quarta-feira, 26 de julho de 2017

Evolução


Com a evolução da ciência e a descoberta progressiva de meios para a fazer evoluir, um dia descobrirão que esse de há 300 mil anos não será ainda o mais antigo espécime de homo sapiens que praticou o fogo para se servir e hoje o usa para se destruir. O texto – já antigo de mês e meio, no Público, que guardei religiosamente para o transcrever no meu blog, tão curioso que é, acordou em mim ecos de tristeza, bem ao jeito de um dos espécimes de crânio bem assente – Cesário Verde – “Assim que pela História ele se aventura e alarga”, já no seu tempo. A par da dor e da revolta, tão suas, talvez surgisse hoje nele uma enorme raiva artística, neste estranho mundo de afogados a fugir da morte e de assados por conta de incendiários que ninguém pune. Recordemos, pois, a “sinfonia poética” “O Sentimento de um Ocidental”, no seu segundo andamento, como corolário enaltecedor de uma descoberta tão valiosa, que, como tudo o que passa, se perderá no pó dos tempos.

A nossa espécie é cem mil anos mais antiga
Os traços do rosto seriam parecidos com qualquer pessoa que hoje se cruza connosco na rua. O crânio tinha uma forma mais alongada. Caçava sobretudo gazelas e zebras. Viveu há cerca de 300 mil anos em África, mais precisamente no Norte de África. Os cientistas dizem que é o primeiro da nossa espécie.
Público, 7 de Junho de 2017
Fósseis descobertos em Jebel Irhoud, em Marrocos, estão a reescrever a história sobre o início da nossa espécie revelando uma nova primeira fase da evolução do Homo sapiens. A descoberta de ossos e ferramentas de pedra que terão entre 300 mil e 350 mil anos fez recuar cem mil anos o ponto de partida do calendário do homem moderno. É a mais antiga “raiz da nossa espécie” alguma vez descoberta em África e em qualquer parte do mundo, dizem os cientistas.
 O primeiro da nossa espécie” é o título do comunicado do Instituto Max Planck para Antropologia Evolutiva, na Alemanha, sobre a descoberta dos mais antigos fósseis de Homo sapiens, em Jebel Irhoud, Marrocos, feita por investigadores desta instituição. Na verdade, é um novo primeiro da nossa espécie. Até agora, esse lugar na história evolutiva era ocupado por uma população que viveu na África Oriental há cerca de 200 mil anos. O estudo publicado esta quinta-feira na revista Nature, além de esclarecer o nosso passado, reescreve esta história.
Pensávamos que o berço do homem moderno estava na África Oriental há 200 mil anos, mas os nossos dados revelam que o Homo sapiens se espalhou por todo continente africano há cerca de 300 mil anos. Muito antes de uma dispersão do Homo sapiens para fora de África, houve uma dispersão em África”, diz o paleoantropólogo Jean-Jacques Hublin, investigador do Max Planck que assina o artigo na Nature. O cientista liderou com Abdelouahed Ben-Ncer, do Instituto Nacional de Arqueologia e Património marroquino, em Rabat, a investigação feita por uma equipa internacional de cientistas.
Os novos dados não significam que existe um novo berço do homem, defende Jean-Jacques Hublin, que acredita que África foi uma espécie de berçário com várias formas de Homo sapiens, vários berços dispersos pelo continente. E se até agora existiu um consenso sobre as origens africanas da nossa espécie que levou alguns especialistas a concluir que o Jardim do Éden estava situado na África Oriental e subsariana, o investigador do instituto Max Planck corrige: “Se existe um Jardim do Éden é do tamanho de África inteira.”
A reviravolta na história da evolução humana aconteceu em Marrocos, num sítio arqueológico chamado Jebel Irhoud (perto de Sidi Moktar, a cerca de 100 quilómetros de Marraquexe), que é conhecido desde os anos 60. Ali, onde há muito, muito tempo existiu uma gruta, foram encontrados fósseis humanos e animais (de gazelas e zebras) e também vários artefactos da chamada “Idade Média da Pedra” africana .Foto
Jebel Irhoud fica perto de Sidi Moktar, a cerca de 100 quilómetros de Marraquexe SHANNON MCPHERRON (INSTITUTO MAX PLANCK)
Os mineiros e o crânio
O reconhecimento da importância do lugar que esteve ocupado por uma exploração de extracção mineira não foi imediato. Os primeiros vestígios foram encontrados por mineiros que, durante os trabalhos, atingiram uma parte do solo e entre os sedimentos identificaram artefactos e ossos, lembrou Jean-Jacques Hublin, durante a conferência de imprensa organizada pela Nature sobre este trabalho. Entre estes “destroços” estava um crânio que os mineiros entregaram ao médico da exploração. Reza a história que, depois de o guardar durante algum tempo, o médico terá finalmente decidido levar este crânio até um professor universitário conhecido. Só mais tarde a descoberta e a sua importância foi (re)conhecida. No compasso de espera, os trabalhos de extracção mineira continuaram,  possivelmente,  destruindo muito do que poderia estar ali enterrado, lamenta hoje o paleoantropólogo.
Sempre existiu algum debate e incerteza sobre a idade geológica das ossadas encontradas na gruta de Jebel Irhoud. Além dos ossos, havia também ferramentas de pedra semelhantes a achados feitos em lugares associados à chamada “cultura mousteriana” (associada aos Neandertais). Assim, os fósseis encontrados no local foram originalmente datados como tendo cerca de 40 mil anos, sugerindo-se que deveriam pertencer a uma versão de Neandertal africano. Isto quando ainda se acreditava que os humanos modernos eram o resultado da evolução de antepassados dos Neandertais. Uma hipótese que já caiu por terra sabendo-se hoje que, num momento da história, as linhagens de Homo sapiens e Neandertais (que chegaram a coexistir na Europa e no Médio Oriente) se separaram. Os Neandertais extinguiram-se há quase 30 mil anos e o Homo sapiens evoluiu progressivamente até ao que somos hoje.
Desde cedo se percebeu que os resultados dos exames que iam sendo feitos a estes vestígios não coincidiam com um antepassado africano do Neandertal. Já em 1970, por exemplo, um estudo sobre o crânio encontrado em Jebel Irhoud revelou que a estrutura facial do fóssil era bastante diferente dos Neandertais mostrando características semelhantes às do Homo sapiens. Mas, apesar destas pistas, os investigadores da altura não consideraram que este fóssil fosse um Homo sapiens arcaico. Isso só aconteceu agora.
Um novo projecto de escavações em Jebel Irhoud, que começou em 2004, aumentou a descoberta de fósseis de Homo sapiens de seis para 22 e ajudou a esclarecer as dúvidas. Este trabalho com mais de uma década culminou agora no artigo publicado na Nature. Entre os novos achados estão duas peças importantes: um crânio quase completo e uma mandíbula inferior com a dentição completa. “Tivemos muita sorte”, constata Jean-Jacques Hublin, feliz com a qualidade e preservação dos fósseis encontrados. Também há outros ossos humanos e animais e ferramentas. Mas, apesar do bom estado de todas as amostras, o tempo acabou por varrer qualquer hipótese de obter um resultado com análises de ADN, esclarecem os cientistas, confessando alguma frustração.
Jean-Jacques Hublin coordenou os trabalhos de análises dos fósseis que serviram para identificar inúmeras características, incluindo morfologia facial, mandibular e dentária, que parecem aproximar estes vestígios dos humanos modernos. Os rostos destes indivíduos seriam bastante parecidos com os nossos. O trabalho de reconstituição feito com centenas de medições em 3D no computador, estatísticas e imagens de tomografias mostram que “a forma facial dos fósseis de Jebel Irhoud é quase impossível de distinguir dos homens modernos que vivem hoje”, refere o comunicado do Instituto Max Planck.
É a forma da caixa craniana que revela o lado arcaico destes fósseis. Ao contrário da forma arredondada das nossas cabeças, estes indivíduos possuíam um crânio mais alongado. “A forma interior da caixa craniana reflecte a forma do cérebro”, diz Philipp Gunz, outro dos autores do artigo. Ou seja, o cérebro seria diferente também na sua organização. Jean-Jacques Hublin adianta, por exemplo, que se pode perceber que estas pessoas tinham o cerebelo mais pequeno do que nós, mas um pouco maior do que o dos Neandertais. Na nossa linhagem, perdeu-se a forma alongada e desenvolveu-se o cerebelo. Talvez o desenvolvimento do cerebelo tenha empurrado para fora os lados parietais e, assim, arredondado o crânio”, sugere o paleoantropólogo. Os hominíneos de Jebel Irhoud representam então uma primeira fase evolutiva de Homo sapiens, defendem os cientistas. “Não seriam propriamente humanos modernos [como nós agora] mas são Homo sapiens”, diz Jean-Jacques Hublin.
A nova análise de todos os fósseis recuperados também permitiu concluir que pertencem, pelo menos, a cinco indivíduos. Na conferência de imprensa, Jean-Jacques Hublin precisou que se tratava de três adultos (que terão morrido jovens), um adolescente e uma criança com “sete ou oito anos”. Na ausência de peças como a pélvis ou outra parte do esqueleto que possam ajudar a esclarecer se eram homens ou mulheres, o cientista arrisca apenas afirmar que entre os três crânios de adultos há um com traços mais marcados que poderão sugerir que se trata de um homem e outro com “características mais delicadas” que poderá pertencer a uma mulher.
As ferramentas e o fogo
Faltam peças neste puzzle mas os sinais e outros vestígios encontrados são suficientes para alguma especulação. Tudo leva a crer que há cerca de 300 mil anos Jebel Irhoud tinha uma gruta e servia de abrigo a caçadores que se deslocavam em África. Para este exercício de reconstituição, é preciso imaginar África como um lugar muito diferente do que é hoje. Houve uma altura, acreditam os cientistas, em que a região hoje ocupada pelo deserto do Sara era fácil de transpor, permitindo migrações dos humanos. Acredita-se que estes indivíduos o tenham feito e assim alcançado o Norte de África. Em Jebel Irhoud, descansavam e passavam uma ou duas noites. E ali faziam fogo, uma actividade que deixou marcas que foram decisivas para a revelação feita agora pelos cientistas.

O Sentimento dum Ocidental - Noite Fechada (II parte), de Cesário Verde

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de dom!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.


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