É tudo tão real
e abjecto, mesmo o que se afigura de saloiice do nosso Presidente e a
sua banda de apoio que parece sermos todos nós, e tudo escrito com tanto
realismo e a mordacidade que bem merecemos, que não resisto a transcrever também
um outro artigo sobre as anomalias do AO, nas trapalhadas gráficas e fonéticas que
origina, com a supressão de consoantes específicas da marca de origem, pese
embora o Acordo de 1945 já tenha iniciado o processo, que levou à divergência
de escrita e pronúncia em muitas palavras, no Brasil e em Portugal como bem
demonstra Nuno Pacheco, no seu artigo “Pequenas lembranças proto-ortográficas”, de 25/6, assunto
que também muito nos envergonha e talvez mais difícil de corrigir ainda do que
o tasse /ta-se dos discípulos do nenhum acordo. Mas não são inúteis os
artigos, nem este nem o de Alberto Gonçalves, que guardo com gratidão, afectam as consciências do povo que somos:
Cinco dias inúteis
OBSERVADOR,10/6/2017
Segunda-feira
Há pessoas de quem não se espera nada. E há aquelas de
quem se espera tudo. O prof. Marcelo pertence às duas categorias. Em passeio nos Açores, o homem resolveu explicar
o segredo da nossa felicidade, ele próprio: “Quando iniciei o meu
mandato, achava que o país estava carecido de afecto e que era uma prioridade
esse afecto. As pessoas estavam pessimistas, estavam cépticas, estavam
crispadas. (…) o país estava perdido, corria tudo mal”. Então, como um anjo,
surgiu o Salvador, ainda mais reluzente que o Sobral.
Com franqueza, já desisti de tentar perceber se o
prof. Marcelo diz estas coisas a sério ou se se diverte a gozar com pategos. A verdade é que os pategos existem, e aparentemente
não apenas entre os “populares” que se acotovelam nas ruas para uma “selfie”
com o equivalente indígena da Princesa do Povo. Nas redacções jornalísticas
(crescentemente uma força de expressão) e no comentário, também parece haver
gente que toma à letra as afirmações do Senhor Presidente. Não falo dos que
utilizam aquela retórica vazia em benefício da propaganda governamental. Falo
dos que se mostram realmente convencidos de que os “afectos”, leia-se a
conversa fiada, o sentimento de cordel e um populismo que envergonharia
alguns estadistas do Terceiro Mundo são capazes de influenciar o rumo de uma
nação ou, modestamente, o quotidiano de um único dos seus cidadãos. Há, a
julgar pelas evidências, indivíduos que votam, conduzem, procriam e determinam
o alinhamento de um “telejornal” a acreditar que o facto de o chefe de Estado desfilar
a sorrir numa feira de tremoços em Melgaço influencia o poder de compra de um
solicitador do Cacém.
Trata-se de um exemplo acabado do pensamento mágico,
por azar um eufemismo de atraso de vida. À semelhança dos primitivos que
dançavam para espevitar a colheita de cevada, muitos portugueses modernos
supõem que o pão decorre do circo. Não decorre, e o pior não é não o saberem
agora, mas não o terem aprendido antes e não virem a compreendê-lo depois.
Terça-feira
Ninguém sabe muito bem o que é o Acordo de Paris,
quem o cumpre e a que título deveria ser cumprido. Mas toda a gente tem um
palpite acerca da decisão do sr. Trump em remover os EUA do negócio: segundo a
ortodoxia, o homem fez mal. Também tenho o meu: o homem fez bem. Não possuo nenhuma certeza quanto à influência do
progresso – e da economia americana – no “aquecimento global” (ou nas “alterações
climáticas”, o neologismo criado para a eventualidade de isto afinal arrefecer
um bocadinho e as previsões do Apocalipse saírem enfraquecidas). Mas, cá
por coisas, estou certo de que o bando de populistas, ambientalistas, lobistas,
oportunistas, “cientistas” e “jornalistas” que reproduz a cartilha oficial
sobre a matéria só pode estar errado. Aliás, o pressuposto é mais ou menos
o mesmo que leva uma pessoa sensata a concordar com a ameaça do sr. Trump em
fazer os EUA abandonarem o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, caso
este insista em esquecer calamidades como a venezuelana e, como costuma,
continuar a limitar os seus temas de interesse a Israel. Ao contrário do que
se diz, o problema não é um mundo em que um pantomineiro do calibre do sr.
Trump lidera a maior potência. O problema é um mundo em que, comparado com os
colegas, o sr. Trump parece um estadista decente.
Quarta-feira
Um agrupamento musical chamado D.A.M.A. publicou no
Twitter um verso de uma canção sua: “Se sim tasse bem, se não tasse bem
também.” Uma fã corrigiu (digamos): “Tá-se”. O agrupamento levou a mal: “Olá
Sofia. Em que língua? Em Português, o Pretérito Imperfeito no Subjuntivo do
verbo é Estasse, abreviado ‘Tasse. #thinkbeforeyouspeak”. O erro
original já tem graça, mas muito mais engraçada é a presunção com que o erro é
legitimado. Há todo um carisma especial quando a ignorância assim primordial e
imaculada se faz acompanhar pela confiança do ignorante. Mudando de
assunto, o dr. António Costa concedeu uma entrevista à SIC.
Quinta-feira
Após anos a ouvir especialistas nas televisões,
aprendi que há muçulmanos moderados, muçulmanos referenciados e muçulmanos
radicalizados. Não sei a que categoria pertencem os futebolistas da
selecção da Arábia Saudita que, em jogo com a Austrália, desrespeitaram o
minuto de silêncio pelas vítimas do terror em Londres. Mas também não importa.
O importante é que, conforme alguém explicou e o DN repetiu, a “tradição” do
dito minuto “não se enquadra com a sua cultura”. Continuamos a espera de
uma tradição que se enquadre, salvo a de permitir que explosivos com problemas
psiquiátricos, facas desempregadas e camiões inadaptados provoquem incidentes
onde calha.
Sexta-feira
O sujeito, que não tem vícios nem carro, concluiu o
liceu a custo e passou uns meses no curso de Estudos Sindicais (?) do
politécnico, condições que prometiam, e cumpriram, carreira radiosa na
política. Chegou a deputado em 1983, posição em que se distinguiu dos radicais
choninhas pelo apoio eufórico aos bombistas do IRA. Coerente e cosmopolita, o
sujeito alargaria mais tarde o apoio aos bombistas do Hamas e do Hezbollah. O
sujeito sempre apreciou a livre determinação dos povos, excepto quando, como na
Ucrânia, os povos parecem determinar-se para longe da opressão, traquinice cujo
castigo aplaude. O sujeito também aprecia o Irão, e em 2014 exigiu que o
Ocidente deixasse de “demonizar” aquele regime, o qual aliás lhe pagou 20 mil
libras pelos elogios. O
sujeito aprecia igualmente Chávez, Castro e qualquer santo que se lhe afigure
susceptível de educar a humanidade através da violência e da miséria. O
sujeito, escusado dizer, aprecia um Estado zeloso. O que o sujeito não aprecia
são os EUA e, sobretudo, Israel, esse território inexplicavelmente repleto de
“sionistas”. O sujeito chama-se Jeremy Corbyn e o DN chama-lhe um “rebelde
de muitas causas”, quase todas criminosas. Esteve, e talvez ainda
esteja, a um pequeno passo de mandar no Reino Unido. Misteriosamente, os
“media” ocidentais, tão diligentes a detectar ameaças populistas (ou
fascistas), deixaram em paz este particular populista (ou fascista).
Pequenas lembranças proto-ortográficas
Qualquer reforma, para ser consequente, deveria
atender a uma lógica harmónica e eminentemente ortográfica.
Público, 25 de Maio de 2017
Nuno Pacheco
Enquanto
a Academia das Ciências anda às voltas com as incongruências do acordo
ortográfico de 1990 (AO90), procurando emendas que o salvem, é curioso e útil
lembrar a Base VI do acordo de 1945 (tinha 51 bases, contra 21 do AO90), porque
aí residem muitas das polémicas actuais. Tem a ver com o uso e valor das ditas
consoantes mudas, bem como da sua utilidade e justificação. Dizia ela:
“O c gutural das sequências
interiores cc (segundo c sibilante), cç e ct,
e o p das sequências
interiores pc (c sibilante), pç e pt, ora se
eliminam ora se conservam.” E isto não era facultativomanutenção ou a
eliminação, bem como os respectivos fundamentos então alegados.
O primeiro
ponto era pacífico, pois não influía na fala. Dizia: “Eliminam-se nos casos em
que são invariavelmente mudos, quer na pronúncia portuguesa, quer na
brasileira, e em que não possuem qualquer valor particular”, e onde antes se escrevia aflicto, auctor, funcção ou victória passava
a escrever-se aflito, autor, função ou vitória; ou,
caso do p, absorpção, assumpto, captivo, excerpto, prompto, redempção passavam
a escrever-se absorção, assunto, cativo, excerto, pronto, redenção.
Já o
segundo ponto era questionável, pois dizia que se conservavam “não apenas nos
casos em que são invariavelmente proferidos” (compacto, convicção, ficção,
adepto, etc) “mas também naqueles em que só se proferem em Portugal ou só no
Brasil, quer geral quer restritamente”. E dava como exemplos, entre
outros, cacto (“c interior geralmente proferido no Brasil e mudo
em Portugal”), contacto, dicção, facto (“c geralmente
proferido em Portugal e mudo no Brasil”), tecto (“c por vezes
proferido no Brasil”) ou peremptório (“p interior geralmente
proferido no Brasil mas predominantemente mudo em Portugal”). Resultado: como o
Brasil já escrevia contato, dição, fato, teto, tal
como cacto ou peremptório, assim continuou e continua, ainda
hoje. Com o AO90, unificou-se a grafia? Vejamos. No Brasil
escreve-se contato, dição, fato, teto, cacto, peremptório;
e em Portugal o AO90 diz que é contacto, dicção, facto, teto,
cato, perentório. Em seis palavras, onde antes havia duas iguais, agora
há... só uma! É o que faz a“unificação”...
O terceiro
ponto era ainda menos suportável pelo Brasil, pois generalizava-se a regra
quando na prática já havia duas regras de escrita claramente demarcadas em
Portugal e no Brasil. Dizia-se, pois, que as ditas consoantes mudas
“conservam-se, após as vogais a, e e o, nos casos em que
não é invariável o seu valor fonético e ocorrem em seu favor outras razões,
como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas
românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no
timbre das referidas vogais.” Assim se sancionavam (e, bem, no caso de Portugal) acção, activo, actor, afectuoso, arquitectura, colecção, colectivo, dialectal,
etc, sem cuidar que no Brasil já se escrevia, há
muito, ação, ativo, ator, afetuoso, arquitetura, coleção, coletivo, dialetal,
etc. Se neste ponto se deixasse claro que as ditas consoantes se
mantinham só nos países onde exercessem influência no timbre das
referidas vogais, e não generalizando a sua obrigatoridade (que o Brasil
rejeitou, por decreto presidencial, em 1955, dez anos após assinar o acordo
ortográfico de 1945), talvez não tivesse surgido o “monstro” ortográfico dos
anos 80-90, impondo a Portugal, contra-natura, aquilo que só fazia (e ainda
fará) sentido vigorar no Brasil.
Por fim, um
ponto importantíssimo, o quarto: “Conservam-se quando, sendo embora mudos,
ocorrem em formas que devem harmonizar-se gràficamente com formas afins em que
um c ou um p se mantêm.” Exemplos? Acto, onde
o c não influi na fonética, lendo-se “ato”; e acção, onde a
ausência do c levaria a ler, não “àção” mas “âção”. Esta regra, que
faz todo o sentido quando se olha para uma mesma família de palavras e não para
cada palavra em separado, obriga a uma harmonia lógica, harmonia essa que o
AO90 não só destrói como o Brasil, por decisão própria (e decerto
irreversível), já destruiu há muito tempo, validando em simultâneo, por exemplo,
com c e
sem c, fato e factual, espetáculo e espectador, isto
na escrita como na fala. Qualquer reforma, para ser consequente, deveria
atender a esta lógica harmónica e eminentemente ortográfica.
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