Sendo práticas pouco habituais entre nós,
desordeiros por excelência, e reivindicativos das nossas cores que ofuscam as
demais, num sectarismo exaltado e irracional, a serenidade e firmeza de
conceitos de Francisco Assis define-o como um ser livre e responsável, de uma
maturidade intelectual que se revela não só nos artigos que escreve, como nas análises
políticas em que intervém, sempre sóbrio e educado, trazendo-me ao pensamento,
uma vez mais, a pergunta “Porque não foi escolhido para PR?”, ressaibos,
é certo, das leituras policiais de Agatha Christie, e o seu misterioso título “Porque
não pediram a Evans?”, “Why didn’t they ask Evans?” que eu traduzia do francês “Porque
não perguntaram a Evans?” Oxalá ele responda que sim, um dia.
O Estado da Nação
Se há conclusão que se pode extrair do que se
passou no último mês é que em diversas áreas subsiste um Portugal arcaico.
Público, 13 de Julho de
2017
Francisco Assis
Assisti de forma intermitente
ao debate do Estado da Nação ontem levado a cabo no Parlamento. Essa
intermitência impede-me a elaboração de um juízo devidamente fundamentado sobre
a discussão aí travada. Não fiquei com má ideia do pouco que aí vi. O país
continua a dispor de bons parlamentares e o confronto entre o governo e a
oposição pareceu-me ter decorrido com a devida elevação e de molde a contribuir
para o esclarecimento da opinião pública. O meu apreço pela democracia
representativa, e em especial pela dimensão parlamentar da mesma, impele-me a
uma especial exigência neste domínio. Compreendo que aqueles que à direita
e à esquerda abominam a representação parlamentar olhem para este tipo de
debates de outra forma. Não é porém o meu caso: congratulo-me sempre que os
nossos governantes e os nossos parlamentares se revelam à altura das suas
responsabilidades políticas.
Não há democracia sem consenso
e sem dissenso. Um parlamento é o lugar onde se manifestam os diferentes pontos
de vista próprios de uma sociedade plural, no respeito por um conjunto de
regras indispensáveis à manutenção de uma democracia deliberativa. Esta
pressupõe a devida articulação entre uma razão comunicacional e o
reconhecimento do valor criativo do conflito. É por isso mesmo que não pode
haver assuntos tabus no debate democrático, sob pena de se restringir
ilegitimamente o campo da discussão pública.
O país vive um tempo assaz
complexo. Por um lado, a economia cresce, o desemprego diminui, as
finanças públicas parecem encaminhar-se para uma inédita situação de equilíbrio
e as exportações atingem níveis elevados; por outro lado subsiste a
sensação de que nada de essencial muda: os problemas estruturais permanecem, a
dívida pública continua a ser uma das mais elevadas do mundo, os serviços
públicos soçobram nos momentos decisivos e a austeridade sob novas formas
continua a prevalecer. Paradoxalmente, os partidos que apoiavam a
anterior solução governativa exprimem preocupação com a redução abrupta do
investimento público e com a dimensão das cativações que afectam o normal
funcionamento do Estado, ao passo que os partidos da extrema-esquerda fingem
ignorar o quanto há de continuidade na presente política económica e orçamental
face ao período anterior.
Os mais recentes
acontecimentos ocorridos no nosso país ? a tragédia de Pedrógão e o episódio
burlesco-dramático de Tancos ? confrontam-nos porém com uma realidade que não
podemos ignorar. O país, apesar das boas novas que se anunciam no plano
superficial, precisa de reformas profundas de modo a acautelar a modernização
económica e a preservação de um Estado eficiente, quer nas suas funções
directamente ligadas à soberania, quer naquelas que remetem para o domínio
social.
Se há conclusão que se pode
extrair do que se passou no último mês é que em diversas áreas subsiste um
Portugal arcaico, alheio a qualquer cultura de exigência e profundamente
subsidiário das velhas manhas de uma pobreza ancestral, pronto a ressurgir a
cada instante menos feliz da nossa história. Por muito que se tente culpar
a natureza, não é aceitável que num país europeu com o presente estádio de
desenvolvimento técnico morram 64 pessoas num incêndio florestal. E nenhum
argumento válido pode ser invocado para justificar a vergonhosa falta de
segurança verificada num dos principais aquartelamentos militares do nosso
país. Uma e outra questão remetem para um problema mais geral que tem que ver
com o financiamento e a organização do Estado nas suas múltiplas vertentes.
Estou convencido de que há em
Portugal um vasto consenso acerca da necessidade de garantir a existência de um
Estado dotado dos devidos recursos, quer no domínio das funções soberanas, quer
no plano de uma acção providencial. Nunca alimentei a tese de que a direita
portuguesa se limita a defender um Estado mínimo, reduzido ao acautelamento dos
deveres associados à manutenção da soberania, como nunca admiti que a esquerda
se preocupasse exclusivamente com a dimensão social desse mesmo Estado.
Uma coisa é certa: esta é a
altura própria para discutirmos com toda a profundidade qual deve ser o papel
do Estado numa sociedade organizada de acordo com os princípios demo-liberais,
como é aquela em que vivemos. Essa discussão obriga a uma reflexão sobre o
financiamento, a dimensão e as prioridades desse mesmo Estado.
Verdadeiramente, quem tem
de responder de forma adequada a esta questão são aqueles que se reconhecem num
modelo de organização política, económica e social que valoriza simultaneamente
a importância da livre iniciativa individual e a necessidade de um Estado
activo, no sentido de garantir a segurança dos indivíduos e de promover a
igualdade de oportunidades e a solidariedade social. Para esses é evidente
que o país precisa de reformas e que a mera gestão do quotidiano, por muito
bonançosas que sejam as circunstâncias económicas, não constitui uma resposta
aceitável. Continuo a pensar que o problema da presente solução
governativa consiste, pela própria natureza da maioria parlamentar que a
suporta, na sua estrutural incapacidade de se projectar para além do domínio da
gestão conjuntural. Nessa perspectiva, a corajosa opção que o governo
tem demonstrado pela fidelidade à opção europeia torna ainda mais evidente o
carácter contraditório da solução político-parlamentar em que se alicerça. Não
será aliás por acaso que o PCP continua impunemente a ofender a memória de
várias décadas da acção política do PS, identificando-a sumariamente com aquilo
que designa, com o seu proverbial sectarismo, como “as políticas da direita”, e
que o Bloco de Esquerda procura acentuar a desconformidade entre os
compromissos europeus e o negócio político fundador da presente maioria
parlamentar.
O país pós-Pedrógão e
pós-Tancos não é substancialmente distinto do que era há dois meses, e, como já
aqui escrevi na semana passada, o que sucedeu nestes dois casos poderia ter
ocorrido noutro tempo com qualquer outro governo. Esse é que é o nosso drama.
Drama esse que tenderá a perpetuar-se na situação de impasse em que o país
subsiste. Lamento dizê-lo, mas continuo a pensar que os entendimentos
contranatura não permitem mais do que três coisas: gestão, propaganda e
adiamento. O PS, por si só, seria capaz de muito mais do que isso.
2. Na semana
passada referi-me a uma carta que enviei ao ministro dos Negócios Estrangeiros
e que até àquela data não tinha merecido qualquer resposta. A esse propósito
falei de falta de cortesia. O Ministro Augusto Santos Silva veio, entretanto,
dizer que essa carta não foi recebida no MNE. Ora, uma carta não recebida não
poderia logicamente ser respondida. O ministro dos Negócios Estrangeiros teve
aliás a cortesia de solicitar ao seu gabinete que contactasse o meu a fim de
esclarecer o assunto. É um gesto que registo com agrado. Significa que temos um
ministro dos Negócios Estrangeiros que alia a educação às excepcionais
qualidades de inteligência e de competência que nunca deixamos de lhe
reconhecer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário