segunda-feira, 31 de julho de 2017

Complementares


Um artigo jovem, o de João Miguel Tavares, jovem bem formado, saudavelmente impaciente com o desastre de uma governação titubeante, de segredinhos e murmúrios entre dentes, de sorrisinhos convencionais apaziguantes, de repentinas notícias de sucessos mal justificados, para contrabalançar os insucessos inesperados, de apoio aparente à esquerda por conveniência própria, enquanto esperou os votos da sua combinação prévia que inicialmente a beneficiou, na realidade parecendo atraiçoar a esquerda quando, impante, julga poder singrar já sozinha, esquecidos os compromissos, porque responsável perante o país e o seu grupo parlamentar que lhe impõe juízo e mais reserva. Um artigo adulto, o de António Barreto, e sabiamente rigoroso e triste, como nos habituou. Dois artigos que se complementam, ao descrever-nos tantas anomalias recentes, nas facécias governamentais fugidias às responsabilidades, coisa do foro judicial, pelo descrédito e desvergonha, se mais exemplos prévios não preenchessem os nossos sucessos governativos, de tanta irregularidade digna de intervenção, esta, naturalmente, manietada, ao modo antigo. O Mosteiro da Batalha nos salva, na sua beleza etérea. Mas tinham que ser chamadas imperfeitas, as tais “capelas” tão perfeitas.
1º Texto: “Tudo esclarecido?” Só podem estar a gozar
Jamais me passaria pela cabeça que num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à contagem dos cadáveres.
João Miguel Tavares
25 de Julho de 2017
Até ao passado sábado, sempre considerei que a história dos supostos mortos de Pedrógão que as autoridades estariam a ocultar não passava de uma teoria da conspiração, e não das mais inspiradas. Os mortos-fantasma de Pedrógão Grande rivalizavam com “avistei Elvis Presley”, “Carlos Paião foi enterrado vivo” ou “o homem nunca foi à Lua”. Jamais me passaria pela cabeça que num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à contagem dos cadáveres, dedicando-se a fazer cuidadosas separações entre “mortes directas” (supostamente 64, falecidas por inalação de fumo ou por queimaduras) e “mortes indirectas” (pelo menos uma, que o Expresso detectou, mas que podem ser três, dez ou vinte, porque ninguém sabe ao certo).
E neste ponto, caros leitores, já não há sal de fruto que trave o profundo mal-estar que se apodera das pessoas decentes. Como se já não bastasse a dimensão da tragédia, eis que temos a Protecção Civil, o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Justiça e o próprio primeiro-ministro a desvalorizarem os mortos e os vivos deste país, de uma forma absolutamente inqualificável, ao barrarem o acesso à mais elementar informação. Na sequência da notícia do Expresso dando conta de uma 65.ª vítima que morreu atropelada enquanto fugia de casa, e depois de uma suposta clarificação do tema por parte da Protecção Civil e do Ministério da Justiça, António Costa tratou de arrumar a questão com um displicente: “já está tudo esclarecido”. Como? Tudo esclarecido? Não, senhor primeiro-ministro. Na verdade, tudo continua por esclarecer, porque as supostas clarificações não clarificaram coisa alguma. O que a Protecção Civil fez foi veio reafirmar que havia 64 mortos em “consequência directa” do fogo, e que outros eventuais casos não se integravam nos critérios “definidos” como vítimas do incêndio. E o Ministério da Justiça, ao ser confrontado com o pedido para divulgar a lista dos mortos de Pedrógão, declarou não poder revelar tal informação por ela se encontrar em “segredo de justiça”. Juro. Segredo de justiça.
A gente esfrega os olhos e não acredita. Entre a declaração do primeiro-ministro e os comunicados da Protecção Civil e do Ministério da Justiça o coração balança – qual deles será o mais vergonhoso? António Costa não quer saber do número de mortos e recusa dar ao país esclarecimentos básicos. A Protecção Civil diz que para ela só conta quem morreu queimado, o que faz tanto sentido quanto dizer que na contabilidade de Entre-os-Rios só conta quem morreu afogado. O Ministério da Justiça invoca o segredo de justiça para negar o acesso ao nome das vítimas e à forma como morreram, como se o fogo fosse um malfeitor a monte e pudesse usar a informação para reincidir nas suas actividades criminosas. Às vezes, parece mesmo que as instituições do Estado se divertem a gozar com a nossa cara.
E nós, infelizmente, deixamos. Não podemos deixar. De uma vez por todas, digam-nos quantas pessoas morreram em Pedrógão no dia 17 de Junho de 2017, fosse por inalação de fumo, queimaduras, acidente de automóvel, atropelamento, afogamento ou paragem cardíaca; digam-nos quantas morreram de forma directa, de forma indirecta, ou de que forma for; digam-nos qual o número redondo e verdadeiro, e de caminho parem de desrespeitar as vítimas, as suas famílias e todos aqueles que ainda acreditam, porventura ingenuamente, viver num país civilizado. As pessoas sérias agradecem antecipadamente a atenção.
2º Texto: Sem emenda - Segredo de injustiça
Por António Barreto          D. N., 30.7.17
Como foi possível chegar aqui, a esta polémica obscena a propósito dos fogos, em que quase todas as opiniões sobre os desastres, as causas, as soluções e as responsabilidades são dominadas pela simpatia partidária? O governo e apoiantes tudo fazem para esconder o falhanço, dissolver responsabilidades, acusar os serviços e denunciar a oposição. A oposição vitupera e acusa, faz demagogia, aproveita e aproveita-se. Toda a gente sofre em directo e chora para as notícias das oito. Fala-se em nome dos mortos, poucos referem os vivos.
Percebem-se os incêndios. Com o clima mediterrânico, as nossas matas, a desordem florestal, a insuficiência de bombeiros profissionais, a inércia dos governos fora da estação dos fogos, os criminosos mal castigados, as nomeações partidárias para os serviços de prevenção, a aquisição de um sistema de comunicações pelo ministro de então que é o Primeiro-ministro de hoje, as misteriosas compras de equipamento pesado, os estranhos contratos de aluguer de meios de combate, a corrupção imposta por alguns bancos e umas tantas empresas de serviços, com tudo isto, percebe-se que haja incêndios, que não haja prevenção adequada, que a luta contra os fogos acabe por ser descoordenada e ineficaz, que se coloquem em perigo de vida os bombeiros, os polícias, os enfermeiros e os guardas, para já não falar dos cidadãos, dos lavradores e dos velhotes.
Mas há algo que não se percebe. Como foi possível que um conjunto de instituições, prestigiadas umas, outras menos, considere que um desastre esteja em “segredo de Justiça” e que este se aplique a uma lista de mortos… Segredo de justiça? Para acidentes deste género? É simplesmente absurdo! Como é possível admitir que um governo invoque o segredo de justiça e se reclame da separação de poderes para não publicar a lista de mortos desde o primeiro minuto? Como foi possível chegar a esta hipocrisia canhestra que tenta esconder-se atrás de argumentos jurídicos que nada têm a ver com o assunto? Uma lista de mortos a enterrar é um segredo? De quem? Para quem? Os governos, as direcções gerais, as empresas de seguros, os bombeiros e os autarcas não têm obrigações perante os cidadãos? O que estava realmente em segredo? Os nomes? As circunstâncias? O sitio da morte? Ou as responsabilidades do governo?
Como é possível que se tenha estabelecido um blackout informativo tentando impedir que autarcas, bombeiros, comandantes de guardas e polícias, responsáveis pela prevenção e pela saúde informem o público? E que se acuse de oportunismo e demagogia quem quer que faça perguntas sobre o que se passou? E que os partidos que apoiam o governo sejam incapazes de uma exigência de informação? Desde quando é demagógico fazer perguntas? Por que razão não se pode ou não se deve discutir o que realmente fez a diferença, isto é, a falha de previsão, a ausência de prontidão, a falta de coordenação e a carência de autoridade? Quem assim reage, como reagirá em todos os outros casos?
Como foi possível desnaturar de tal modo a democracia e os costumes para se chegar a este ponto? Como foi possível deixar que esta democracia se parecesse com a ditadura aquando das inundações de Lisboa e de outros desastres, para já não falar dos feridos e mortos da guerra do Ultramar com os quais o governo tentava também fazer selecção e tratamento? Como deixaram os deputados, os magistrados, os militares, os médicos, os autarcas e os comandantes dos bombeiros e das polícias que se chegasse a este ponto?
Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto.
DN, 30 de Julho de 2017
AS minhas fotografias

Varanda renascentista das Capelas Imperfeitas no Mosteiro da Batalha – Não é facilmente visível. Para a encontrar, tem de se saber o que se procura. É uma extraordinária varanda construída numa fase adiantada das Capelas que virão a ficar “Imperfeitas”. Os seus autores serão Miguel Arruda e João Castilho, arquitectos do Mosteiro nos anos 1530 e 1540. A varanda (tribuna ou janela), recheada de imagens e símbolos de difícil interpretação, fica ofuscada pelo portal manuelino sobre o qual se encontra. A distância que nos separa dela ajuda a passar desapercebida. Mas é uma obra inesquecível. Além das personagens cimeiras, quimeras e seres híbridos, temos, na base das três colunas, o rei D João III ladeado por um Africano e um Índio! As esculturas, de autor desconhecido, terão sido feitas a partir de modelo, o que era raro e, no caso do rei, inédito até essa altura. Na verdade, são retratos. Aquelas duas personagens no mesmo nível e com quase a mesma dignidade do rei deixam-nos a meditar na nossa história.

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