segunda-feira, 8 de maio de 2017

«Verdades puras são e não defeitos»



Este “mais do mesmo” do nosso repisar numa ferida insanável, lembrou-me Camões e o seu soneto Enquanto quis Fortuna”, pese embora a discrepância entre uma temática em torno do Amor, ainda que platónico, e os seus efeitos castigadores do próprio amante, e a temática do Amor próprio, entre nós recentemente disseminado pelos divulgadores do estribilho da fraternidade universal, na igualdade de direitos sem quaisquer discrepâncias, com os seus efeitos perversos sobre um status económico que não alicia engenhos nem competências mas apenas serve para massificar e usurpar, rebanho dócil à voz do pastor, sem mais ambição que a de comer e parir. E Vasco Pulido Valente o descreve bem, numa tautologia de desencanto, sabendo da sua ineficácia, neste pobre país esmoler do “coitadinho”, todo ele, de longo tempo, vivendo da exploração e do empréstimo, este agora mais do que nunca, que não se pensa ressarcir, hipotecando assim o futuro das gerações vindoiras. Vasco Pulido Valente nos condena:
Diário de Vasco Pulido Valente
A compressão de Portugal
Vasco Pulido Valente
OBSERVADOR, 7/5/17
… hopes expire of a low dishonest decade… (W. A. Auden)
Catarina Martins comunicou ao povo deslumbrado que não havia liberdade sem igualdade. Em 1793 Robespierre disse exactamente o mesmo e começou logo a cortar cabeças. A nossa Catarina, na sua imensa moderação, ainda não cortou a cabeça a ninguém. Mas sempre vai espicaçando o governo e o Presidente da República para tornarem Portugal inabitável e paralítico. As criaturas que hoje nos governam não podem ver um tostão a ninguém. Marcelo anda por aí a fazer propaganda contra os gestores que ganham muito, e suponho que está a chocar uma lei para acabar com essas imundas sanguessugas dos pobres. Pensa ele que se trata de uma questão de moralidade. Pensa mal. Do que se trata é da nobre inveja lusitana e do horror por qualquer manifestação de inteligência, habilidade e saber. A igualdade também não entra nesta sopa turva.
Se entrasse ficava por esclarecer por que razão o Estado se preocupa tanto com os funcionários públicos, com as carreiras dos funcionários públicos e com os salários dos funcionários públicos. Mais: não há nenhum princípio, reconhecido ou inventado, que obrigue o contribuinte a garantir a segurança de emprego a quem quer que seja; estas ansiedades reflectem sobretudo o ideal de uma vida sem obrigações, nem sobressaltos, que não implica qualquer espécie de competição e em que a antiguidade se venera e premeia. Nada que não apeteça a uma actriz, originária do teatro subsidiado e aos fantasmas da universidade, que gostam muito de dar aulas, mas nunca publicaram nada que se lesse.
Esta compressão de Portugal – que as leis do trabalho se destinam a completar – deixa de fora o essencial: as virtudes de uma sociedade produtiva, capaz de se adaptar à mudança do mundo. A propriedade, o lucro, o risco, a invenção, e a ruptura com os métodos tradicionais não se encontram em indivíduos com protecção estatal e corporativa. Talvez se encontre nos precários que não querem um contrato perpétuo e a quem não interessa em especial o respeito do Portugalinho que o dr. António Costa laboriosamente nos prepara. As coisas – principalmente a imprensa e a televisão –começam a adquirir aquele tom uniforme e ruço, típico da tropa e do socialismo.
Mas leiamos Camões e confrontemos a pertinência de um pensamento sóbrio e elegante, comprovativo não da tal igualdade entre os homens, mas das discrepâncias naturais entre os espíritos das criaturas, cujos méritos deveriam ser recompensados “segundo o amor (que) tiverdes”, isto é, segundo a qualificação própria, obtida pela conquista pessoal, de estudo e engenho, como foi o de Camões, e não segundo um igualitarismo massificador, de embrutecimento alvar colectivo, sem outra ambição que não seja a da materialidade, de uma injustiça indigna da racionalidade a que se diz pertencer o ser humano:

«Enquanto quis Fortuna que tivesse / esperança de algum contentamento, / O gosto de um suave pensamento / Me fez que seus efeitos escrevesse. /
«Porém, temendo Amor que aviso desse / Minha escritura a algum juízo isento, / Escureceu-me o engenho co tormento, / Para que seus enganos não dissesse. /
«Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos / A diversas vontades! Quando lerdes / Num breve livro casos tão diversos, /
«Verdades puras são, e não defeitos.../ E sabei que, segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento de meus versos!

E todavia, morreu pobre, esse espírito criador de tanta beleza, que não merecia isso, pesem embora as filosofias da fraternidade igualitária das nossas Catarinas Martins, tão limitadinhas no seu linguajar discursivo, como pingos de chuva caindo monocordicamente dos beirais, todos para a mesma banda, mau grado o ribombar distante dos trovões, comprovativos de tanta dispersão de valores e competências, por este mundo de Cristo, que de modo nenhum abona essa igualdade, todos bem o sabemos.

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