Este “mais do mesmo” do nosso
repisar numa ferida insanável, lembrou-me Camões e o seu soneto “Enquanto
quis Fortuna”, pese embora a discrepância entre uma temática em torno do Amor,
ainda que platónico, e os seus efeitos castigadores do próprio
amante, e a temática do Amor próprio, entre nós recentemente disseminado pelos
divulgadores do estribilho da fraternidade universal, na igualdade de direitos
sem quaisquer discrepâncias, com os seus efeitos perversos sobre um status
económico que não alicia engenhos nem competências mas apenas serve para
massificar e usurpar, rebanho dócil à voz do pastor, sem mais ambição que a de
comer e parir. E Vasco Pulido Valente o descreve bem, numa tautologia de desencanto,
sabendo da sua ineficácia, neste pobre país esmoler do “coitadinho”, todo ele,
de longo tempo, vivendo da exploração e do empréstimo, este agora mais do que
nunca, que não se pensa ressarcir, hipotecando assim o futuro das gerações vindoiras. Vasco Pulido Valente nos condena:
Diário de Vasco Pulido
Valente
A compressão de Portugal
Vasco Pulido Valente
OBSERVADOR, 7/5/17
… hopes expire of a low dishonest decade… (W. A. Auden)
Catarina
Martins comunicou ao povo deslumbrado que não havia liberdade sem igualdade.
Em 1793 Robespierre disse exactamente o mesmo e começou logo a cortar cabeças.
A nossa Catarina, na sua imensa moderação, ainda não cortou a cabeça a ninguém.
Mas sempre vai espicaçando o governo e o Presidente da República para tornarem
Portugal inabitável e paralítico. As criaturas que hoje nos governam não podem
ver um tostão a ninguém. Marcelo anda por aí a fazer propaganda contra os
gestores que ganham muito, e suponho que está a chocar uma lei para acabar com
essas imundas sanguessugas dos pobres. Pensa ele que se trata de uma
questão de moralidade. Pensa mal. Do que se trata é da nobre inveja lusitana e
do horror por qualquer manifestação de inteligência, habilidade e saber. A
igualdade também não entra nesta sopa turva.
Se
entrasse ficava por esclarecer por que razão o Estado se preocupa tanto com os
funcionários públicos, com as carreiras dos funcionários públicos e com os
salários dos funcionários públicos. Mais: não há nenhum princípio, reconhecido
ou inventado, que obrigue o contribuinte a garantir a segurança de emprego a
quem quer que seja; estas ansiedades reflectem sobretudo o ideal de uma vida
sem obrigações, nem sobressaltos, que não implica qualquer espécie de
competição e em que a antiguidade se venera e premeia. Nada que não apeteça a
uma actriz, originária do teatro subsidiado e aos fantasmas da universidade,
que gostam muito de dar aulas, mas nunca publicaram nada que se lesse.
Esta
compressão de Portugal – que as leis do trabalho se destinam a completar – deixa
de fora o essencial: as virtudes de uma sociedade produtiva, capaz de se
adaptar à mudança do mundo. A propriedade, o lucro, o risco, a invenção, e a
ruptura com os métodos tradicionais não se encontram em indivíduos com
protecção estatal e corporativa. Talvez se encontre nos precários que não
querem um contrato perpétuo e a quem não interessa em especial o respeito do
Portugalinho que o dr. António Costa laboriosamente nos prepara. As coisas –
principalmente a imprensa e a televisão –começam a adquirir aquele tom uniforme
e ruço, típico da tropa e do socialismo.
Mas
leiamos Camões e confrontemos a pertinência de um pensamento sóbrio e elegante,
comprovativo não da tal igualdade entre os homens, mas das discrepâncias
naturais entre os espíritos das criaturas, cujos méritos deveriam ser
recompensados “segundo o amor (que) tiverdes”, isto é, segundo a qualificação
própria, obtida pela conquista pessoal, de estudo e engenho, como foi o de Camões,
e não segundo um igualitarismo massificador, de embrutecimento alvar colectivo,
sem outra ambição que não seja a da materialidade, de uma injustiça indigna da
racionalidade a que se diz pertencer o ser humano:
«Enquanto quis Fortuna que tivesse / esperança de
algum contentamento, / O gosto de um suave pensamento / Me fez que seus efeitos
escrevesse. /
«Porém,
temendo Amor que aviso desse / Minha escritura a algum juízo isento, / Escureceu-me
o engenho co tormento, / Para que seus enganos não dissesse. /
«Ó
vós que Amor obriga a ser sujeitos / A diversas vontades! Quando lerdes / Num
breve livro casos tão diversos, /
«Verdades
puras são, e não defeitos.../ E sabei que, segundo o amor tiverdes, / tereis o
entendimento de meus versos!
E todavia, morreu pobre, esse espírito criador de tanta
beleza, que não merecia isso, pesem embora as filosofias da fraternidade
igualitária das nossas Catarinas Martins, tão limitadinhas no seu linguajar
discursivo, como pingos de chuva caindo monocordicamente dos beirais, todos
para a mesma banda, mau grado o ribombar distante dos trovões, comprovativos de
tanta dispersão de valores e competências, por este mundo de Cristo, que de modo
nenhum abona essa igualdade, todos bem o sabemos.
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