De vez em quando Bagão Félix
diverte-nos com os seus trocadilhos prosísticos que são simultaneamente uma
forma humorística de ensinar, jogando com o sentido das expressões em foco e
procurando-lhes as origens etimológicas ou outras. Desta vez foram as cores
primárias que lhe mereceram a análise divertida e curiosa, entretecida
simultaneamente das singularidades das suas preferências clubísticas,
romanceando o discurso coloridamente. Se agarrasse nas cores secundárias,
também estas lhe trariam evocações modernas, como o “alerta laranja”
para acrescentar à “bandeira azul” das praias. Foi Mário Dionísio que escreveu
“Dia Cinzento e outros contos”, Branquinho da Fonseca “Bandeira
Preta”, Tolstoi “Noites Brancas”, mas natural é este simbolismo
colorido, que tem a ver com estados de alma ou situações de diversa amplitude. José
Afonso cantou o “Menino do Bairro Negro” e eu própria imodestamente
posso referir os meus “Cravos Roxos. Croniquetas verde-rubras”, de
patriotismo indignado e juvenil. Mas até o arco-iris dá pano para mangas,
recorde-se a linda canção da Judy Garland no seu “O Feiticeiro de Oz”,
em termos de simbolismo, ou o significado das cores das bandeiras, ainda que tais
simbolismos ultrapassem as intenções do breve estudo humorístico de Bagão Félix,
que me faz procurar os versos de António Gedeão, a justificar tanta
diversidade na “paleta de cores” e
de imagens de que se serve o Homem para precisar melhor seu pensamento ou os
seus estados de alma.
IMPRESSÃO DIGITAL
Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
In Movimento Perpétuo (1956)
Público, 29 de Maio de
2017
Ouro sobre azul (ou
vermelho?)
Sempre me despertaram curiosidade as expressões populares
que, de uma ou de outra maneira, associam cores a aspectos da vida das pessoas.
Falo hoje deste prosaico assunto porque, há dias, ainda no rescaldo da
celebração do tetracampeonato do Benfica, alguém – querendo ser simpático para
mim – rematou a conversa com “desta vez, foi ouro sobre azul”!
Eu, que até gosto muito de azul, fiquei a matutar na dita expressão,
aparentemente desajustada para o meu coração encarnado. O meu amigo,
pouco dado a estas coisas da bola, fê-lo com boa intenção. Afinal “ouro sobre
azul” significa uma situação ou algo muito bom, magnífico, deslumbrante. Mas
porque não “ouro sobre vermelho” ou outra cor?
Fui procurar detalhar a origem da dita frase. Comecemos pela razão de ordem
técnica. Considerando as cores primárias, verificamos que o amarelo
contrasta mais com o azul assim como o vermelho se opõe ao verde (esta eu
entendo, futebolisticamente falando). Ora como o amarelo do ouro brilha
como nenhum outro, o contraste é ainda mais impressivo. Logo “ouro sobre
azul” é uma deslumbrante junção de opostos. Um desafio conquistado.
Depois, há uma outra pretensa justificação de natureza guerreira. Consta
que “ouro sobre azul” se usava antigamente para a espingardaria mais
elitista, pois que as armas tinham uma tonalidade azul resultante do aço
temperado, à qual se juntavam inscrições a ouro.
Por fim, há algum rasto artístico para o “ouro sobre azul”. No barroco
português, era habitual juntarem-se os azulejos azuis junto dos espaços sobre a
talha dourada de altares e retábulos nas igrejas e capelas.
Técnica, bélica ou artisticamente “ouro sobre azul” não é uma regra de
ouro, mas, por respeito ao meu bom amigo (repito, pouco conhecedor do jargão
futebolístico) não o contestei. Afinal o silêncio também é de ouro…
Continuando este meu itinerário por um campeonato emocionante e sofrido,
confesso que tive algumas “noites em branco” (uma, justificada pelo
título; outras, decepcionado com os poucos desaires). Todavia não “votei em
branco” nas eleições do meu clube, até porque acho que nesta última década
os encarnados têm posto o “preto no branco” com o cuidado de não darem “carta
branca” a quem quer que seja.
Mas sendo o Benfica sobretudo vermelho (ou encarnado, como preferirem),
para esta inédita quarta vitória consecutiva, ninguém precipitadamente “estendeu
o tapete vermelho” antes da consagração. Já nos chegou o golo de Kelvin –
esse jovem jogador que está na minha “lista negra” – que, só de o
lembrar, nem com “sorriso amarelo” consigo disfarçar.
Já os clássicos adversários do campeão tiveram estados de alma bem
diferentes dos que houve na Luz. Uns, “ficaram verdes” por não terem
conseguido “pôr o pé em ramo verde”, mesmo com Jesus (o Jorge) bem pago,
mas sem ser através de “recibos verdes”.
Outros, vão balbuciando que a “coisa está preta” não só por não
ganharem, mas porque estão perigosamente “no vermelho”, uma ironia de
cores face ao campeão. Diz-se até que entre os responsáveis da comunicação dos
não campeões vai haver um “telefone vermelho” para gizarem uma
estratégia de combate ao comum opositor (outra ironia colorida…).
Resta-nos, nas próximas semanas, ler as revistas “cor-de-rosa” (com
hífen, pois claro!) sobre as “esposas dos craques” e afins. E começar o defeso
com notícias abundantes sobre trocas e baldrocas, pegando nas “páginas
amarelas” (chinesas e não só) ou dispensando algumas “ovelhas negras”
das equipas. Os intermediários, esses começam a pensar no “correio azul”
(ou será “saco azul”?). Ah! E alguns treinadores a chegarem e outros a
partirem, estes com a imaginada “cor do burro quando foge”.
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