Hoje
ouvi da Mariana Mortágua um discurso em tom baixo e contido, ciciante e trabalhado
num sentido de largo alcance do espectro da sua voz, cuja eficiência nos atinge,
na constatação sobre a nossa recuperação económica - apesar da distribuição de
dinheiro pelos de ordenados mais somíticos, segundo disse, causando rombo nas
contas - que me lembrou facilmente a voz melíflua de Álvaro Cunhal, em tempos,
o qual também não precisava de elevar a sua, creio que a tinha estudado na
Rússia, pois logo hoje, a propósito da questão sobre o Kim Jong Un, escutei
a teoria de Putin sobre o mesmo dito lançador de bombas nucleares que se
desfazem no espaço, e a preocupação de apelo dos outros povos asiáticos,
pedindo ajuda. E a voz de Putin tinha igual tom seráfico e velado, de uma
cordialidade a dar para o sinistro, caso haja intervenção alheia, donde
depreendi que as vozes másculas como a de Macron não são para aquela orientação
política habituada a tratar na sombra, quer seja na dos conventos de antanho, quer
na de outras capelas poderosas de ogano, incluindo a de Mortágua, salvas as
merecidas proporções. Vasco Pulido Valente, na sua resenha
histórica sobre as picardias políticas presidenciais norte-americanas que por
nós passaram, com maior ou menor clareza, mas que gostamos de rever, com a
respectiva análise eficiente, compara com as que se vão seguir, de Trump, mais
preocupantes, mas lá temos a voz de Putin que ouvi hoje, serena e contida, a
falar de moderação, ou mesmo a da Mortágua, do mesmo diapasão de eficiência orgulhosamente
arrastada, embora naturalmente sem o alcance da do patrono do leste europeu,
pobrezinhos que somos, metidos na nossa vidinha, de muito amor, segundo Alberto
Gonçalves.
Quanto aos traços
facetos deste, que o revelam como pessoa profundamente honesta nas suas tomadas
de posição, é sempre um prazer lê-lo e meditar no que diz. Meditemos, pois:
Trumpolinices
Vasco Pulido Valente
OBSERVADOR,14/5/2017
… hopes expire of a
low dishonest decade … (W. H.
Auden)
O
mundo está perigoso e cada vez mais complicado. No meu tempo, antes do
feminismo, o grande segredo de Washington era o número de damas com quem Kennedy
diariamente dormia e a partilha amigável de uma delas com o chefe da Mafia
de Chicago, que segundo a imprensa bem-pensante lhe comprara uns milhares de
votos no Illinois. Mas, no fundo, ninguém se preocupava muito com esta
história que o público até achava divertida. Norman Mailer escreveu
um romance em que a intriga assentava parcialmente nela e Coppola acabou por
tornar a Mafia Italiana numa parte legítima do folclore americano. Anos
depois, veio Nixon com o seu bando de ladrões, que assaltaram o
escritório de um psiquiatra e a sede do Partido Democrático no complexo Watergate.
Nixon, que indirectamente lhes dera ordens, mentiu com quantos dentes
tinha na boca e foi corrido da Presidência por indecente e má figura e também
foi arrumado depressa na prateleira das curiosidades: aquilo não passava de um
caso insignificante e sórdido.
Agora
com Trump a questão é, além de inquietante, claramente sinistra. O indivíduo
é acusado de ligações à Máfia Russa, não à doméstica Máfia
Italiana, porque a Máfia Russa domina o mercado imobiliário de Nova York em que
ele fez fortuna; e, pior ainda, de conluio com Putin (um homem forte que ele
admira) para perturbar, ou falsificar, a eleição presidencial. Anteontem
Trump pôs na rua o director do FBI, James Comey, que estava a investigar o
assunto. As explicações para este inesperado despedimento (mesmo para Comey,
que soube dele pela televisão) não sossegaram nem o bom povo, nem o Senado, nem
os jornalistas. Trump embrulhou-se desde o princípio e, no meio da confusão,
deu uma entrevista em que declarou que Comey (a vítima da sua fúria) o ilibara
três vezes de qualquer espécie de manigâncias com a Rússia. Isto cheirou
mal a toda a gente e convenceu os gurus políticos (que na América são uma
força) que Trump se metera de facto em combinações com Putin e tremia com a
ideia de que elas fossem descobertas. Há quem fale num novo Watergate.
Absurdamente, porque o Watergate era uma simples ladroeira, e as
supostas actividades de Trump envolvem, ou podem envolver, a segurança do
Estado americano e por consequência do mundo. Começou um caminho arriscado em
que o zelo da televisão e da imprensa se junta ao de uma parte do Senado e da
Câmara para destapar o que Trump pretende alegadamente esconder. A violência
dos debates não promete nada de bom.
Fátima, um assunto que não me
diz respeito
OBSERVADOR, 13/5/2017
É
de notar que, com típica valentia e apreciável obejctividade, o ateísmo
militante não rejeita todas as religiões de igual modo. Na maioria dos casos,
limita-se a rejeitar o cristianismo e o judaísmo
Primeiro,
a declaração de desinteresses: excepto por um professor no ciclo preparatório,
nunca conheci um padre. Já vi padres, sei que existem, mas nunca falei com um
ou sequer lhe fui apresentado. Parece esquisito e, num país no fundo católico,
se calhar é esquisito. Mas o facto ilustra a distância a que cresci da
religião, organizada ou desorganizada. Nunca frequentei a catequese. Nunca
assisti a uma missa “regular”, das que não são cerimónia matrimonial ou
fúnebre. Nunca experimentei apelos espirituais. Nunca passei pela Cova da Iria.
E nunca me julguei superior por isso.
Ser
ateu, à semelhança de não ser sócio da Académica de Coimbra, é um acaso e um
estado de omissão, que não implica qualquer opinião depreciativa sobre o seu
oposto (antes que me peçam satisfações ou o escalpe, juro não sentir nenhuma
repulsa pela Académica de Coimbra). Se tanto, o que a religião me suscita é
indiferença. Curiosamente, inúmeros ateus discordam e transformam a mera ausência
de fé numa fé inabalável, ia escrever cega, na razão deles. Nos tempos que
correm, há gente altamente empenhada em enxovalhar os crentes e, possivelmente
por ganharem à comissão, convertê-los à descrença.
É
engraçado que o proselitismo ateu queira chamar a si pessoas que à partida
considera rematados idiotas, um contrassenso que estranhamente escapa a
criaturas tão brilhantes. É engraçado que muitos dos ateus em causa se aflijam
com os crimes da Igreja e em simultâneo ignorem o rastro de sangue das variantes
“clássicas” ou contemporâneas do credo marxista, das quais observam com rigor
os respectivos dogmas e sacramentos. Porém, verdadeiramente hilariante é que o
próprio ateísmo tenha assimilado os padrões, as regras e as estratégias da
religião convencional. Quando bandos de ociosos decidem imitar os evangélicos e
enfeitar autocarros de quinze países com a frase “There’s probably no God”,
sabemos estar no limiar da comédia involuntária. Porém, quando a campanha
apenas se circunscreve a países ocidentais, começamos a suspeitar que nem tudo
aqui é cómico e involuntário.
Convém
notar que, com típica valentia e apreciável obejctividade, o ateísmo militante
não rejeita todas as religiões de igual modo. Na maioria dos casos, limita-se a
rejeitar o cristianismo e o judaísmo, leia-se os credos “familiares” à
civilização que permite a militância. Os credos restantes, talvez
a título de exóticos, talvez por receio de camiões desgovernados, são
normalmente poupados à sobranceria. Se não fosse absurdo, uma pessoa ficaria
com a impressão de que estes peculiares ateus se ofendem menos com o culto do
divino do que com as sociedades em que o divino não é omnipresente na vida
“material”. Se não fosse absurdo, uma pessoa ficaria com a impressão de que o
problema destes peculiares ateus é com a liberdade. Se não fosse absurdo, uma
pessoa ficaria com a impressão de que estes particulares ateus não prezam
excessivamente o ateísmo.
Sendo
absurdo, mesmo assim algum ateísmo não disfarça a aversão que lhe suscita um
lugar como Fátima. Para um ateu comum, Fátima foi uma reacção da Igreja ao
anti-clericalismo da época, aliás decalcada de Lourdes até à minúcia: o
contexto jacobino, a área remota, as crianças pobres, a sincera ou simulada
hesitação inicial das autoridades eclesiásticas, etc. – o resto é respeitável e
é com cada um. Para um ateu militante, Fátima é uma exibição de primitivismo,
um desfile de sacrifícios sem sentido, uma exploração de crendices, uma
manipulação comercial, em suma um horror, palavra raramente aplicada ao
misticismo oriental ou às cerimónias tribais da Papuásia. E sobre Meca, por
motivos óbvios, a deferência impera.
No
centenário das aparições, se quiserem sem aspas, Fátima recebe o Papa e, por
cá, metade dos ateus militantes aproveita sem surpresas para se aliviar de
desprezo e chalaças. Surpreendentemente ou não, a metade que sobra decidiu
mostrar uma inédita “compreensão” do fenómeno. Porquê? Porque o rebuliço “jornalístico”
alimenta a propaganda oficial e porque o Papa em questão ocasionalmente se
deixa confundir com um esquerdista. Pelos vistos, e eis o quarto milagre de
Fátima, certos ateus toleram a religião em prol do socialismo. Eu não tolero o
socialismo a troco de nada: há dois dias que não ligo a televisão.
Notas de rodapé
1. Após incensar Rui
Moreira durante quatro anos, bastaram algumas horas – e uma humilhação merecida
– para que o PS invertesse o discurso e passasse a considerar o autarca um
perigoso antidemocrata, cuja acção maligna reduzirá o Porto a cinzas. É sabido
que a política é propícia à conveniência, à mentira e à falta de vergonha na
cara. Mas isto é espectacular.
2. O presidente
Marcelo confessa-se “apaixonado pelo Papa”. Sua Excelência, a acreditar em
notícias soltas, também parece apaixonado pelos portugueses com sucesso, pelos
portugueses sem abrigo, pelas imortais vitórias na bola, por Guterres, pelas
feiras de enchidos, pelos falecidos comunistas Baptista-Bastos e Fidel Castro,
pelo recém-nascido Macron, pela nova administração da CGD, pela comunidade
islâmica indígena, pelas esposas de Cavaco e Sampaio, pelo Benfica, por Cabo
Verde e Senegal, pelo espírito ecuménico da pátria, pelos bombeiros, pelo
Teatro Aberto e, claro, pelo governo.
O
governo, ainda que de modo mais comedido, mostra-se igualmente apaixonado
por Marcelo, por Guterres, pela “aposta” na ciência, pelos parceiros de
extrema-esquerda, pelos senhores da banca, pelas Águas do Ribatejo, pela função
pública, pelo Benfica e por qualquer indivíduo ou instituição que não lhe cause
maçadas. Os “media”, genericamente, estão apaixonados pelo
Papa, por Marcelo, pelo governo, por tudo o que seja informação “positiva” e
pelos portugueses. Os portugueses estão apaixonados pelo Papa, por Marcelo,
pelo governo, por Guterres, pelo Benfica, por Cristiano Ronaldo, pelo
intérprete de uma cantiga na Eurovisão, pela fisga de Joana Vasconcelos, pela
“maior operação de segurança de sempre” e pelo que calha.
Quase
todos, em suma, estão apaixonados por quase todos. Há imenso amor no ar.
Comparado com isto, o mito de que a orquestra do Titanic tocava uma valsa em
tom menor durante o naufrágio é brincadeira de crianças. Nós somos gente
crescida, que cantará o fado e dançará o vira mesmo depois de o país afundar. O
que é que os portugueses andam a tomar? Juízo não é, com certeza.
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