Com a evolução da ciência e a descoberta
progressiva de meios para a fazer evoluir, um dia descobrirão que esse de há
300 mil anos não será ainda o mais antigo espécime de homo sapiens que
praticou o fogo para se servir e hoje o usa para se destruir. O texto – já antigo
de mês e meio, no Público, que guardei religiosamente para o transcrever no meu
blog, tão curioso que é, acordou em mim ecos de tristeza, bem ao jeito de um
dos espécimes de crânio bem assente – Cesário Verde – “Assim
que pela História ele se aventura e alarga”, já
no seu tempo. A par da dor e da revolta, tão suas, talvez surgisse hoje nele
uma enorme raiva artística, neste estranho mundo de afogados a fugir da morte e
de assados por conta de incendiários que ninguém pune. Recordemos, pois, a “sinfonia
poética” “O Sentimento de um Ocidental”, no seu segundo
andamento, como corolário enaltecedor de uma descoberta tão valiosa, que, como
tudo o que passa, se perderá no pó dos tempos.
A nossa espécie é cem mil anos mais antiga
Os traços do
rosto seriam parecidos com qualquer pessoa que hoje se cruza connosco na rua. O
crânio tinha uma forma mais alongada. Caçava sobretudo gazelas e zebras. Viveu
há cerca de 300 mil anos em África, mais precisamente no Norte de África. Os
cientistas dizem que é o primeiro da nossa espécie.
Público, 7 de Junho de 2017
Fósseis descobertos em Jebel Irhoud, em Marrocos, estão a reescrever a
história sobre o início da nossa espécie revelando uma nova primeira fase da
evolução do Homo sapiens. A descoberta de ossos e ferramentas de pedra que
terão entre 300 mil e 350 mil anos fez recuar cem mil anos o ponto de partida
do calendário do homem moderno. É a mais antiga “raiz da nossa espécie” alguma
vez descoberta em África e em qualquer parte do mundo, dizem os cientistas.
“O primeiro da nossa espécie” é o título do comunicado do Instituto Max Planck
para Antropologia Evolutiva, na Alemanha, sobre a descoberta dos mais antigos
fósseis de Homo sapiens, em Jebel Irhoud, Marrocos, feita por
investigadores desta instituição. Na verdade, é um novo primeiro da nossa
espécie. Até agora, esse lugar na história evolutiva era ocupado por uma
população que viveu na África Oriental há cerca de 200 mil anos. O estudo
publicado esta quinta-feira na revista Nature, além de esclarecer o nosso
passado, reescreve esta história.
“Pensávamos que o berço do homem moderno estava na África Oriental há
200 mil anos, mas os nossos dados revelam que o Homo sapiens se
espalhou por todo continente africano há cerca de 300 mil anos. Muito
antes de uma dispersão do Homo sapiens para fora de África, houve uma
dispersão em África”, diz o paleoantropólogo Jean-Jacques Hublin,
investigador do Max Planck que assina o artigo na Nature. O cientista
liderou com Abdelouahed Ben-Ncer, do Instituto Nacional de Arqueologia e
Património marroquino, em Rabat, a investigação feita por uma equipa
internacional de cientistas.
Os novos dados não significam que existe um novo berço do homem, defende
Jean-Jacques Hublin, que acredita que África foi uma espécie de berçário com
várias formas de Homo sapiens, vários berços dispersos pelo continente. E
se até agora existiu um consenso sobre as origens africanas da nossa espécie
que levou alguns especialistas a concluir que o Jardim do Éden estava situado
na África Oriental e subsariana, o investigador do instituto Max Planck corrige:
“Se existe um Jardim do Éden é do tamanho de África inteira.”
A reviravolta na história da evolução humana aconteceu em Marrocos, num
sítio arqueológico chamado Jebel Irhoud (perto de Sidi Moktar, a cerca de
100 quilómetros de Marraquexe), que é conhecido desde os anos 60. Ali, onde há
muito, muito tempo existiu uma gruta, foram encontrados fósseis humanos e
animais (de gazelas e zebras) e também vários artefactos da chamada “Idade
Média da Pedra” africana .Foto
Jebel Irhoud fica perto de Sidi Moktar, a cerca de 100 quilómetros de
Marraquexe SHANNON
MCPHERRON (INSTITUTO MAX PLANCK)
Os
mineiros e o crânio
O reconhecimento da importância do lugar que esteve ocupado por uma
exploração de extracção mineira não foi imediato. Os primeiros vestígios foram
encontrados por mineiros que, durante os trabalhos, atingiram uma parte do solo
e entre os sedimentos identificaram artefactos e ossos, lembrou Jean-Jacques
Hublin, durante a conferência de imprensa organizada
pela Nature sobre este trabalho. Entre estes “destroços” estava um
crânio que os mineiros entregaram ao médico da exploração. Reza a história que,
depois de o guardar durante algum tempo, o médico terá finalmente decidido
levar este crânio até um professor universitário conhecido. Só mais tarde a
descoberta e a sua importância foi (re)conhecida. No compasso de espera, os
trabalhos de extracção mineira continuaram, possivelmente, destruindo muito do que poderia estar ali
enterrado, lamenta hoje o paleoantropólogo.
Sempre existiu algum debate e incerteza sobre a idade geológica das ossadas
encontradas na gruta de Jebel Irhoud. Além dos ossos, havia também
ferramentas de pedra semelhantes a achados feitos em lugares associados à
chamada “cultura mousteriana” (associada aos Neandertais). Assim, os fósseis
encontrados no local foram originalmente datados como tendo cerca de 40 mil
anos, sugerindo-se que deveriam pertencer a uma versão de Neandertal africano.
Isto quando ainda se acreditava que os humanos modernos eram o resultado da
evolução de antepassados dos Neandertais. Uma hipótese que já caiu por
terra sabendo-se hoje que, num momento da história, as linhagens de Homo
sapiens e Neandertais (que chegaram a coexistir na Europa e no Médio
Oriente) se separaram. Os Neandertais extinguiram-se há quase 30 mil anos e
o Homo sapiens evoluiu progressivamente até ao que somos hoje.
Desde cedo se percebeu que os resultados dos exames que iam sendo feitos a
estes vestígios não coincidiam com um antepassado africano do Neandertal. Já em
1970, por exemplo, um estudo sobre o crânio encontrado em Jebel Irhoud revelou
que a estrutura facial do fóssil era bastante diferente dos Neandertais
mostrando características semelhantes às do Homo sapiens. Mas, apesar destas
pistas, os investigadores da altura não consideraram que este fóssil fosse
um Homo sapiens arcaico. Isso só aconteceu agora.
Um novo projecto de escavações em Jebel Irhoud, que começou em 2004,
aumentou a descoberta de fósseis de Homo sapiens de seis para 22
e ajudou a esclarecer as dúvidas. Este trabalho com mais de uma década culminou
agora no artigo publicado na Nature. Entre os novos achados estão duas
peças importantes: um crânio quase completo e uma mandíbula inferior com a
dentição completa. “Tivemos muita sorte”, constata Jean-Jacques Hublin,
feliz com a qualidade e preservação dos fósseis encontrados. Também há outros
ossos humanos e animais e ferramentas. Mas, apesar do bom estado de todas as
amostras, o tempo acabou por varrer qualquer hipótese de obter um resultado com
análises de ADN, esclarecem os cientistas, confessando alguma frustração.
Jean-Jacques Hublin coordenou os trabalhos de análises dos fósseis que
serviram para identificar inúmeras características, incluindo morfologia
facial, mandibular e dentária, que parecem aproximar estes vestígios dos
humanos modernos. Os rostos destes indivíduos seriam bastante parecidos com os
nossos. O trabalho de reconstituição feito com centenas de medições em 3D no
computador, estatísticas e imagens de tomografias mostram que “a forma facial
dos fósseis de Jebel Irhoud é quase impossível de distinguir dos homens
modernos que vivem hoje”, refere o comunicado do Instituto Max Planck.
É a forma da caixa craniana que revela o lado arcaico destes fósseis. Ao contrário
da forma arredondada das nossas cabeças, estes indivíduos possuíam um crânio
mais alongado. “A forma interior da caixa craniana
reflecte a forma do cérebro”, diz Philipp Gunz, outro dos autores do artigo. Ou
seja, o cérebro seria diferente também na sua organização. Jean-Jacques Hublin
adianta, por exemplo, que se pode perceber que estas pessoas tinham o
cerebelo mais pequeno do que nós, mas um pouco maior do que o dos Neandertais. “Na
nossa linhagem, perdeu-se a forma alongada e desenvolveu-se o cerebelo. Talvez
o desenvolvimento do cerebelo tenha empurrado para fora os lados parietais e,
assim, arredondado o crânio”, sugere o paleoantropólogo. Os hominíneos
de Jebel Irhoud representam então uma primeira fase evolutiva de Homo
sapiens, defendem os cientistas. “Não seriam propriamente humanos modernos
[como nós agora] mas são Homo sapiens”, diz Jean-Jacques Hublin.
A nova análise de todos os fósseis recuperados também permitiu concluir que
pertencem, pelo menos, a cinco indivíduos. Na conferência de imprensa, Jean-Jacques Hublin
precisou que se tratava de três adultos (que terão morrido jovens), um
adolescente e uma criança com “sete ou oito anos”. Na ausência de peças como a
pélvis ou outra parte do esqueleto que possam ajudar a esclarecer se eram homens
ou mulheres, o cientista arrisca apenas afirmar que entre os três crânios de
adultos há um com traços mais marcados que poderão sugerir que se trata de um
homem e outro com “características mais delicadas” que poderá pertencer a uma
mulher.
As ferramentas e o fogo
Faltam peças neste puzzle mas os sinais e outros vestígios
encontrados são suficientes para alguma especulação. Tudo leva a crer que há
cerca de 300 mil anos Jebel Irhoud tinha uma gruta e servia de abrigo a
caçadores que se deslocavam em África. Para este exercício de
reconstituição, é preciso imaginar África como um lugar muito diferente do que
é hoje. Houve uma altura, acreditam os cientistas, em que a região hoje
ocupada pelo deserto do Sara era fácil de transpor, permitindo migrações dos
humanos. Acredita-se que estes indivíduos o tenham feito e assim alcançado o
Norte de África. Em Jebel Irhoud, descansavam e passavam uma ou duas noites. E
ali faziam fogo, uma actividade que deixou marcas que foram decisivas para a
revelação feita agora pelos cientistas.
O Sentimento dum Ocidental - Noite Fechada (II parte), de Cesário
Verde
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de dom
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
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