quarta-feira, 14 de junho de 2017

A arte sinteticamente cansada do nosso tempo


 
A verdade é que “o dinheiro é tão bonito, é tão bonito o ladrão, tem tanta graça o maldito, tanto chiste o maganão!“, segundo a introdução humorística de João de Deus ao seu poema “O Dinheiro”, que desde tempos recuados se faz da finança motivo de arte, e o financeiro é apresentado com traços repugnantes, como na peça “Turcaret” de Lesage, mas à roda de quem se entretecem intrigas em que ninguém escapa ao ferrete da depravação, dos nobres aos criados, todos no desejo de explorarem o usurário odiado, para, afinal, utilizando os ardis da malícia impiedosa, se beneficiarem, em truques sucessivos que acabarão por abortar, e o reinado do criado “Frontin”, o especialista dos truques para seu proveito, irá começar. O nosso Gil Vicente bem o glosou também, mas em tom condenatório e moralista, como na seguinte rábula do “Auto da Lusitânia” (1532):
«Ninguém: Que andas aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: / delas não posso achar / porém ando porfiando /
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo / e meu tempo todo inteiro / sempre é ganhar dinheiro / e sempre nisto me fundo.»
Mas vem de longa data, o carimbo que a ambição traça nos homens e nos costumes, aliada à corrupção, e os nossos jornais são hoje bem marca contra tal prevaricação que envergonha as gentes, mas que cada vez mais revela quanto ela é inextinguível.
A última página do Público de 3/6 apresenta o habitual Bartoom de Luís Afonso sobre o tema da corrupção na EDP e na REN, complementada com o artigo de João Miguel Tavares na sua referência à delação premiada dos nossos tempos, que as pessoas de bem recusam, comparando-a à dos tempos pidescos - para J. M. T. bastante diferentes, todavia, - e hoje, segundo ele,  necessária  para acelerar os processos da Justiça.
O texto iconográfico acompanha humoristicamente através do desenho as poses e as falas das personagens, segundo as vinhetas sóbrias mas expressivas de graça malandra - o barman e o cliente corcovado, para a leitura profunda do seu jornal em moderno computador - alternando as bocas abertas em O ou reduzidas a um ponto, conforme as falas ou as escutas à vez de cada personagem, o olho sempre vivo, e concluindo com a sentença do experiente barman, sobre a sua compreensão da corrupção nas ditas empresas, como veículos de excelência de difusão da corrupção, pelo facto de serem sectores de energia.
Quanto ao artigo de João Miguel Tavares, embora repugne sempre a categoria de delator, e mais ainda se premiada, compreende-se que ele e todos queiramos acelerar o processo da justiça, mas julgo que confia demais, como jovem que é. Porque a verdade é que as malhas em que se move a Justiça portuguesa são tão inextricáveis, que nem com delação - para mais corrompida - lá chegaremos.

Delação premiada, bufos e grandes princípios
Será que ninguém vê que a maior ofensa ao Estado de Direito é a confrangedora incapacidade de aplicar uma justiça célere e eficaz nos casos de corrupção?
João Miguel Tavares
3 de Junho de 2017
A conversa sobre a delação premiada está de regresso, à boleia das Conferências do Estoril, que juntaram numa só sessão o juiz português Carlos Alexandre, o juiz brasileiro Sérgio Moro, o magistrado italiano Antonio Di Pietro e o juiz espanhol Baltazar Garzón. Pergunta: quantos destes magistrados são a favor da delação premiada em casos de corrupção? Resposta: todos.
Mas não são só estes magistrados. Entretanto, o PSD também se declarou “inequivocamente a favor” da delação premiada (Paula Teixeira da Cruz dixit), tal como a associação dos juízes e a associação dos magistrados do Ministério Público. Significa isto que a conversa vai evoluir para um debate sofisticado, informado e sério, acerca do alcance da medida, das suas limitações e dos seus instrumentos? Duvido muito. Há demasiada gente com vontade de desconversar.
A desconversa é de dois tipos. O primeiro tipo pode resumir-se assim: “Delação?!? Mas o que é isto?!? Voltámos aos tempos da PIDE?!? 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!” Como acontece com quase todos os argumentos que contêm demasiados pontos de exclamação, esta alegação é apenas estúpida. O bufo servia para denunciar à PIDE pessoas inocentes cujo único crime era discordarem de um regime político. O delator premiado (em Portugal prefere-se a expressão “colaborador premiado”, exactamente para evitar a carga política da palavra “delação”) serve para denunciar à justiça pessoas supostamente culpadas de crimes de corrupção, através de esquemas obscuros e pactos de silêncio muito difíceis de quebrar. Querer comparar um bufo com este tipo de delator é assim como confundir espiar com expiar. A justiça portuguesa tem muito a ver com a do Estado Novo, com certeza, mas não é na promoção de centenas de milhares de bufos – é na protecção injusta dos mais poderosos e na forma como a oligarquia escuda as práticas criminosas através de leis que dificultam o seu escrutínio. Aí, sim, há parecenças muito significativas.
O segundo tipo de desconversa é ainda mais pernicioso do que este, porque parece mais inteligente: a eterna invocação dos grandes princípios do Estado de Direito, dos quais ninguém discorda. Cito José Manuel Pureza, do Bloco, como poderia citar António Lobo Xavier, Pacheco Pereira ou Jorge Coelho:Ceder às respostas fáceis e aos instintos justiceiros é um caminho muitíssimo perigoso e poderá originar situações de difamação agravada.” Se repararem, qualquer pessoa que defenda a delação premiada ou a lei do enriquecimento ilícito apanha logo com uma saraivada de acusações de populismo e justicialismo. A nova definição de populismo é esta: achar que as coisas não podem continuar como estão e tentar encontrar alternativas sérias para modificar o statu quo.
Os grandes defensores do Estado de Direito não gostam disso. Concordam que as coisas não estão bem, mas quando se chega à parte chata de decidir o que mudar ficam-se pelos princípios gerais de “mais meios” e “melhor legislação”. Enriquecimento ilícito? Não, porque inverte o ónus da prova. Delação premiada? Não, porque belisca a presunção de inocência. Será que ninguém vê que a maior ofensa ao Estado de Direito é a confrangedora incapacidade de aplicar uma justiça célere e eficaz nos casos de corrupção? Pelos vistos, não. Celebremos, pois, os magníficos princípios da justiça portuguesa. Quanto ao pequeníssimo facto de a própria justiça não estar a ser justa, é detalhe sem importância, que não nos deve aborrecer demasiado.

Nenhum comentário: