Parece que sem os EU não
formamos uma U.E. em condições. Vicente Jorge Silva e Teresa de Sousa
explicam, a democracia exige camaradagem e força económica e sem o apoio
americano o futuro parece enevoado, na opinião deles. O que vale é que Donald
Trump muda facilmente de opinião, o que era não passa a ser sim, o que era sim
poderá ser não a seguir, como também já escrevera Torga, em 1934, na sua PRECE:
“Onde era sim digo não, / Onde era não digo sim”. Talvez Trump tenha
lido Torga, esperemos que vá mudando.
Opinião
Casa arrumada, trancas
à porta
Se os pesos e contrapesos
da democracia americana não funcionarem rapidamente, resta-nos a desordem
mundial encarnada pelo actual Presidente. Por isso, mesmo com a casa arrumada,
trancas à porta.
Vicente Jorge Silva
Público, 28 de Maio de 2017
A semana que passou foi
marcada, sobretudo, pelo atentado terrorista
em Manchester e a primeira viagem internacional de Trump, iniciada
festivamente na Arábia Saudita. Ou seja, no país que funciona como inspirador
ideológico e sustentáculo financeiro do radicalismo muçulmano sunita, em guerra
santa contra os irmãos inimigos xiitas encabeçados pelo Irão (onde o candidato
presidencial mais moderado e aberto ao exterior ganhou há dias as eleições
contra o representante dos ultraconservadores).
Entretanto, vimos
Portugal arrumar a casa – apesar dos engulhos da oposição – com a saída do Procedimento por Défice
Excessivo, o que proporcionou ao inefável Schauble a mesquinha
ironia de comparar Centeno
com Ronaldo. Aliás, por causa de Schauble e do seu duelo com o
FMI, a Grécia continua refém de um fardo financeiro insuportável e de uma
dívida impagável (espectro que igualmente nos persegue, embora de forma menos
asfixiante, apesar dos sinais estimulantes da nossa economia). A
esperança de um novo horizonte para a (re)construção europeia, estimulada pela
eleição de Macron em França, parece assim suspensa de demasiadas incógnitas, em
especial das próximas legislativas na Alemanha – em que Merkel aparece já como
clara favorita contra o social-democrata Schulz e tendo em pano de fundo a
castigadora sombra de Schauble.
Em Manchester, um jovem
britânico de origem líbia foi o bombista suicida do atentado contra crianças e
adolescentes classificados de «cruzados» pelo Daesh. Mais uma «tragédia
europeia», como a qualificou o Le Monde, o que não deixa de
constituir uma trágica ironia nestes tempos de campanha eleitoral em que a
primeira-ministra Theresa May pretende precisamente consagrar a saída da
Grã-Bretanha da União Europeia. Mas para tornar o cenário ainda mais bizarro, o
líder trabalhista Jeremy Corbyn não hesitou em encontrar álibis para o acto de
barbárie contra os jovens «cruzados» britânicos, invocando as guerras em que o
Reino Unido se envolveu no Médio Oriente. Ora, a provar que as sentenças mais
repulsivas não caem em saco roto (vide Trump), Corbyn já parece ter recuperado
parcialmente da sua abissal desvantagem eleitoral em relação a May. O
ensimesmamento britânico não se ficou pelo Brexit.
Mas faltava mesmo Trump
– crescentemente perseguido pelas suspeitas de cumplicidade com a Rússia de
Putin, que ele tenta disfarçar com uma subtileza de elefante em loja de
porcelanas – para carregar ainda mais nas tintas. Não por acaso,
foi na Arábia Saudita que apelou ao combate ao terrorismo como se os seus
anfitriões não fossem, precisamente, protagonistas de uma das correntes
incentivadoras do extremismo islâmico sunita (e de que o Daesh é o braço armado
mais radical).
O perigo maior, segundo
Trump, vem do xiismo de inspiração iraniana, apesar dos sinais de moderação
transmitidos pelo reeleito Presidente Rohani, quase um modelo de democracia por
comparação com o autoritarismo feudal saudita. Eis assim Trump no seu papel
favorito de incendiário das tensões e agente do caos. No fim da sua viagem à
Europa e em reunião do G7, empenhou-se em crispar as relações com os aliados e
rasgar a agenda tão arduamente negociada sobre as alterações climáticas.
A pretexto das divergências
sobre o financiamento da NATO
– em que lhe assiste, reconheça-se, alguma razão – foi o próprio
princípio de solidariedade entre os membros da Aliança que Trump fez questão de
varrer para debaixo do tapete. Ele vê o mundo como uma abstracção, em que
apenas conta a América do contrabando negocial e das alianças subterrâneas (ou
nem tanto…) com parceiros impróprios para um convívio civilizado. Se os
pesos e contrapesos da democracia americana não funcionarem rapidamente,
resta-nos a desordem mundial encarnada pelo actual Presidente. Por isso, mesmo
com a casa arrumada, trancas à porta. Jornalista
OPINIÃO
Não é o dinheiro, são os valores
Teresa de Sousa
A Europa descansou
demasiado na protecção americana. Podia ter acordado mais cedo.
Público, 28 de Maio de 2017
1. Muita gente escreveu que a eleição de Donald Trump seria uma
ameaça à solidez do Ocidente, numa altura em que, mais do que nunca, a sua
influência e as suas regras são desafiadas por novos pólos de poder. Nessa
altura, ninguém acreditava que Trump ganhasse as eleições. Ganhou. E o que se
previa passou a estar à vista. O Presidente já aprendeu algumas coisas. Mas
nada daquilo que é essencial na sua forma de ver o papel da América no mundo
parece ter mudado significativamente. A cimeira da NATO foi mais uma prova. O
seu périplo pelo Médio Oriente também. Ontem, no G7, em Taormina, um tweet matinal
sobre a NATO voltou a deixar muita gente perplexa: “O dinheiro já está a
entrar”. Se separarmos as várias “frentes” da sua política externa, podemos
chegar à conclusão de que Trump até tem alguma razão em algumas delas. É
uma leitura comum a muitas das análises da sua primeira visita ao estrangeiro.
Dois exemplos. Quando o Presidente exige com palavras ameaçadoras que os
europeus têm de passar a pagar muito mais pela sua própria defesa, não só tem
razão como está em linha com as exigências dos seus antecessores. Quando
Trump acusa a Alemanha de gerar um gigantesco excedente comercial que prejudica
o crescimento das outras economias desenvolvidas, é fácil de concluir que não é
só ele a denunciar. O último foi Emmanuel Macron.
2. Seria, no entanto, um erro reduzir o significado das suas decisões
à imprevisibilidade de um Presidente visivelmente impreparado para lidar com as
questões internacionais, que estaria ainda em fase de aprendizagem. Para além da incoerência e da imprevisibilidade, Trump está a
pôr em causa o mundo que a América construiu depois da II Guerra e os
fundamentos da ordem liberal que criou. É aqui que entra a ideia de Ocidente. A aliança transatlântica, garantida pela NATO, significou desde
a sua criação (1949) que a segurança europeia era inseparável da segurança
americana. Foi assim durante a Guerra Fria. Continuou a ser na nova era da
globalização e da emergência de novas potências não democráticas como a China,
ou o regresso da Rússia nacionalista e agressiva. Os BRIC integravam também
duas grandes democracias: o Brasil e a Índia. Mas o espírito que os unia era o desafio da hegemonia ocidental
e não a partilha dos seus valores.
A
NATO conseguiu responder a todos os desafios que se lhe foram colocando. Interveio nos Balcãs, na segunda metade dos anos 1990, para
provar a sua razão de ser. Como dizia na altura o velho senador republicano
Richard Lugar, “out of area or out of business”. Respondeu sem
vacilar ao 11 de Setembro, colocando-se incondicionalmente ao lado da América.
Sobreviveu ao unilateralismo de George W. Bush, que chegou a questionar a
utilidade de uma aliança permanente. Recompôs-se da crise iraquiana, que a
dividiu profundamente, muito mais depressa do que se previa. Com a nova
desordem internacional e o mundo multipolar que desafia a pax americana, a
ideia de Ocidente voltou a ser de uma enorme importância estratégica. Para
conter o revisionismo russo, para conseguir integrar pacificamente a China e
para fazer frente às novas formas de extremismo islâmico e de nacionalismo que
tentam subverter as suas democracias.
A
pergunta seguinte é simples: por que razão a aliança transatlântica
sobreviveu às mudanças tectónica que o mundo está a viver, incluindo a sua
poderosa aliança militar? Porque assentava no património comum dos
valores da democracia liberal e da defesa dos direitos humanos, que via como
universais, para além dos interesses comuns que ainda hoje partilha.
3. É a ruptura com este património comum que torna a presidência de
Trump tão preocupante. Os
valores não têm a mais leve ressonância na forma como olha para o mundo, e nem
sequer se dá ao trabalho de recordá-los, mesmo que apenas por dever de ofício.
Os pilares da relação transatlântica – a integração europeia e a
indivisibilidade da segurança transatlântica – não lhe dizem nada. Se
dúvidas restassem, bastaria olhar para os políticos europeus de quem gosta
mais: Le Pen era a sua preferida até à semana passada, Farage o seu velho
amigo, o "Brexit" uma ideia “maravilhosa” para acabar com a hegemonia
alemã. Haja o que houver, vai ser difícil vê-lo condenar Putin e as suas
agressões. O Presidente americano não tem uma ideologia. As
suas ideias não correspondem nem ao património dos republicanos moderados, nem
sequer ao Tea Party, que permitiu a sua ascensão para se ver derrotado por ele.
É este o gap intransponível que afecta todas as suas
decisões em matéria de relação com o mundo e as torna verdadeiramente
perigosas.
4. Por uma vez, a Europa apenas tem uma parte da culpa, porque não
viu os sinais, até eles lhe entrarem pelos olhos dentro. Já mudou de agulha em
matéria de aumento das suas despesas militares, que crescem desde 2014. Já
percebeu até que ponto precisa da NATO neste novo mundo instável e perigoso que
a rodeia. Nunca desejou tanto que os EUA continuassem a liderar o mundo como
agora. A questão é saber se não será já tarde demais.
Com
o fim da Guerra Fria, o arsenal nuclear e convencional soviético deixou de
estar às portas de Berlim e de visar território americano. A redução das
despesas militares foi uma consequência óbvia. A democracia expandia-se e a economia de mercado também. A
Europa chegou a embriagar-se com este novo mundo, acreditando que poderia
afirmar-se como a nova superpotência com capacidade para desafiar a América
e equilibrar o seu poder. Acreditou que poderia dispensá-la nos Balcãs, quando
a desagregação da Jugoslávia se transformou num trágico conflito. Quatro anos e
milhares de mortos depois, teve de bater humildemente à porta da Casa Branca.
A França e o Reino Unido responderam a esta humilhação, lançando em St. Malo
(Chirac-Blair, 1999) um embrião de defesa comum. O que é que faltou?
Primeiro, a divergência de fundo entre Londres e Paris sobre uma defesa
europeia autónoma da NATO. Essa divergência acabou por ser ultrapassada, quando
a França regressou à estrutura militar da Aliança, da qual De Gaulle a retirou
em 1966. Depois, a incapacidade alemã de assumir as suas
responsabilidades em matéria de segurança e defesa. Convém lembrar que,
em 2011, na Líbia, Berlim esteve ao lado da China e da Rússia, abstendo-se na
votação que permitiu a intervenção militar contra Kadhafi. Já mudou. Mas a
Alemanha ainda não consegue ir para além do apoio logístico à França ou ao
Reino Unido, mantendo muitas das limitações que a impedem de entrar em combate.
Sem o Reino Unido, a defesa europeia, com dinheiro ou sem ele, limita-se à
França e ao apoio, mais ou menos limitado, de alguns outros parceiros. É uma
questão de dinheiro? Também é. Mas, antes de sê-lo, é uma questão de vontade
política para pôr em comum as capacidades já existentes (e que não são assim
tão poucas), mas que continuam a funcionar numa lógica totalmente nacional. A
parte mais fácil é o financiamento, apesar da ortodoxia dos défices. Falta
acrescentar que, durante muito tempo, foram os EUA que impediram a criação de
uma defesa europeia, mesmo que no seio da NATO, preferindo lidar com uma dezena
de aliados do que com um bloco europeu.
5. A Europa descansou demasiado na protecção americana. Podia ter
acordado mais cedo. Quando
Robert Gates, que chefiou o Pentágono no primeiro mandato de Obama, foi
despedir-se a Bruxelas deixou um aviso claro como a água. Se a Europa não
começar a fazer mais pela sua segurança, haverá um dia em que a opinião pública
americana deixará de compreender a necessidade de garantir a segurança
europeia. Gates tinha razão. Trump é o intérprete desse sentimento. A única
coisa boa é que ainda não parece ser maioritário. Um estudo da Pew sobre
a defesa colectiva mostra que 62% dos americanos consideram que os EUA devem ir
em auxílio de um aliado vítima de uma agressão. Na Alemanha, há uma maioria que
pensa exactamente o contrário.
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