terça-feira, 18 de julho de 2017

Desvios


Somos muito instáveis, não há que ver. E estarolas. Ou espertos. Eu já vi Macron e Merkel amiguinhos e apertando as mãos, a "assegurar" o eixo Paris-Berlim, mas na festa da França andaram desencontrados e Macron disse coisas gentis a Trump, desenrolando-se as respectivas bandeiras em simultâneo, em recordação e homenagem a um passado colaboracionista imprescindível a uma continuidade mais decente. Trump gostou do que viu e ouviu, Macron desunha-se junto dos grandes, mas em separado, ninguém sabe o que lhes vai nas mentes, a todos eles, e talvez nem mesmo eles o saibam com precisão. Os textos seguintes apontam argumentos de futurologia, esperemos que se não torne trágico o futuro, com tanto saracoteio de Macron e Trump, Merkel, segura, aguarda. O cinismo continua a gerir as aparências de virtude e os patriotismos ambiciosos parecem subjazer às eficiências altruístas. Quanto a nós, portugueses, aqui estamos, como sempre, sequiosos e ardentes, a extinguir os fogos que acendemos, como espectáculo iluminístico activador da nossa sabedoria. Leiamos Miguel Loff e Pedro Jordão, que são historiadores e não seguidores do AO da nossa grande projecção no mundo.
OPINIÃO
O regresso do Ocidente
Toda esta discussão banal, tem procurado omitir a evidência de que uns e outros partilham um mesmo ocidentalismo.
Miguel Loff
Público, 8 de Julho de 2017
 “A questão fundamental do nosso tempo é saber se o Ocidente tem suficiente determinação para sobreviver". No dia seguinte à enésima demonstração de que o líder dinástico da Coreia do Norte quer jogar o mesmo jogo belicista dos americanos, Trump voltou a desfraldar a velha bandeira do Ocidente/Mundo Livre. Foi em Varsóvia, ao lado do presidente polaco, Andrzej Duda, um dos líderes da extrema-direita que chegou ao poder num dos maiores países da UE.
Os ocidentalistas devem estar contentes. Depois de todo este último ano preenchido com tanto lamento pelo pouco empenho que o novo presidente americano parecia ter relativamente à NATO, Trump volta a sintonizar plenamente com esse exército de atlantistas e neoconservadores que mantêm, por mais tempo do que eu imaginara, uma campanha contra ele, muito mais centrada nas formas do que na substância. “Temos nós suficiente confiança nos nossos valores para os defender a todo o custo? Temos suficiente respeito pelos nossos cidadãos para proteger as nossas fronteiras? Temos coragem e desejamos, de facto, preservar a nossa civilização face àqueles que a querem subverter e destruir?”
Paremos um pouco para pensar: afinal, o que separa Trump dos seus críticos atlantistas? Não são estes que querem o reforço do gasto militar? Não é o que repete o secretário-geral da NATO? E não é essa a grande campanha de Trump, exigindo aos seus aliados na NATO que gastem pelo menos 2% do PIB em defesa? Ou o que se achará ser aquela "coragem para preservar a nossa civilização"? Não anda Trump por esse mundo fora a fazer de caixeiro viajante das grandes companhias armamentísticas norteamericanas? Em Ryad (capital ocidental como poucas...) assinou o maior contrato de sempre com os sauditas, dando-lhes luz verde para ameaçar o Qatar (e, em última instância, o Irão) com a guerra - coisa, no mínimo, tão inócua quanto a invasão do Kuwait por Saddam Hussein com as consequências que se podem imaginar no custo do petróleo e da energia. Em Varsóvia, elogiou a Polónia por ser "um dos poucos países que respeita o compromisso da NATO quanto à despesa militar" e por ser "um aliado vital contra o Estado Islâmico e uma nação que mostra como a defesa do Ocidente é uma questão de vontade" (La Repubblica, 6.7.2017). De vontade e de mísseis, os Patriot, para ser mais preciso, que Trump acaba de lhes vender, para que os polacos os possam usar contra Putin - o mesmo que os atlantistas Trump-céticos nos querem convencer ser o grande aliado do novo presidente USA. Os que julgam que Trump quer trair o Ocidente com Putin parecem-se com aqueles que julgavam em 1939-41 que Hitler traíra o Ocidente com Stalin e alimentam um dos grandes equívocos de interpretação do trumpismo e do seu projeto para "Make America Great Again!": provocar/agravar a instabilidade permanente do sistema internacional, alimentar um estado de guerra permanente que justifique a consolidação de um estado de emergência tornado norma social e política e que assuma o rearmamento internacional como programa de reativação da economia e da hegemonia dos EUA.
Toda esta discussão banal sobre se o trumpismo é uma forma de nacionalismo e sobre se alimenta o regresso dos nacionalismos na Europa (o Brexit, a extrema-direita a dirigir governos na Europa Centro-Oriental e a participar em vários por toda a Europa), contrapondo nacionalistas e europeístas (se houvesse conceitos mais difíceis de definir...), tem procurado omitir a evidência de que uns e outros partilham um mesmo ocidentalismo, isto é, uma ideologia de superioridade civilizacional do Ocidente que, num mundo instável, se confirmaria, meio século depois das descolonizações, como tendo o dever (e a legitimidade) de reimpor (ou conservar?) uma nova ordem mundial. Significa isto fechar o ciclo histórico da emancipação afroasiática e consagrar uma visão neocolonial do mundo? Pouco importa! Que depois se discuta que Trump não tem "dignidade" para ser presidente dos EUA e líder do Ocidente é secundário. Como bem pergunta Ross Barkan, "o que é a dignidade [presidencial], afinal? Invadiu George W. Bush o Iraque com dignidade?" (Guardian, 6.7.2017)
OPINIÃO
Portugal, a Alemanha e a identidade
A Alemanha é, paradoxalmente, um dos principiais motores e um dos principais riscos da Europa.
Pedro Jordão
A gradual mas inexorável mutação de um mundo internacional para um ambiente transnacional, interativo e global, gera fenómenos de hibridação cultural, económica, política e de segurança. As realidades mudam qualitativamente nesse plano e concorrem para transformar mentalidades, valores, perceções morais e éticas, modelos económicos e comportamentos. Subsequentemente regista-se uma evolução no plano da identidade de nações e indivíduos. A “construção europeia”, que no essencial consiste num processo de integração regional, projeta no seu espaço geográfico um semelhante fenomenologia.Compreensivelmente, a evolução das identidades nacionais num mundo transnacional é um processo natural e espontâneo. A questão que se coloca no plano da criação de uma “identidade europeia” é a de avaliar se ela se está a formar espontaneamente (a única via legítima) ou se, pelo contrário, ela está a ser subrepticiamente imposta aos cidadãos enquanto alguém tenta deliberadamente anular as identidades nacionais. A conclusão será talvez muito grave. Muito mais grave do que os cidadãos imaginam.A Alemanha é, paradoxalmente, um dos principiais motores e um dos principais riscos da Europa. As iniciativas de integração europeia, no pós-Guerra, tiveram como inconfessado (mas sólido) objetivo central integrar a temida Alemanha numa cultura democrática e pacífica, num espaço regional económico e operativo comum e interdependente. Utilizando linguagem popular, pretendia-se colocar-se a Alemanha “sob controlo”, em interação com a Europa em lugar de a manter “à solta”. Procurava-se, assim, controlar a Alemanha e evitar riscos de nova guerra, o que, até agora, foi bem conseguido. Contudo, hoje, de uma inicial “europeização da Alemanha”, passou-se, em algum grau, a uma “germanização da Europa”. A Alemanha é central nas decisões europeias e no financiamento da UE. O próprio alargamento da UE não é estranho a esse facto. Na realidade, os novos membros mais importantes que aderiram à UE em 2004, como a Polónia, a Hungria e a República Checa, eram já uma área de fortíssima influência alemã (onde o marco alemão era correntemente quase tão utilizado como as moedas locais), assim aumentando o peso específico da Alemanha na condução dos destinos futuros da Europa alargada.Para muitos (pseudo) europeístas é um sacrilégio refletir sobre aquilo que deve, ou não, ser o futuro da Europa, como se questionar seja o que for no “processo europeu” seja, automaticamente, uma espécie de heresia a punir, um pecado mortal, uma peste perigosíssima, uma posição imoral. Na verdade, esse extremismo pedante, fanático, impositivo e inquisitorial é um dos grandes obstáculos a uma genuína e harmoniosa construção europeia. O obscurantismo e a promoção quase fascizante de conceitos de “pensamento único” nunca são inteligentes ou eficientes. Nem legítimos.Não sou um eurocéptico. Acredito sinceramente que em muitos domínios (não todos) podemos criar economias de escala e sinergias que poderão ser úteis a todos os europeus. Porque a Europa em que acredito é aquela que é construída pelos cidadãos, não aquela que lhes é imposta.Portugal é um país de gente de bons costumes que tem o desagradável costume de se deixar manipular e orientar por políticos e partidos. Quando o partido da simpatia de cada um decide a sua “orientação de voto”, milhões de portugueses obedientemente a seguem. É pena, porque este povo se demite da sua capacidade cívica, da sua dignidade e da sua personalidade. Outros povos são menos manipuláveis e não tremem perante a possibilidade de cometer o perigoso “crime” de desobedecer a um qualquer grupo de dirigentes partidários. Pensam por si. E, por definição, dessa forma definem e mantêm uma identidade própria. Portugal demitiu-se de o fazer. Encontra-se em perda de identidade. A culpa não cabe aos alemães; é dos portugueses em geral e, em especial, de uma classe política que afastou o povo português do seu alienável direito de decidir o seu futuro, livremente, sem a obstaculização de políticos que, antidemocraticamente, se julgam tutores de um povo.Em contraste com o que é praticado em países menos evoluídos como Portugal, a Alemanha assenta o seu sucesso económico também na forma como trata bem os seus cidadãos e trabalhadores. Os alemães têm seis semanas de férias e auferem remunerações quatro vezes superiores às dos portugueses, enquanto são a economia mais competitiva da Europa e uma das mais competitivas do mundo. Em Portugal não se compreende, obviamente. Ninguém paga propinas no ensino público, desde a escola primária ao doutoramento. A assistência social dos trabalhadores alemães é excelente e gasta muito mais que a de Portugal, mas geralmente gera excedentes de milhares de milhões de euros. Enquanto outras nações pensam ser evoluído concentrarem-se nos serviços, a base industrial é o grande motor do poder económico alemão.Portugal é um país em que, provincianamente, se dedicam as luzes da ribalta aos políticos, enquanto os melhores portugueses estão fora da política mas desaproveitados. A Alemanha é mais perspicaz. Perante a vulnerabilidade dos países do Sul da Europa, como Portugal, repletos de indivíduos de grande potencial num contexto de desemprego, a Alemanha corre a, metodicamente, recrutar nestes países técnicos para o seu país. Não quer políticos de Portugal; procura os portugueses bons, que em geral não estão na política.Em síntese, contrariamente à generalidade dos outros países europeus, a Alemanha tem uma estratégia inteligente. Sabe o que quer e para onde vai.É crescentemente óbvia a dificuldade que a UE tem em encontrar uma nova forma de protagonismo e de identidade num mundo que deixou de ser eurocêntrico, que é intensamente intercultural e que se constrói em torno de novos centros de poder económico, político e militar, que se afastam da Europa. A União Europeia confronta-se com múltiplos problemas que lhe causam uma crise de identidade, num mundo que já não controla e que a ultrapassa crescentemente. Talvez os maiores problemas da Europa sejam, afinal, a sua paroquial visão política e a falta de compreensão estratégica das dinâmicas que estão a mudar o mundo neste novo século. A antidemocrática imposição aos cidadãos de uma visão única e indiscutível da Europa não é uma solução. Pelo contrário, é talvez o fim a prazo.

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