Dois
textos já distantes entre si - um de Fevereiro, outro de Maio - de Maria
João Avillez, o primeiro tinha-me escapado, procurei também o mais recente
na ânsia de ir clareando conhecimentos que as convulsões dos novos tempos
tornam cada vez mais atemorizantes mas igualmente efémeros, logo ofuscadas por
novos motivos de preocupação e alarme. Os artigos de Maria João Avillez, para
além da graciosidade da sua escrita, reflectem uma clareza de análise, a par de
um sentido crítico empenhado em não se deixar iludir no escorregadio dos conceitos
que sob uma aparência de modernidade e virtude escondem de facto quanta perversão
ou interesse pessoal semeadores de desordem, num estranho mundo que deixou de
ser a estrada pacífica das histórias de encantar da nossa infância, ou das
desordens pessoais da idade adulta, que não punham em causa a estabilidade do planeta.
Mas agora tudo se processa de uma forma cada vez mais poderosa, com os inventos
técnicos que vão contribuindo até para o extinguir consciente do oxigénio do ar
ou das espécies marítimas, para alimentar o bicho homem, por sua vez imparável
de ousadia e atropelo, por efémero que seja cada projecto, a que outro se
sobrepõe logo a seguir. Como tão expressivamente assinala Maria João Avillez, «como
um curto circuito que tivesse pulverizado o sistema das nossas coordenadas,
a paisagem tornou-se irreconhecível.» E ei-la que a descreve, nos
seus novos acontecimentos europeus, as eleições francesas na sua fragilidade de
muitos pontos de vista e uma resolução de firmeza de um jovem condicionado por
tantos entraves de tão diversas e assustadoras perspectivas, tentando, talvez,
salvar o projecto europeu, que é generoso mas causador também de tropelias
infindáveis destruidoras de paz. Tudo isso e mais ainda os nossos próprios
casos caseiros, Maria João Avillez expõe com sabedoria, frontalidade e muita perícia
literária, que é um gosto reler:
A incerteza como novo
mandamento
OBSERVADOR, 16/2/2017
Trump
desconfia de cada um de nós e aponta o dedo acusador; a líder da Frente
Nacional quer o fim do nosso mundo; o chefe do Podemos vomita-o com raiva. Tudo
no mesmo saco? Sim, o resultado é o mesmo.
1. Como um curto
circuito que tivesse pulverizado o sistema das nossas coordenadas, a
paisagem tornou-se irreconhecível. Antes tivesse anoitecido sobre ela. Apesar
do escuro e da noite lá íamos dando com o caminho ou com a forma de nos
desviarmos dele, quando era o caso. Havia instrumentos de navegação com que
contávamos e bússolas fiáveis. Hoje, subitamente, ou demasiado subitamente, é
cada vez mais “física” a sensação de perda e mais real a certeza de que é
indispensável reconstruir novos, como dizer?, “modelos” onde encaixar esse
outro mundo que flagrantemente aí está. E que também flagrantemente exibe
preferências e referências com que não lidámos e configura destinos que nos são
estranhos. Que códigos partilhar com os eleitores que já elegeram Trump e talvez
venham a preferir Le Pen? Os meus não certamente. E apesar de dizerem “gasto” o
“modelo” que os suporta, são esses códigos que elejo e insisto em praticar,
vendo como impossível reconhecer-me noutros.
Que
pátria é afinal a do Podemos espanhol, para que vida nos quer capturar Marine
Le Pen, com que valores habitar a “terra” de Benoît Hamon, se um dia ele vier a
conquistá-la? Que realidades tão distantes são essas? E que caminhos são
aqueles, sempre feitos pelas margens como os deles, ao contrário da estrada
aberta às várias vias dos nossos valores e convicções? Será que aquilo que
representamos caiu em desuso, já não serve com um casaco apertado e um dia
será, com fúria e acinte, varrido do mapa da era nova?
Há
cada vez mais a sensação de um “separatismo” hostil, como se transportássemos a
“culpa”, como se devêssemos expiar termos optado por seguir o GPS do mundo
ocidental. Trump manifestamente desconfia de cada um de nós e aponta-nos o seu
dedo acusador; a líder da Frente Nacional quer o fim do nosso mundo, o chefe do
Podemos vomita-o com raiva. Tudo no mesmo saco? Sim, de certo modo pois o
resultado é o mesmo: diluir- ou deveria dizer acabar? – o que ocidentalmente
representamos. Corromper a nossa morada, mesmo que hoje acantonada em perguntas
sem respostas. Sim, sabemo-lo bem, as respostas estão, como ocorre nos
supermercados, “ em falta “ ou tornaram-se num produto “descontinuado” . Mas
não é por isso que desisto. Da Europa, a apesar da anemia, do Ocidente, apesar
da fraqueza. Quais respostas? Não sei, sei apenas o que se sabe: de certo,
apenas o incerto. Uma incerteza que se tornou numa espécie de novo
mandamento dos novos tempos.
Mas
sei que passam os dias, passa o tempo (tempo demais?) e as “diferenças” podem,
verosimilmente, de resto, parecer-nos irreversíveis. Não se vê como partilhar
futuros, nem se vislumbra de que valores poderia ser tecido um chão comum. Nem
– ao menos – com que alicerces construir a ponte — mas qual? — para os de
repente tão estranhos habitantes do inclassificável mundo que se ergue diante
do nosso espanto.
A
Europa está cansada? O “modelo” tem de ser revisto e revigorado? É preciso
imaginação e reflexão, energia e ousadia políticas para o achamento de outro
caminho, à altura de outros “achamentos” de que a Europa já foi capaz? Gerando
a melhor, mais culta, mais rica, mais apetecível e invejada das civilizações,
Europa continente magnifico? Sim. Toda essa “revisão” — para dizer o mínimo — é
imprescindível e por isso urgente. Convinha porém não esquecer o essencial. A
ameaçada Europa somos nós, é lá que moramos e é pertença nossa. Sei
que parecerá quase ingénuo ou até já deslocado esta espécie de profissão de fé
ou mesmo a sua oportunidade. Seja como for, com maior ou menor fé, com euro ou
sem euro, com esta ou outra “união”, com este ou outro “perfil” talvez seja
melhor — de uma vez por todas — denegri-la menos e cuidá-la mais. Compreendendo
— como dizia alguém mais inteligente que eu – que apesar das suas fraquezas tão
nossas conhecidas, dos erros cometidos, das debilidades que sulfuricamente a
vão corroendo, a Europa é a solução e não o problema. Troquemos a lamúria pela
sua defesa.
2. Há cada vez a
percepção de que, na sociedade atual, se vai “implantando” uma linguagem que
reflete — e pior, transmite e incessantemente retransmite — o crescimento de
uma quase demencial agressividade. Vê-se à vista desarmada, nos écrans, na rua,
em comícios, nos liceus, em reuniões comunitárias e claro, na montra da media.
Que a cultiva, promove e amplia. Protagonistas, produtores, agentes, obreiros da
nova era surgem-nos cada vez mais contaminados pelo ressentimento, deixando
gangrenar divisões e praticando a acusação torpe e passando o seu imediato
certificado de culpa com a espantosa desenvoltura de quem respira. E praticando
ainda, com cada vez maior frequência, o insulto ofensivo, a humilhação, o
desprezo, a condenação, o ódio. Brandindo as palavras como armas remetidas pela
mais letal das rejeições.
É
a guerra. E por isso, é assustador.
3. A novela da Caixa
Geral de Depósitos está perigosa. Nada que os capítulos anteriores não
antecipassem (ou é surpresa para alguém o total envolvimento do Presidente da
Republica e sobretudo o modo como se foi nela enredando?) mas…a quem se poderá
pedir que ela saia de vez dos nossos écrans e da praça pública? Recentemente
exibiu-se entre nós uma telenovela também nacional que — caso nunca visto em
parte alguma — contou com mais de 500 episódios. Pois bem, a da Caixa está
candidata a competir seriamente com este excesso. Como me acho (e julgo que de
resto o país inteiro) devidamente informada sobre a mentira do ministro, as
inabilidades de Domingues, as manhas da geringonça e as exaustivas e incautas
intromissões, ditos por não ditos, avanços, recuos, avisos, afirmações e contra
afirmações do sempre histriónico Presidente da Republica – dispensar-se-iam
mais episódios. Se “alguém” com mais juízo e maior respeito pelo cidadão
eleitor compreendesse que o país também dispensaria, agradecia-“se”.
4. Bem pode Carlos César proferir frases de
“efeito” e falar de outras coisas que a tensão política entre o PR e o PM,
aterrou. Ignoro se é uma escala ou um destino e até aterrou politicamente antes
do (meu) horário. É caso para tomar boa nota pois pela primeira vez. todos os
erros foram cometidos. E pensar que a procissão ainda mal saíu da igreja.
O anjo
OBSERVADOR, 10/5/2017
Emmanuel Macron sabe ao pormenor o que está a fazer: encarnar num mito. Um misto de pai, chefe,
condutor do povo, inspirador das massas. Emmanuel quer dizer Deus connosco.
Pode ser perigoso.
1. Macron tinha-se tornado
obrigatório. As circunstâncias políticas e o que de raríssimo foi capaz de
fazer politicamente transformaram-no no destinatário quase “natural” do voto,
fosse na pele de bem maior, fosse na de mal menor. Marine Le Pen
ajudou ao triunfo, ao tornar-se devastadoramente inverosímil no debate
televisivo que opôs os candidatos mas o facto é que está ancorada no radar
político. Será melhor fazer caso dela, a Frente Nacional veio foi para ficar
e daqui a cinco anos há mais. E até lá ninguém quererá ter a rude Marine a
comandar o batalhão da oposição no hemiciclo francês. O combate ou é agora pela
direita ou não é. Os conservadores estão obrigados a derrotar ou reduzir
drasticamente a direita nacionalista. Na França de Macron e com Macron, o
jogo de xadrez será jogado com maior urgência e veemência entre as direitas. O
quadro no PSF (qual PSF, para já?) é tão pouco claro que torna absolutamente
impossível vaticinar ou prever hoje o que quer que seja.
Seja
porém qual for o resultado de Junho, festeje-se o momento de Maio: salvou-se o
essencial, o que é muito e, na ocorrência, é quase tudo: não implodiu a V
República e a “Europa” poderá não ir ao fundo de vez.
Agora
há Macron, o seu olho azul e a sua (intencional, estou certa) postura de anjo
mítico descido do céu da França conforme vimos no seu tão doce, contido,
bondoso primeiro discurso de vitória. Não estou a brincar nem a fazer uma
redação que me chumbaria num exame da primária, estou a descrever o que o mundo
viu: um anjo de olhar claro e maneiras apropriadas a um anjo apaziguador. Messias
portador da nova luz de um Movimento com as suas iniciais.
Uma
hora depois, no Carrocel do Louvre (a escolha do local e a moldura da pirâmide
de Pey, deixaram uma nova assinatura política), o jovem presidente pôde
soltar-se, o anjo já dera sinal de si. Fala-se em De Gaulle e mesmo em
Napoleão quando se evoca o novo Chefe de Estado e ele próprio não desilude na
matéria: a quem insistia para que concretizasse o seu programa político,
costumava cortar cerce: “não se pedia ao general Gaulle que tivesse um
programa”.
Sim,
Emmanuel Macron sabe ao pormenor e ao minuto o que está a fazer: encarnar num
mito. Um misto de pai, chefe, condutor do povo, inspirador das massas. Emmanuel
quer dizer Deus connosco. Pode ser perigoso.
Ainda
lhe faltam tropas e nesse sentido, qualquer das etapas das legislativas será
bem mais delicada e pesada de consequências do que foi a segunda volta
presidencial. Produzir um partido, muni-lo de generais políticos e de exércitos
parlamentares eis o “enjeu” que reforçaria o mito do anjo — encenador de uma
França esperançosa e aberta em vez de ressentida e dividida. (Macron precisará
de 289 deputados para governar com a “sua” maioria conforme ditam os
mandamentos da V República que cumula os seus chefes de Estado com amplos
poderes).
Depois
de desenferrujar a França (conseguirá?) compete-lhe ainda mais. Numa frase
“roubada” a Joschka Fischer compete a Macron “a imensa responsabilidade de
juntar os franceses” (saberá?).
2. Sinal da leveza dos
tempos (em que alguns vêem uma vantagem e um sopro de”modernidade” e eu não sei
que veja) a equipa de Macron, aqui há meses atrás, atirou para a Net com um
“casting” gigante onde apenas se pedia o preenchimento de um formulário que, a
seguir, um “comité“ macronista se encarregaria — como se encarregou – de triar,
separando trigos e joios. O “En Marche” foi (em parte) feito assim. Um número
indefinido (mas talvez não modesto) de futuros deputados têm a rede como fonte
e simultaneamente selo de garantia.
Nada
destas estranhezas impede a contestação de um feito pessoal e político de que
há pouca memória e ao qual não pode obviamente ser alheia uma forma de
qualidade intelectual e cultural e uma “forma mentis” aberta, ágil, enérgica.
Abertura em vez de fechamento, avanço em vez de retrocesso. Embrulhadas ainda
na inexperiência e na imaturidade e revistas pela tentação do messianismo.
Espera-se
porém que o firme europeísta que é Macron seja agora capaz — agora que a França
talvez se tenha tornado numa interlocutora mais credível — destrancar a porta
de saída do letárgico impasse europeu. Lubrificando o eixo franco-alemão, e
assim redimindo da sua actual inoperância o diálogo entre os dois países. O
que a Alemanha e a França sabem que têm de fazer é tanto que a tarefa há-de
uni-las mais que dividi-las. Após as legislativas de Junho em França e de
Setembro na Alemanha, há que meter mãos à obra para convencer alemães e
franceses a que nos convençam que a Europa ainda vale a pena. Iniciativas,
sinais, passos em frente, precisam-se. Oxigénio também. Um traço de união entre
o norte e o sul seria um bom sinal. O que está e como está não faz prova de
vida. Ou Macron não quer mostrar o que (nos ) diz que vale?
3. Li no semanário francês
Le Point, uma espécie de bíblia a que há muito me afeiçoei, esta pérola de
Oscar Wilde: “ninguém sobrevive ao facto de ter sido estimado acima do seu
valor”. Lembrei-me de Emmanuel Macron. Oxalá seja capaz daquilo que diz
querer. Das convicções que diz ter e da França que quer praticar. Oxalá que
as fadas que certamente em grande número se debruçaram há trinta e nove anos
sobre o seu berço, não se distraiam pelo caminho. Que a sua oferta política “et
de droite et de gauche” não desague no desastre; que aquela promessa
obsessivamente repetida de que o seu Movimento “ não será de direita nem de
esquerda”, não constitua a melhor receita para ele estar de acordo com toda a
gente; que a inexperiência não lhe confunda o rumo, que a deslumbrada admiração
por si próprio não o cegue nas escolhas.
Que,
que, que. Mas já se sabe, na política, como na vida, há demasiados ques.
4. Tenho medo que não se
tenha dado pela nossa conversa como eu gostaria e ele inteiramente merece.
Entalada entre as eleições francesas e Fátima (actualidade oblige), o
diálogo que tive com Diogo Infante aqui no Observador merece
atenção. Assumo plenamente a responsabilidade – mais a imodéstia de que serei
acusada – ao recomendar que se apeiem nessa estação. Por ele, claro está. Diogo
Infante é um caso não apenas por ser um actor absolutamente excepcional, capaz
de nos agarrar e depois deslumbrar em todos os registos cénicos – e já não
seria pouco – mas by him self. A excelência
do actor casa com a qualidade do homem. Quando o vejo no palco ou na televisão
às vezes dou comigo a pensar – como agora, ao lado de Alexandra Lencastre,
na espantosa versão de “Quem tem medo de Virginia Woolf” no Teatro da
Trindade – quantas pessoas ali sentadas se aperceberão verdadeiramente do
ser humano que o Diogo é: tanto encanto pessoal com aqueles seus modos de
príncipe, tão inteligentemente culto, tão interessantemente conversador. E discreto,
sério, subtil, sóbrio, nem uma palavra a mais, nenhuma a menos. O melhor que
pode acontecer a uma entrevistadora de vocação.
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