Também
já tenho o segundo volume, ofereceu-mo a minha irmã, sem sequer esperar pelos
meus anos. Em tempos transcrevi o I volume nas várias “Notas
Introdutórias” de Frederico Lourenço, e, deste II Volume, ainda só
li a Introdução. Não sei se conseguirei retomá-lo nas férias, mas este
artigo de Frei Bento Domingues veio relembrar-me esse prazer a
colher. Os problemas da veracidade se põem, e ainda há pouco o Público
nos trouxe uma entrevista com Michel Onfray,
já aqui citado, que com muita determinação, provou que essas histórias bíblicas
em torno de Jesus não passavam de mito, e que essa figura tão badalada e
fundadora de uma civilização, jamais tivera existência real. Mas, mito ou não,
os livros sobre Ele perduram, e o trabalho de Frederico Lourenço, como
informa Frei Bento Rodrigues, são bem reveladores de “
talento, competência e muito trabalho”, como, de resto, tem revelado em
tantas diversas obras sobre a cultura clássica, que tenho a sorte de possuir por
dádiva amiga. Por isso, com muito prazer também, transcrevo este artigo tão
cuidadosamente anotado, de Frei Bento Domingues, de um Público
já antigo, sobre a segunda parte do «NOVO TESTAMENTO" - Apóstolos, Epístolas Apocalipse» da QUETZAL.
A Bíblia em praça
pública
O projecto de Frederico Lourenço, assumido pela
Quetzal, não se limita a uma nova tradução do Novo Testamento mas à tradução de
toda a Bíblia Grega, judaica e cristã.
Público, 9 de Abril de 2017
Frei Bento Rodrigues OP
1. Como escreveu, em 2016, o
Prof. José Augusto Ramos, o universo cultural, editorial, científico e
académico português foi recentemente presenteado com o aparecimento do primeiro
volume de uma tradução da Bíblia grega, conceito que nos tem sido estranho,
desde há muitos séculos [1]. Este ano, nos finais de Março, Frederico
Lourenço inundou todas as livrarias com o segundo volume da tradução da Bíblia
grega, o Novo Testamento completo, escrito há quase 2000 anos, cujo original é
irrecuperável. Esta tradução está baseada no texto fixado por Nestle-Aland [2].
Para
F. Lourenço, a leitura comparativa dos evangelhos canónicos e dos restos que
nos chegaram dos apócrifos não deixa qualquer dúvida quanto à
imprescindibilidade de Marcos, Mateus, Lucas e João, talvez os livros mais
extraordinários da História da Humanidade.
Um
padre, espantado com este fenómeno, perguntou-me: mas esse tradutor é padre?
Quando lhe respondi que não era padre nem ex-padre, não era católico nem
protestante e que neste trabalho prescinde, metodologicamente, de pressupostos
religiosos, mostrou-se desconfiado. Aí há gato!
O
que há, de facto, é talento, competência e muito trabalho. Convidei esse
clérigo apreensivo a ler o currículo do tradutor que vem nas capas de ambos os
volumes e acrescentei o meu pressentimento: com esta aparição, Frederico
Lourenço e os responsáveis da Quetzal Editores vão alterar o clima cultural da
Bíblia, no nosso país. Não esperam canonizações, mas merecem avaliações
críticas competentes [3].
Pensar
que o estudo da Bíblia e as suas traduções só merecem confiança se forem obra
de clérigos e de editoras católicas submetidos ao Imprimatur episcopal
é supor que a Bíblia é propriedade privada de empresas confessionais. Que os
responsáveis das comunidades católicas zelem pela formação bíblica dos seus
membros e pelas expressões da fé cristã é o mínimo que se lhes pode pedir.
Infelizmente, nem sempre cumprem esta missão.
Ninguém
tem o monopólio da Bíblia e só há vantagens em que seja reconhecida e trabalhada
como o “Livro dos livros”, a expressão das raízes judeo-cristãs da civilização
ocidental. Há muito a fazer para se tornar parte activa da cultura
portuguesa, nas suas diversas expressões. Criticam-se, e com razão, as
correntes sociais, políticas e culturais que desejam fechar as religiões nas
respectivas sacristias. Mas seria lamentável que as sacristias amuassem ao ver
essa literatura religiosa estudada e debatida com toda a liberdade, no espaço
público.
Herculano
Alves reuniu, numa obra muito útil, os Documentos da Igreja
sobre a Bíblia, desde o ano 160 a 2010 [4]. No começo deste ano,
foi lançado pela Biblioteca Dominicana o testemunho incontornável de Marie-Joseph
Lagrange, O.P., sobre os tormentos que sofreu do Vaticano e das invejas
eclesiásticas organizadas para impedir as inovadoras investigações e
publicações científicas da Escola Bíblica de Jerusalém, nos finais do século
XIX e nos primeiros 30 anos do século XX [5]. Quem comparar a
miséria cultural dessa situação com o documento da Comissão Pontifícia Bíblica,
de 15 de Abril de 1993 [6], pode ter a impressão de que não pertencem à
mesma Igreja.
Não
reconhecer a importância de colocar a Bíblia no espaço público, segundo as
exigências culturais do nosso tempo, só pode alimentar a suspeita de que a
razão crítica é inimiga da religião, das suas linguagens e das suas práticas.
2. O projecto de Frederico Lourenço, assumido pela
Quetzal não se limita a uma nova tradução do Novo Testamento, do qual já
existem várias, de diversos estilos, mas à tradução de toda a Bíblia grega,
judaica e cristã. A Bíblia judaica e a Bíblia hebraica
não se identificam, como se a grega não fosse, também, judaica. A grega,
designada como Septuaginta (LXX), é a primeira tradução da Bíblia [7]
e o seu nome designa a tradução da Torah hebraica para o grego,
realizada em Alexandria durante o reinado de Ptolomeu II (285-246 a.C.).
Segundo
a lenda, setenta sábios de Jerusalém, conhecedores do hebraico e do grego,
partiram para Alexandria, cidade com grande população judaica, mas onde se
falava sobretudo o grego. Cada um tinha o seu quarto particular e a obrigação
de traduzir as Escrituras. Começaram todos ao mesmo tempo e terminaram todos ao
fim de setenta dias. Ao conferi-las, verificaram que todos tinham traduzido da
mesma maneira. Para lenda e milagre não está mal.
A
dita versão constituiu um acontecimento cultural sem precedentes e a iniciativa
literária mais importante para os anais da civilização. Pela primeira vez, a
sabedoria de Israel passava de uma língua semita para outra indo-europeia e,
por aí, ao mundo ocidental.
3. Quando, séculos mais
tarde, a LXX foi adoptada
pelas primeiras comunidades cristãs, como a Bíblia oficial, acompanhou a
expansão do cristianismo, tanto no Oriente como no Ocidente.
A
partir do séc. V d.C., a LXX foi destronada, no Ocidente, pela tradução de S. Jerónimo para latim, denominada
a Vulgata.
Esta versão dominou a cultura ocidental durante a Idade Média. Foi
declarada como autêntica, isto é, fiável em matéria de fé e costumes, pelo Concílio
de Trento (1546). Na Igreja Ortodoxa, a Bíblia grega manteve-se como
Bíblia oficial ou canónica até aos nossos dias.
Outro
foi o rumo das traduções da Bíblia na Reforma. Espero que, entre nós, o nome de
Lutero tenha deixado de ser considerado um insulto.
[1]
Cadmo 25 (2016) 101-113. Cf. também de José Augusto Ramos, Traduções
Portuguesas da Bíblia Transversalidades Linguístico-Culturais em Tarefas de
Hoje, Gaudium Sciendi, Nº 3, Janeiro 2012, pp 124-146
[2]
Entre 1898 e 2012 atingiu 28 edições
[3]
Cf. José Augusto Ramos (Cadmo 25 (2016) 101-113); Isaías Hipólito (Brotéria 184
(2017) 205-225)
[4] Documentos
da Igreja sobre a Bíblia (160-2010), Difusora Bíblica, 2011
[5]
Marie-Joseph Lagrange, O.P., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao
serviço da Bíblia, Biblioteca Dominicana, Coimbra, Tenacitas, 2017
[6] A Interpretação da Bíblia na Igreja,
S. G. E., Rei dos Livros, 1994
[7]
Cf. Natalio Fernández Marcos, Septuaginta. La Biblia griega de judíos y cristianos, Sígueme,
Salamanca, 2008.
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