António Barreto é um escritor de mão cheia, os seus artigos
têm o mesmo ímpeto das suas fotografias, que vai reproduzindo dominicalmente no
D.N., enriquecidas pelas suas explicações de acontecimento e arte: são claros e
circunstanciados, indignados e sarcásticos, sérios e reveladores de princípios
morais, corajosos contra os atropelos de uma sociedade portuguesa que, sufocada
de inércia e incultura, de repente se arroga no direito de perorar sobre os
desmandos sociais que ela ajudou a fortalecer, numa hipocrisia de falsa pedagogia,
de falsa virtude e de muita cobardia perante e tal juventude dos desmandos
alcoólicos ou puramente mal educados a que provavelmente também pertenceu.
Doutros temas sociais e políticos nos informa António Barreto, sobre o mundo em
que vivemos, em massacre de casos fraudulentos e criminosos que fazem o
esplendor da nossa informação diária, ou sobre a imagem de uma Europa e de uma União
Europeia cercada de inimizades externas e internas, estas últimas não menos
importantes que aquelas, provando que isso de união de Estados não passa de
balela - talvez por culpa, também, de quem não soube corresponder à primitiva
intenção generosa de auxílio que presidiu à sua construção. É o nosso caso, é a
nossa dívida assustadora, que irá sempre aumentando, é claro, no nosso espalhar
do bem-estar interno por conta alheia, externa. E sem vergonha disso.
Pobres jovens!
OBSERVADOR, 16/4/17
Um
bando de jovens foi de férias a Torremolinos, em Espanha. Só naquele
sítio e num hotel, eram umas centenas. Havia mais uns tantos, centenas ou
milhares, noutros sítios, noutros hotéis. A percentagem de energúmenos no
total é desconhecida. Tratava-se de festas de finalistas do ensino secundário,
uma variedade de selvajaria, circo e orgia que se inventou nos últimos anos.
Destinam-se a festejar e agradecer aos jovens o esforço despendido a estudar,
os sacrifícios que fizeram para frequentar uma escola, a abnegação de quase
todos para aprender e preparar-se para a vida ou para a universidade. A
determinação em obter saberes e competências merece recompensa. Cada um paga
umas centenas de euros, quantia que pode ultrapassar os mil. Estão incluídas as
deslocações de avião, barco, autocarro ou comboio, além dos hotéis e refeições,
eventualmente entradas em discotecas, lugares de reputação certificada, bares
de boa e má fama, quem sabe se também monumentos e centros de diversão. O
essencial de toda esta festa reside no "bar aberto", instituição
rainha da juventude. Não vale a pena referir em concreto o que é um "bar
aberto", para o que serve e que resultado tem na vida de um ser humano.
Em
Torremolinos, passou-se a mesma coisa que se passa em dezenas de hotéis, todos
os anos. Nem sequer foi a primeira vez, mas talvez tenha sido um pouco mais
ruidoso, com algum distúrbio e sobretudo com mais eco junto das famílias e na
imprensa. Os vândalos em férias queimaram, destruíram, pintaram,
rasgaram, atiraram ao chão, quebraram, rebentaram e sujaram uma portada aqui,
uma cortina ali, uns papéis de parede acolá, uma porta, uma televisão, uma
janela, uma varanda, uma banheira, um candeeiro e mais uns tantos objectos. Uns
estudantes foram expulsos do hotel. Outros foram recambiados para Portugal.
Pais,
jornalistas, agentes de viagem, professores e adventícios de várias estirpes e
profissões apressaram-se, em todo o país, nos jornais e nas televisões, a
compreender os energúmenos, a explicar estes comportamentos, a perceber os
desmandos e a justificar a fúria destruidora dos jovens em maré alcoólica.
Todos se transformaram em psicólogos e sociólogos de primeira gema,
especialistas em complacência. Os jornais detectaram preconceitos espanhóis
contra os portugueses. As televisões depressa tomaram o partido das indefesas
criaturas lusitanas que buscavam um pouco de divertimento depois de um ano tão
árduo para fazer dois exames. Os hoteleiros espanhóis passaram a ser tratados
como abutres exploradores incapazes de cumprir as regras contratuais. Os
comentários mais circunspectos perguntavam se então já não era possível, aqui e
ali, um pequeno excesso próprio da juventude. Os mais profundos interrogavam-se
sobre as razões da solidão contemporânea que leva os jovens a agir desta
maneira.
Do
lado português, os pais desculparam os filhos, condenaram os hoteleiros e
ameaçaram processar os espanhóis. Juntando forças aos pais, professores,
jornalistas, militantes jovens e políticos seniores condenaram os espanhóis,
pois claro, e esforçaram-se por compreender. Estes jovens estudantes têm
problemas de emprego. Não conseguem arranjar casa. Não se podem casar nem ter
filhos. Não têm meios para viver autónomos, sem necessidade de pedir dinheiro
aos pais. Não recebem bolsas de estudo em quantidades e valores suficientes.
Constituem uma geração infinitamente mais desprezada do que as anteriores.
Sentem na pele os efeitos da austeridade e da precariedade. Os adultos têm cada
vez menos capacidade para os entender. A sociedade adulta não percebe a alegria
deles, nem o sofrimento e muito menos o sacrifício. Ninguém compreende o trauma
e a ansiedade em que estes jovens vivem. E ainda há quem se volte contra eles,
só porque se embebedaram umas poucas vezes, só porque destruíram uns móveis, só
porque assustaram uns vizinhos, só porque fumaram uns charros, só porque iam
dando cabo de um hotel...
A Europa Cercada
OBSERVADOR, 23/4/17
O
presidente americano Donald Trump é, deliberada, implícita ou
involuntariamente, um dos maiores inimigos da União, assim como da NATO.
Quer mandar sozinho. Não deseja ficar condicionado pelos aliados, nem pelos
adversários, muito menos pelos outros. Há, todavia, uma eventual vantagem nessa
atitude: pode ser que agora, finalmente, os europeus aceitem que têm de fazer
um esforço para a sua defesa e para a segurança dos cidadãos e contra o
terrorismo e outros perigos!
O
presidente russo Vladimir Putin é, consciente, distraída ou acidentalmente, um
grande perigo para a Europa. Deseja partilhar o mundo com
os americanos, não quer ter confrontos com a península ocidental europeia.
Nessa atitude, há também um eventual benefício: pode ser que os europeus se
convençam de que a Europa tem de ser defendida por ela própria, que a liberdade
e o Estado social têm de ser protegidos e que à Europa não basta ser um parque
temático de paz, cultura e turismo.
O
presidente chinês Xi Jinping é, assumida, dissimulada ou inconscientemente, um
perigoso inimigo da Europa. Quer países separados, não quer
blocos. Quer parceiros comerciais dispersos, não quer uniões. Perante esta
ameaça, há pelo menos um proveito: pode ser que os europeus se decidam a não
ficar dependentes, a preparar a sua própria defesa, a competir economicamente e
a impedir todas as formas de dumping social que têm ferido o Ocidente.
O
presidente turco Erdogan é, decidida, desatenta ou fingidamente, uma ameaça
perigosa para a Europa. Faz exigências, não paga o preço da
democracia e joga com a arma dos refugiados. Nesse perigo, há pelo menos um
possível ganho: o de obrigar a Europa a defender-se, a não ajoelhar perante
ultimatos, a perder sentimentos de culpa e a resistir à chantagem étnica e
religiosa, esta insidiosa maneira de explorar os preconceitos dos outros.
Também
a partir do exterior, mas já com ramificações ou prolongamentos no interior da
Europa, o terrorismo islâmico contribui para este cerco ameaçador. Apoiado
por Estados de capitalismo predador e ajudado pela emoção dos candidatos a
refugiado. A tendência irresistível da direita é de reclamar repressão. A
propensão inevitável da esquerda é de protestar contra a segurança.
Cercada
pelo exterior, a Europa e a União conhecem também os seus perigos interiores.
Autoridades estabelecidas defendem a forma compacta, a coesão jurídica e a
hierarquia de poderio económico e financeiro. Abominam a diversidade e a
flexibilidade. Jubilam com a saída da Grã-Bretanha. Preparam-se para deixar
sair quem não se conformar. Encaram a flexibilidade institucional e política
como um castigo dos devedores, dos mais atrasados e dos menos poderosos.
De
modo convergente, apesar de origens diferentes, os nacionalistas de direita, os
populistas de todos os bordos, os soberanistas de esquerda e outros grupos
políticos mais ou menos extravagantes, mas determinados, aproveitam a incerteza
reinante e avançam nos seus projectos de destruição da União e do euro.
Hoje
mesmo, em França, começa a jogar-se importante batalha, a completar dentro de
duas semanas, na segunda volta, e a refazer dentro de dois meses, nas
legislativas. Tal como, dentro de dois meses, na Grã-Bretanha. Ou ainda na Itália,
não se sabe bem quando. Ou na Alemanha, lá mais para o Outono. Quatro das seis
grandes nações europeias vão decidir por nós. Sendo que a Alemanha vai decidir
mais. Nada conseguirá travar o caminho para a hegemonia alemã, a não ser uma
mudança de rumo e de estrutura da União.
Até
ao fim deste ano, serão tomadas decisões que vão marcar o destino. Não é o povo
europeu que vai tomar essas decisões: esse povo não existe. São os povos
nacionais que votam e decidem. Cada um por si. Não são os cidadãos europeus que
vão exercer os seus direitos e os seus poderes: esses cidadãos não existem. São
os cidadãos de cada país, uns mais do que outros, que vão decidir por todos
nós.
Justiça, senhores, Justiça!
OBSERVADOR, 30/4/17
As
notícias relativas à justiça vão-se sucedendo. Em geral, não são boas. As dos
atrasos dos processos são as mais frequentes e as que mais protestos suscitam.
São 700 dias por processo, em média, três vezes mais do que na Espanha! Mas há
mais. Em particular a luta corporativa e política que atravessa o mundo
judiciário.
Segundo
os jornais, o director nacional da Polícia Judiciária, Almeida Rodrigues,
apresentou queixa, no Conselho Superior de Magistratura, contra o Juiz do
Tribunal de Instrução Criminal, Carlos Alexandre, por este ter "violado os
deveres de correcção, imparcialidade e reserva". Repita-se: o principal
responsável pela polícia criminal processou o principal responsável pela
instrução criminal e acusou-o de "desconhecer a lei".
Também
segundo os jornais, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal,
determinou mais um adiamento do prazo estabelecido para terminar a investigação
do processo José Sócrates, enquadrado na Operação Marquês. Desta vez trata-se
de um adiamento sem prazo, ou antes, de um adiamento com prazo condicionado por
um factor incerto.
Há
poucas semanas, um despacho de arquivamento do processo Dias Loureiro trouxe
novidades à prática judicial portuguesa. Não sabemos se será
criada ou não uma nova tradição de, em despacho de arquivamento, proferir
acusações, levantar suspeitas e exprimir acusações implícitas. Mas é uma
novidade.
Todas
as semanas os jornais e as televisões enchem-se com casos de justiça. É um dos
campos mais férteis. Além dos crimes de sangue e sexo, o que atrai multidões é
o crime económico, a corrupção dos políticos e a fraude dos banqueiros.
Resume-se em poucas linhas o que se diz da justiça no nosso país. O país
é pobre. Os portugueses invejosos. O povo inculto. Os ricos poderosos. Os
políticos desavergonhados. Os juízes incompetentes. As polícias corruptas. A
justiça burocrática. O Ministério Público prepotente. Os advogados gananciosos.
E os jornalistas safados.
Nos
estudos de opinião, os magistrados e os tribunais aparecem hoje quase sempre em
último lugar nas preferências dos cidadãos. Depois dos políticos e dos
deputados! Depois dos ricos e dos empresários! Depois dos advogados e dos
jornalistas!
Quase
todos os processos relativos a fortunas, bancos, corrupção, fraude fiscal e
branqueamento de capitais demoram, duram, atrasam-se e arrastam-se penosamente,
para alegria de todos quantos se entusiasmam com as fugas de informação e as
violações de segredo de justiça.
Vivemos
tempos confrangedores. Criticar os atrasos da investigação no caso Sócrates é
ser amigo de Sócrates. Eventualmente cúmplice. Protestar contra os despachos no
caso Dias Loureiro é ser amigo de Dias Loureiro. Eventualmente sócio. Parece
que criticar o que de mal se faz no processo, na investigação e na instrução é
apoiar os arguidos. Bandidos ricos e pobres são iguais para a justiça.
Inocentes fracos e fortes são iguais para a justiça. O da direita e o da
esquerda são iguais para a justiça. Criticar a má justiça não significa apoiar
criminosos e corruptos.
Olha-se
em volta à procura de quem possa ter uma acção eficaz e isenta. Conselhos,
ordens, associações e sindicatos? Nem pensar. Do Parlamento nada se espera:
os deputados sempre tiveram medo dos magistrados e das polícias. Por onde
caminhar? Qual o caminho das pedras?
As
reformas globais já não servem. Nada melhor do que uma reforma integral para
ficar tudo na mesma. Passo a passo, gesto a gesto, melhoramento em
melhoramento, talvez...
A
ministra da Justiça é uma magistrada séria e competente. Respeitada
e experiente. Dela nunca se receia acção que fira a independência de julgamento
da magistratura. Mas dela se pode esperar que mande efectuar uma espécie de
auditoria aos casos mais gritantes de atraso e incompetência. Ou que levantam
fundadas dúvidas. Umas poucas dúzias de processos. Os mais complexos. Os mais
notórios. Os mais atrasados.
O
Presidente da República é um jurista experiente. Sempre cultivou uma ideia
forte do Estado de direito e da democracia. Ele sabe o que não deve fazer. A
esperança é a de que explore o que pode fazer. Por exemplo, um livro branco
sobre aspectos importantes da justiça. O atraso? A desigualdade? O crime de
colarinho?
A
autogestão da justiça foi a pior solução inventada para fundar a independência
dos tribunais. Já não é cedo para liquidar esta espécie de impunidade.
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