domingo, 11 de junho de 2017

A cereja em cima do bolo

É tudo tão real  e abjecto, mesmo o que se afigura de saloiice do nosso Presidente e a sua banda de apoio que parece sermos todos nós, e tudo escrito com tanto realismo e a mordacidade que bem merecemos, que não resisto a transcrever também um outro artigo sobre as anomalias do AO, nas trapalhadas gráficas e fonéticas que origina, com a supressão de consoantes específicas da marca de origem, pese embora o Acordo de 1945 já tenha iniciado o processo, que levou à divergência de escrita e pronúncia em muitas palavras, no Brasil e em Portugal como bem demonstra Nuno Pacheco, no seu artigo “Pequenas lembranças proto-ortográficas”, de 25/6, assunto que também muito nos envergonha e talvez mais difícil de corrigir ainda do que o tasse /ta-se dos discípulos do nenhum acordo. Mas não são inúteis os artigos, nem este nem o de Alberto Gonçalves, que guardo com gratidão, afectam as consciências do povo que somos:

Cinco dias inúteis
OBSERVADOR,10/6/2017
Segunda-feira
Há pessoas de quem não se espera nada. E há aquelas de quem se espera tudo. O prof. Marcelo pertence às duas categorias. Em passeio nos Açores, o homem resolveu explicar o segredo da nossa felicidade, ele próprio: “Quando iniciei o meu mandato, achava que o país estava carecido de afecto e que era uma prioridade esse afecto. As pessoas estavam pessimistas, estavam cépticas, estavam crispadas. (…) o país estava perdido, corria tudo mal”. Então, como um anjo, surgiu o Salvador, ainda mais reluzente que o Sobral.
Com franqueza, já desisti de tentar perceber se o prof. Marcelo diz estas coisas a sério ou se se diverte a gozar com pategos. A verdade é que os pategos existem, e aparentemente não apenas entre os “populares” que se acotovelam nas ruas para uma “selfie” com o equivalente indígena da Princesa do Povo. Nas redacções jornalísticas (crescentemente uma força de expressão) e no comentário, também parece haver gente que toma à letra as afirmações do Senhor Presidente. Não falo dos que utilizam aquela retórica vazia em benefício da propaganda governamental. Falo dos que se mostram realmente convencidos de que os “afectos”, leia-se a conversa fiada, o sentimento de cordel e um populismo que envergonharia alguns estadistas do Terceiro Mundo são capazes de influenciar o rumo de uma nação ou, modestamente, o quotidiano de um único dos seus cidadãos. Há, a julgar pelas evidências, indivíduos que votam, conduzem, procriam e determinam o alinhamento de um “telejornal” a acreditar que o facto de o chefe de Estado desfilar a sorrir numa feira de tremoços em Melgaço influencia o poder de compra de um solicitador do Cacém.
Trata-se de um exemplo acabado do pensamento mágico, por azar um eufemismo de atraso de vida. À semelhança dos primitivos que dançavam para espevitar a colheita de cevada, muitos portugueses modernos supõem que o pão decorre do circo. Não decorre, e o pior não é não o saberem agora, mas não o terem aprendido antes e não virem a compreendê-lo depois.
Terça-feira
Ninguém sabe muito bem o que é o Acordo de Paris, quem o cumpre e a que título deveria ser cumprido. Mas toda a gente tem um palpite acerca da decisão do sr. Trump em remover os EUA do negócio: segundo a ortodoxia, o homem fez mal. Também tenho o meu: o homem fez bem. Não possuo nenhuma certeza quanto à influência do progresso – e da economia americana – no “aquecimento global” (ou nas “alterações climáticas”, o neologismo criado para a eventualidade de isto afinal arrefecer um bocadinho e as previsões do Apocalipse saírem enfraquecidas). Mas, cá por coisas, estou certo de que o bando de populistas, ambientalistas, lobistas, oportunistas, “cientistas” e “jornalistas” que reproduz a cartilha oficial sobre a matéria só pode estar errado. Aliás, o pressuposto é mais ou menos o mesmo que leva uma pessoa sensata a concordar com a ameaça do sr. Trump em fazer os EUA abandonarem o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, caso este insista em esquecer calamidades como a venezuelana e, como costuma, continuar a limitar os seus temas de interesse a Israel. Ao contrário do que se diz, o problema não é um mundo em que um pantomineiro do calibre do sr. Trump lidera a maior potência. O problema é um mundo em que, comparado com os colegas, o sr. Trump parece um estadista decente.
Quarta-feira
Um agrupamento musical chamado D.A.M.A. publicou no Twitter um verso de uma canção sua: “Se sim tasse bem, se não tasse bem também.” Uma fã corrigiu (digamos): “Tá-se”. O agrupamento levou a mal: “Olá Sofia. Em que língua? Em Português, o Pretérito Imperfeito no Subjuntivo do verbo é Estasse, abreviado ‘Tasse. #thinkbeforeyouspeak”. O erro original já tem graça, mas muito mais engraçada é a presunção com que o erro é legitimado. Há todo um carisma especial quando a ignorância assim primordial e imaculada se faz acompanhar pela confiança do ignorante. Mudando de assunto, o dr. António Costa concedeu uma entrevista à SIC.
Quinta-feira
Após anos a ouvir especialistas nas televisões, aprendi que há muçulmanos moderados, muçulmanos referenciados e muçulmanos radicalizados. Não sei a que categoria pertencem os futebolistas da selecção da Arábia Saudita que, em jogo com a Austrália, desrespeitaram o minuto de silêncio pelas vítimas do terror em Londres. Mas também não importa. O importante é que, conforme alguém explicou e o DN repetiu, a “tradição” do dito minuto “não se enquadra com a sua cultura”. Continuamos a espera de uma tradição que se enquadre, salvo a de permitir que explosivos com problemas psiquiátricos, facas desempregadas e camiões inadaptados provoquem incidentes onde calha.
Sexta-feira
O sujeito, que não tem vícios nem carro, concluiu o liceu a custo e passou uns meses no curso de Estudos Sindicais (?) do politécnico, condições que prometiam, e cumpriram, carreira radiosa na política. Chegou a deputado em 1983, posição em que se distinguiu dos radicais choninhas pelo apoio eufórico aos bombistas do IRA. Coerente e cosmopolita, o sujeito alargaria mais tarde o apoio aos bombistas do Hamas e do Hezbollah. O sujeito sempre apreciou a livre determinação dos povos, excepto quando, como na Ucrânia, os povos parecem determinar-se para longe da opressão, traquinice cujo castigo aplaude. O sujeito também aprecia o Irão, e em 2014 exigiu que o Ocidente deixasse de “demonizar” aquele regime, o qual aliás lhe pagou 20 mil libras pelos elogios. O sujeito aprecia igualmente Chávez, Castro e qualquer santo que se lhe afigure susceptível de educar a humanidade através da violência e da miséria. O sujeito, escusado dizer, aprecia um Estado zeloso. O que o sujeito não aprecia são os EUA e, sobretudo, Israel, esse território inexplicavelmente repleto de “sionistas”. O sujeito chama-se Jeremy Corbyn e o DN chama-lhe um “rebelde de muitas causas”, quase todas criminosas. Esteve, e talvez ainda esteja, a um pequeno passo de mandar no Reino Unido. Misteriosamente, os “media” ocidentais, tão diligentes a detectar ameaças populistas (ou fascistas), deixaram em paz este particular populista (ou fascista).

Pequenas lembranças proto-ortográficas

Qualquer reforma, para ser consequente, deveria atender a uma lógica harmónica e eminentemente ortográfica.
Público, 25 de Maio de 2017
Nuno Pacheco
Enquanto a Academia das Ciências anda às voltas com as incongruências do acordo ortográfico de 1990 (AO90), procurando emendas que o salvem, é curioso e útil lembrar a Base VI do acordo de 1945 (tinha 51 bases, contra 21 do AO90), porque aí residem muitas das polémicas actuais. Tem a ver com o uso e valor das ditas consoantes mudas, bem como da sua utilidade e justificação. Dizia ela: “O c gutural das sequências interiores cc (segundo c sibilante), cç e ct, e o p das sequências interiores pc (c sibilante), pç e pt, ora se eliminam ora se conservam.” E isto não era facultativomanutenção ou a eliminação, bem como os respectivos fundamentos então alegados.
O primeiro ponto era pacífico, pois não influía na fala. Dizia: “Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos, quer na pronúncia portuguesa, quer na brasileira, e em que não possuem qualquer valor particular”, e onde antes se escrevia aflicto, auctor, funcção ou victória passava a escrever-se aflito, autor, função ou vitória; ou, caso do p, absorpção, assumpto, captivo, excerpto, prompto, redempção passavam a escrever-se absorção, assunto, cativo, excerto, pronto, redenção.
Já o segundo ponto era questionável, pois dizia que se conservavam “não apenas nos casos em que são invariavelmente proferidos” (compacto, convicção, ficção, adepto, etc) “mas também naqueles em que só se proferem em Portugal ou só no Brasil, quer geral quer restritamente”. E dava como exemplos, entre outros, cacto (“c interior geralmente proferido no Brasil e mudo em Portugal”), contacto, dicção, facto (“c geralmente proferido em Portugal e mudo no Brasil”), tecto (“c por vezes proferido no Brasil”) ou peremptório (“p interior geralmente proferido no Brasil mas predominantemente mudo em Portugal”). Resultado: como o Brasil já escrevia contato, dição, fato, teto, tal como cacto ou peremptório, assim continuou e continua, ainda hoje. Com o AO90, unificou-se a grafia? Vejamos. No Brasil escreve-se contato, dição, fato, teto, cacto, peremptório; e em Portugal o AO90 diz que é contacto, dicção, facto, teto, cato, perentório. Em seis palavras, onde antes havia duas iguais, agora há... só uma! É o que faz a“unificação”...
O terceiro ponto era ainda menos suportável pelo Brasil, pois generalizava-se a regra quando na prática já havia duas regras de escrita claramente demarcadas em Portugal e no Brasil. Dizia-se, pois, que as ditas consoantes mudas “conservam-se, após as vogais a, e e o, nos casos em que não é invariável o seu valor fonético e ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no timbre das referidas vogais.” Assim se sancionavam (e, bem, no caso de Portugal) acção, activo, actor, afectuoso, arquitectura, colecção, colectivo, dialectal, etc, sem cuidar que no Brasil já se escrevia, há muito, ação, ativo, ator, afetuoso, arquitetura, coleção, coletivo, dialetal, etc. Se neste ponto se deixasse claro que as ditas consoantes se mantinham só nos países onde exercessem influência no timbre das referidas vogais, e não generalizando a sua obrigatoridade (que o Brasil rejeitou, por decreto presidencial, em 1955, dez anos após assinar o acordo ortográfico de 1945), talvez não tivesse surgido o “monstro” ortográfico dos anos 80-90, impondo a Portugal, contra-natura, aquilo que só fazia (e ainda fará) sentido vigorar no Brasil.
Por fim, um ponto importantíssimo, o quarto: “Conservam-se quando, sendo embora mudos, ocorrem em formas que devem harmonizar-se gràficamente com formas afins em que um c ou um p se mantêm.” Exemplos? Acto, onde o c não influi na fonética, lendo-se “ato”; e acção, onde a ausência do c levaria a ler, não “àção” mas “âção”. Esta regra, que faz todo o sentido quando se olha para uma mesma família de palavras e não para cada palavra em separado, obriga a uma harmonia lógica, harmonia essa que o AO90 não só destrói como o Brasil, por decisão própria (e decerto irreversível), já destruiu há muito tempo, validando em simultâneo, por exemplo, com c e sem c, fato e factual, espetáculo e espectador, isto na escrita como na fala. Qualquer reforma, para ser consequente, deveria atender a esta lógica harmónica e eminentemente ortográfica.

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