser colhido
eficazmente pela maquiavélica aranha. E cito a dupla moral da fábula, segundo
La Fontaine, que nela encontra duas: «Uma é que entre os nossos inimigos /os
mais temíveis são por vezes os mais pequenos», coisa que já já Golias
comprovara. «Outra, que quem se safou nos grandes
perigos, pode morrer por uma qualquer ninharia». A questão está em saber
urdir a ninharia, as teias de aranha facilmente removíveis, nos nossos dias de preocupação
pelas limpezas. Mas é uma história assustadora, a explicada por Jorge
Almeida Fernandes, de que temos tomado consciência, nestes nossos
tempos de muito susto:
OPINIÃO
Kim Jong-un não é louco nem irracional e é isso que o
torna mais perigoso
A Coreia do
Norte precisa de convencer americanos, japoneses e sul-coreanos de que é louca.
Público, 29 de Abril de
2017
Numa
entrevista à Reuters, disse o presidente Donald Trump: “Há a
possibilidade de acabarmos por ter um conflito maior, maior, com a Coreia do
Norte.” Não surpreendeu ninguém. Apenas se percebeu que não tem nenhuma
“boa opção”. Observou há dias o New York Times que se forja na Coreia
do Norte “uma crise dos mísseis cubanos em câmara lenta”. O mundo enfrenta,
de facto, a maior crise nuclear desde 1962. Trata-se de duas crises distintas e
de que temos percepções contraditórias. É sobre isto que hoje escrevo.
Em
1962 houve uma prova de força entre as superpotências que terminou num
compromisso entre Kennedy e Khrustchov. Na crise norte-coreana é o
“fraco” que desafia o “forte”. Não se vê nenhuma perspectiva de
negociação. Para os americanos, a negociação depende de Pyongyang suspender e
depois renunciar ao seu programa nuclear. A Coreia do Norte aceita negociar
tudo menos o nuclear.
O
regime dos Kim fez do nuclear uma questão existencial. Por mais
prémios que lhe prometam, está determinado a concluir o seu arsenal. Explica
que o nuclear não é moeda de troca. Tem o desígnio de dispor de mísseis e
bombas miniaturizadas com que possam atingir os EUA: para então negociar a paz,
entre potências nucleares.
À
exibição de megalomania Kim Jong-un acrescenta um quadro de apocalipse. Ao
risco de um ataque preventivo responde com a ameaça de transformar a Coreia do
Sul num “mar de fogo”. Não escaparão os militares americanos no Sul, nem o
Japão e o Hawai. Caminhamos para a fase em que um erro de cálculo sobre o
inimigo pode levar a uma catástrofe nuclear. A História dá-nos exemplos destes
equívocos.
Um velho mito
A
opinião pública ocidental — e também a japonesa e a de outros países da região
— tem por vezes uma percepção falsa de Kim e da elite norte-coreana: o mito da
irracionalidade. Choca-nos a imagem do “menino gordo”, que, em
vez de legos, brinca com bombas atómicas. Num plano mais sério, muitos
políticos e diplomatas decretaram a irracionalidade do regime para justificar a
dificuldade de lidar com ele. “Não estamos a lidar com uma pessoa
racional”, desespera-se Nikki Haley, embaixadora americana na ONU. O mesmo
repete o senador John McCain. É uma ideia fixa em muitos diplomatas: só
gente irracional trocaria substanciais incentivos económicos pelo prestígio da
bomba nuclear, para mais num país muito pobre.
Paradoxal
parece o facto de serem os Kim quem deliberadamente alimenta esta imagem, o que
deveria suscitar mais interrogações. Há anos que analistas avisam que a
Coreia do Norte é um “Estado-vilão”, que não recua perante nenhum crime, ao
qual podem aplicar todos os adjectivos menos o de “irracional”.
Para
a Coreia do Norte é útil “parecer irracional”, anota o analista americano
George Friedman. Precisa de convencer americanos, sul-coreanos, japoneses,
russos e chineses de que é altamente perigosa. “Mas a aparente
irracionalidade do regime tem de ser calibrada de modo a que a periculosidade
da Coreia do Norte não seja credível ou iminente, excepto no caso de um ataque
preventivo.”
Os
norte-coreanos sabem tirar partido do seu “ilimitado potencial de caos”, a
começar pelas catastróficas consequências de um colapso do regime. É a
capacidade de desestabilizar em cadeia toda a região do Pacífico Norte, a que
agora acrescenta a ameaça do terror atómico.
A
aposta no nuclear remonta ao tempo de Kim Il-sung, avô do actual líder e
fundador do regime. Foi travado na altura pela União Soviética, de que
dependia. O projecto foi relançado no início dos anos 1990 por Kim Jong-il,
quando o país sofria uma vaga de fome que matou dois milhões de pessoas.
O
desígnio do nuclear é garantir a sobrevivência do regime da família Kim.
Defesa perante a ameaça externa, tema de mobilização e forma de legitimação
política no interior. O regime não teme apenas os americanos, mas também
conspirações militares ou uma revolta popular: a fome desencadeou um vasto
motim de soldados. Para consolidar o poder, Kim Jong-un procedeu a uma
sangrenta depuração dos comandos militares. E, por paranóia, mandou matar o
meio-irmão na Malásia. Por ser um Kim, poderia ser usado por inimigos, coreanos
ou até chineses.
Em
1994, os norte-coreanos assinaram um acordo (Agreed Framework)
com a Administração Clinton, aceitando o congelamento do nuclear e as
inspecções internacionais, em troca de “incentivos económicos”.
Receberam os fundos e as ajudas, prosseguindo em segredo o nuclear. Foi uma
tábua de salvação para os Kim.
Nixon e Maquiavel
A
utilidade desta discussão é saber quem são Kim Jong-un, a família e a elite
dirigente de Pyongyang. Serão paranóicos como a generalidade dos
tiranos. Mas não são loucos. Fazem um teatro de loucura: “Dêem-me o que eu
quero senão morremos todos.” Por trás da máscara sabem calcular racionalmente,
ainda que a sua racionalidade possa não ser a nossa. A racionalidade dos
Estados consiste em defender friamente os seus interesses e a sua
sobrevivência.
É
uma velha questão na política e nas relações internacionais. Maquiavel, falando
dos romanos, observou que às vezes “é sapientíssimo passar por louco”.
Não era um conselho mas uma mera constatação. Ao contrário, Richard Nixon
elaborou uma “teoria do louco”. Se passasse por louco, isto é por
impulsivo e imprevisível, poderia assustar o adversário. Pediu a
Kissinger que dissesse aos norte-vietnamitas: “O meu chefe é louco.” Os
norte-vietnamitas ter-se-ão rido do estratagema.
Conclusão: a Coreia do Norte é
hoje, de facto, uma potência nuclear. Mas isso muda as regras do jogo. O
problema norte-coreano deixa de ser uma questão de não proliferação, passando
para a esfera da dissuasão. É uma nova paisagem estratégica em que a China
ocupa um papel central — será tema de outro texto.
Foi
um racional caminho de astúcias e de violação das leis internacionais que
elevou a Coreia do Norte ao novo patamar. Mas passou uma “linha vermelha”.
A partir do momento em que se torna credível a capacidade de atingir o
território continental americano, cria uma situação que Washington não pode
tolerar. Não há nenhuma boa opção para americanos e chineses. Mas o statu
quo tornou-se dificilmente sustentável.
Muitas
tragédias da História não tiveram origem em loucos mas em cálculos errados de
políticos tidos como racionais e em estratégias cheias de lógica. Hoje, os Kim
estão amarrados ao seu nuclear. Perdê-lo poderá ser o fim do regime, com ou
sem cataclismo. A racionalidade dos Kim tornou o mundo mais perigoso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário