Mais
uma bonita crónica de Maria João Avillez, de homenagem, esta, a um espaço
atravessado por variados momentos, de alguns registos ligados à história pessoal,
discreta, mas com pormenor político, passado e presente, ou apenas social, que
a pena de Maria João Avillez transporta com muito encanto descritivo para a nossa
actualidade, antes de se despedir “para férias”, “até um regresso”,
porque parece que “outros valores mais altos se levantam. Tenho pena que
assim seja, habituada já ao seu estilo de arte, de conciliação com uma consciência
de beleza espiritual paralela. Só posso esperar que esses valores a não inibam,
lá onde estiver, de fazer jorrar as luzes da sua sabedoria sobre os nossos olhos
deslumbrados, que de pátios, para além dos sem perspectiva de maior que nos
passaram ao pé, nos limitam ao donaire e graça do “das Cantigas” de António
Lopes Ribeiro, de história menos aristocrática a lembrar outras origens e devoções
mais populares, a manterem-se vivos. Em Camões os “valores mais altos” que se
opuseram aos da “musa antiga” originaram uma epopeia lusa, Maria João Avillez,
em jeito de suspense policial, não semeia, contudo, nenhuma pista nos nossos
horizontes frustrados. Na crónica anterior, deu-nos “Os mortos e os vivos”,
em tom evocativo de quase elegia, hoje recordou a sua casa e o pátio da quinta
antiga de um espaço exterior que se tornou quase central na cidade em
crescimento. Se é um adeus, que ao menos lá de fora continue a enviar as suas
reflexões, impregnadas de novos momentos e de novos sabores, mesmo sem pátio, que
estes também passam à história. Se
é uma pausa para escrita mais ampla, talvez seja este o momento. Mas a sua
crónica semanal é um raio de luz importante, “musa antiga” que não deve cessar.
O pátio
OBSERVADOR, 2/6/2017
No PREC, o pátio foi naturalmente poiso de
revolucionários e de contra-revolucionários. Em igual grau, peso e estatuto.
Uns iam para uma casa, outros, para outra.
1. Agora
há um piloto no pátio. Não é todos os dias que se acorda — ou adormece —
com um jovem garbosamente fardado, saindo portão fora e o imaginamos, duas
horas depois, voando qual pássaro prateado, pelos céus. Juntou-se ao
extraordinário coro de personagens que por aqui habitam e se eu disser que
continentes, credos religiosos, opções políticas e gerações estão aqui
exuberantemente representadas, não andarei longe da verdade.
Não
é porém só o Tiago a sair para os ares, o vaivém é madrugador. Miúdos para a
escola, graúdos para o trabalho, jovens para a vida, o Eduardo de cadeirinha
para o Jardim do Campo Grande, ver os cisnes no lago, acompanhado pela sua
opulenta ama.
O
bom tempo leva ao súbito improviso de esplanadas no pátio onde se unem e reúnem
as diversas famílias daqui. Há discussões acaloradas, tertúlias, futeboladas
valentes que desgostam o labor do sr. Oliveira que jardina, vem às sextas e é
hipocondríaco (estamos sempre a alvitrar que se aviste com Marcelo para
jovialmente trocarem novidades farmacêuticas e com sorte, uma selfie). Aterram
passantes variados, o “correio” que em vez de ser um marco é um ser de carne e
osso, fornecedores versáteis, “consertadores” disto e daquilo, passageiras
diárias como a silenciosa Da Luz, a farta Camila, a jovialíssima Amina. Pelas
cinco há a chegada diária dos primos que estudam numa escola perto e “lancham
cá” antes de rumarem às casas respectivas, deixando um sem fim de vestígios
sempre misteriosamente inarrumáveis em sítio algum. Com apreciável frequência
aparecem as jovens mães destas tribos. Tomam cafés (no plural), fumam e falam
da vida naquele registo de que a condição feminina tem o segredo e o exclusivo
e que num mesmo passe pode aliar o riso e a melancolia, o brilho e a sombra, a
futilidade à questão mais decisiva. Às vezes, na mesma meia hora.
Dirigindo
superiormente todo este universo de casas e gentes, há a Svetlana que se
naturalizou portuguesa mas é tão inteligente que tenho pena que não dirija
também o mundo.
E
depois, claro, há os passageiros com lugar cativo. Vêm matar saudades, trocar
estados de alma, refazer o mundo. Chamam-se amigos e vêm muitas vezes.
A
verdade é que se eu tivesse de eleger qual o lugar que desde sempre mais
intimamente esteve ligado a mim, ao que fui e sou, a quem aqui nasceu e morreu,
a quem por aqui passou, a quem aqui criou, escreveu, conspirou, pintou, cantou,
tocou, era este pátio. Onde nasci, cresci e vivo desde que me conheço (com um
irrelevante e breve entre-parêntesis no Estoril). De tal modo que tenho a
sensação de com a minha família — a que me gerou e a que eu formei – ter também
contribuído para a pintura da imensa tela que é esta casa (debruçada sobre o
pátio). E da sua longa história, escrita e inscrita nestas paredes.
2. Construída na primeira metade de
século XVIII, era uma ampla casa de campo, rodeada de uma imensa quinta que foi
sendo vendida por antigos proprietários. Quando nascemos, as minhas irmãs e eu,
a casa – já pertença da família — ainda era “fora”.
A
minha mãe dizia-nos “hoje vamos a Lisboa”, quando de mão dada connosco
apanhávamos o eléctrico para os Restauradores e subíamos ao Chiado. Durante
muito tempo – as infâncias são eternas – vivemos numa espécie de arrabalde, um
mundo que tudo concentrava dentro dele, onde muita gente vinha e onde tudo
ocorria. A primeira história que ouvi, ainda criança, foi a de Paiva
Couceiro aqui escondido, por mão do meu avô materno, monárquico convicto
que se aliara ao movimento das Incursões Monárquicas e andou pela Galiza.
Henrique de Paiva Couceiro que regressara a Portugal vindo do norte de Espanha
devido à amnistia decretada por Pimenta de Castro, logo porém voltara à
condição de perseguido mercê da tibieza do Governo do mesmo Pimenta de Castro
face à fúria republicana. Era preciso abrigar Couceiro, o meu avô
ofereceu-lhe guarida em casa igualmente rebelde à República. Ficou uns
tempos, deixando nos vindouros uma aura onde se confundiam frustrações, lendas
e vagas heroicidades que perduram até hoje.
Depois
houve aquele facto curioso (do qual me apercebi muito mais tarde) de o Sporting
ter sido fundado neste pátio, nos idos de 1906, fruto da forte amizade de
meu avô e de seu irmão com o grupo dos fundadores. Logo no início do século, o
entusiasmo de dois irmãos activos e desportivos, os Gavazzos, levara-os
a fundar o Sport Clube de Belas — que mal floresceu e pouco durou. Como a
vontade não esmorecesse, surge então o Campo Grande Football Clube (porque a
maior parte do grupo vivia por estas bandas). Após um início auspicioso, muitas
iniciativas e algum sucesso, instalou-se a polémica, depois a divisão,
seguiu-se a dissidência. Estava-se em Portugal. Graças porém a José Alvalade,
rapaz de desenvoltura e iniciativa, neto de Visconde abastado, os “dissidentes”
partem para outra. E que outra: em Abril de 1906, o Sporting Clube de
Portugal nasce euforicamente numa sala do primeiro andar da nossa casa. O
que não deixa de ser irónico para uma não adepta.
3. Durante o Estado Novo
vinham salazaristas. O meu pai conhecia bem Salazar, tendo aliás muito
jovem sido seu secretário em S.Bento. A casa e o regime confraternizavam bem e
tanto fazia que viessem ministros, deputados ou simplesmente amigos
“salazaristas”. Vinham naturalmente. Lembro-me que alguns eram ouvidos com
interesse, pela sua inteligência, ou pela informação de que dispunham: Luís
Supico Pinto, visitante habitual do Campo Grande; Alexandre Ribeiro da
Cunha, colaborador próximo de Salazar e amigo de sempre do meu pai; Francisco
Leite Pinto, Luís Camara Pina, José Paulo Rodrigues; Pedro Moura e Sá, ouvido
sempre com devoção pela sua rara qualidade intelectual. E Jorge Jardim. Quer
antes, quer depois do início da guerra de África. Trazia com ele os ventos
africanos, aventuras que mais pareciam ficções (e talvez fossem), sagas sem
aparente verosimilhança mas com vertigem.
Mas
igualmente me lembro – e bem – de ver, desde pequena, o meu pai, no seu
escritório cá de casa — chamava-se mesmo assim, “o escritório” — a ler o Diário
de Lisboa. Comprava-o todos os dias e também muito naturalmente o lia, o ar
aqui nunca foi rarefeito. Havia convicções fortes (fortíssimas), temas
sagrados — África — mas nenhum interdito. Nada nos foi deturpado, nenhuma
escolha nos foi imposta, nenhum amigo nos foi vetado, vinha gente de todo lado
e quadrantes. Talvez por isso, com 17 anos, comecei a colaborar na RTP, no
“Programa Juvenil”, a convite da Professora Ivette Centeno, que o fazia e
dirigia.
Dada
esta circulação de ar e de ideias, mal disparou o PREC o pátio viu-se muito
naturalmente poiso de revolucionários e de contra revolucionários. Em igual
grau, com igual peso, estatura e estatuto. Conselheiros da Revolução,
ministros, militares influentes do “25 de Abril de 1974” de um lado; militares
de alta patente, civis, personagens de peso, que hostilizavam a revolução, do
outro. Às vezes na mesma noite, muitas vezes à mesma hora, uns entravam para
uma casa, outros para a outra, e outros ainda para uma terceira (há muitas
moradas na casa de meus pais…). Com ardor e calor cada morada queria seriamente
levar a melhor sobre as outras, num crescendo que se ia tornando alucinante.
Estas
movimentações assim contadas mais se assemelham a uma gincana mas não o foram
de todo, nem estas, nem as que as precederam. Foram antes perigosas e
sérias. Sucede porém que só se tornaram afinal possíveis dado o livre
entendimento com que desde sempre, cada um neste pátio se geriu a si mesmo.
Gerindo a sua consciência numa livre relação com as suas convicções, o país, os
valores, a vida.
Nada
foi fácil, nada foi de borla, para alguns foi duro. Digo sempre que se as
paredes ou as árvores do pátio pudessem falar, escrevia-se um farto (e
suculento) episódio da história recente.
Tudo
isto deixou — e continua a deixar — uma marca. Uma quase herança, algo de
parecido com uma “responsabilidade”. De algum modo prosseguir o legado da casa.
Sem o trair, nem atraiçoar a independência com que nunca deixou de ser
levantado.
Que
tarefa.
4. Lembrei-me hoje do
pátio porque houve festa. E alguma comoção derramada sobre o casamento de um
benjamim e, feito inédito por aqui, em boda bilingue, que o benjamim
escolheu uma Katharina vienense (hoje as coisas estão assim, filhos pelo mundo,
mais sangue estrangeiro na família, netos poliglotas, muitas cidades europeias
ao mesmo tempo, novos costumes).
Mas
tal como ocorre há muitos anos, o pátio mais uma vez esteve à altura, os seus
personagens também. Na noite a escorrer nas janelas abertas sobre o jardim,
reeditaram-se gestos e costumes, havia rosas, ouviu-se Schubert tão
maravilhosamente cantado, bebeu-se, festejou-se só com amigos do peito. E coisa
(quase) de assombro, assistiu-se à dança de uma valsa (Strauss, who else?) miraculosamente dançada sobre a tábua larga
do soalho, um longo vestido seda de Viena acompanhando o movimento de um
cavalheiro enlevado, numa quase irreal sintonia de gestos e acordes. Foi
breve, fugaz, fugídio, como são os momentos de graça. E talvez de felicidade.
5. Num momento em que o
mundo não oferece — nem exibe — nenhuma confortável certeza, ser do pátio é
certamente uma delas.
PS: Caríssimo leitor, vou de férias (que é como quem diz). Outros
valores mais altos se levantam por agora. Até um regresso!
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