sábado, 1 de julho de 2017

HERÓIS DO TEMPO em obituário


Separados no espaço e na acção, dois homens, próximos na morte, que realizaram acções de mérito – um na política europeia, outro no domínio da exegese bíblica, um, alemão, outro português, ambos evocados pelos seus excelentes comentadores, em homenagem póstuma: Helmut Kohl, por Teresa de Sousa, Frei Francolino Gonçalves, por Frei Bento Domingues O. P; o primeiro, chanceler da Alemanha, de 1982 a 1998, católico e democrata-cristão, nascido em 1930, falecido em 16/6/2017, o segundo, investigador da Escola Bíblica de Jerusalém, nascido em Portugal, em 1943, falecido – de cancro – em Jerusalém, em 16/6/2017, segundo lemos também no sedutor artigo de Alexandra Lucas Coelho -“O meu amigo em Jerusalém -  (Francolino Gonçalves, 1943-2017) .
O texto de Teresa de Sousa, recheado de informação política sobre alguém que passou por nós no vago dos afazeres e que com prazer revemos. O texto de Frei Bento Domingues, de tanto interesse sobre a personagem intelectual Frei Francolino Gonçalves - (que o artigo da internet de Alexandra Lucas Coelho mais humaniza) – na problemática ligada à interpretação monoteísta do Jeová bíblico.

Helmut Kohl, o bom gigante
Viveu os últimos anos com amargura e ressabiamento. Mas o seu lugar na História já estava traçado.
Público, 16 de Junho de 2017
No dia 11 de Janeiro de 1996, 61 chefes de Estado e de Governo reuniram-se na Notre Dame, em Paris, para prestar a última homenagem a François Mitterrand. A figura de Helmut Kohl, o chanceler da Alemanha, destacava-se inevitavelmente entre os convidados. Imóvel, as lágrimas caíam-lhe pelo rosto. Perdia um amigo, um homem excepcional que partilhou com ele os infortúnios da História  europeia mas também a capacidade de a salvar do seu próprio passado. Ambos tinham vivido a guerra. O Presidente francês, mais velho, vivera os terríveis dilemas morais da mais envergonhada das derrotas. Foi prisioneiro de guerra. Entrou na Resistência. O mais novo conheceu a tragédia da guerra na sua cidade natal, Ludwigshafen, na Renânia, mil vezes bombardeada pelos aviões aliados, numa família modesta de católicos fervorosos e pouco amigos de Hitler. Foi recrutado aos 15 anos para o corpo de bombeiros. Viu o seu irmão mais velho morrer na frente de batalha da Normandia, em 1944. Quando quis dar o seu nome, Walter, ao seu filho mais velho, a mãe avisou-o de que estava a tentar o destino. “Mãe, prometo-lhe que ele não morrerá numa guerra entre Estados europeus.” A paz transformou-se no objectivo de uma longa vida política. Comungou com Mitterrand a convicção profunda de que “o nacionalismo é a guerra”. Nesse dia, em Paris, despedia-se de um amigo com quem garantiu que a Alemanha unificada continuaria a fazer parte de uma Europa unificada: o seu grande sonho político, que nunca abandonou.
A noite em que o Muro caiu
Até ao dia 9 de Novembro de 1989, foi um líder poderoso mas contestado. Subiu todos os degraus da CDU até chegar ao topo. A política estava-lhe no sangue. Tinha uma confiança absoluta em si próprio. As elites alemãs desprezavam-no. Consideravam-no um provinciano. Gozavam com a sua pronúncia. Franz Josef Strauss, o líder da CSU da Baviera, profundamente conservador, declarou-o inepto para governar, candidatando-se ele próprio à chancelaria em 1980. Perdeu contra o SPD e os liberais do FDP, que na altura funcionavam como “king maker”, aliando-se à esquerda ou à direita. Em 1982, quando retiraram o seu apoio a Helmut Schmidt, o chanceler social-democrata, Kohl convenceu-os a mudar de aliança. Chegou à chancelaria através de uma “moção de censura construtiva” que derrubou Schmidt. Foi chanceler durante 16 anos. “Fui subestimado durante décadas. Dei-me muito bem com isso.
O seu destino mudou no dia em que o Muro de Berlim caiu. Estava em Varsóvia. Voou até Berlim. Percebeu, porventura melhor do que qualquer outro político do seu tempo (talvez à excepção de Willy Brandt), que a unificação era imparável. Dispunha de um poderoso instinto político, conhecia a História, tinha uma determinação equivalente à sua estatura. Alguns dias depois da queda do Muro, delineou sozinho um “plano em dez pontos” para a unificação, que seria necessariamente mais longo. A sua maior preocupação era não desestabilizar Gorbachev no seu caminho da Perestroika. François Mitterrand ficou furioso por não ter sido informado. Desconfiava da unificação alemã. Olhava com horror o renascimento de uma Grande Alemanha no centro do continente. Reagiu mal. Chegou a visitar o quase moribundo Governo da Alemanha de Leste, em Berlim. Margaret Thatcher era ainda mais crítica. Ambos acreditaram que o Presidente soviético nunca o permitiria, nem nunca aceitaria uma unificação no quadro da NATO e da CEE. Apenas George Bush, o Presidente americano, pensava como Kohl: o processo seria rápido e inevitável. Havia uma oportunidade histórica criada pelo homem que “descongelara o mundo”. Gorbachev já dera o tiro de partida, mesmo não avaliando inteiramente as consequências, libertando os países da Europa Central e de Leste para seguirem o seu próprio caminho. A “Doutrina Sinatra”. “My Way.” Por outras palavras, não haveria mais invasões e ocupações.
A realidade encarregou-se de desactualizar rapidamente o “programa em dez pontos” de Kohl. Em Berlim ou em Leipzig e Dresden, os alemães do Leste já tinham iniciado a sua marcha imparável para a República Federal. A “súbita aceleração da História”, na célebre frase de Jacques Delors, não se compadeceria com hesitações ou com transições com demasiadas fases. Kohl apenas imaginava a unificação no quadro da NATO e da Comunidade Europeia. A “neutralidade” era ainda uma exigência de Moscovo. George Bush teve um papel fundamental para tranquilizar o seu homólogo soviético. A unificação alemã tinha de ser feita no quadro da unificação europeia. Kohl anunciava uma “Alemanha europeia e não uma Europa alemã”. Em Estrasburgo, no mês de Dezembro 1990, numa cimeira convocada por Mitterrand, os dois líderes deram início ao caminho que iria levar a Maastricht e à união económica e monetária. Num debate com alunos universitários, no ano em que o euro nasceu, explicou-lhes que nunca poderia ter feito um referendo sobre o abandono do marco. “Por uma só razão: tê-lo-ia perdido.”
O erro dos outros
Na Alemanha Federal, nem toda a elite política antecipou aquilo que Helmut Kohl percebeu imediatamente. Pelo contrário. A distância entre as duas Alemanhas era colossal. Do lado de cá, um país rico, pós-materialista, pacifista e europeu. Que tinha como único símbolo nacional o poderoso marco. Do outro lado, um país decadente, cinzento, em que todos desconfiavam de todos. Kohl sabia que manter o Leste separado era impossível. O caminho era de um só sentido e ninguém o conseguiria parar. Willy Brandt compreendeu imediatamente o sentido dos acontecimentos. Como Kohl. Oskar Lafontaine, o então líder do SPD, a quem chamavam o “Napoleão do Sarre”, entendeu tudo ao contrário. Nas eleições de Dezembro de 1990, as primeiras da Alemanha unificada, opôs-se à reunificação, considerando-a demasiado cara para os cidadãos da RFA.Acham que está certo conceder a todos os cidadãos da RDA o mesmo acesso ao sistema de segurança social, ao seguro de desemprego, à saúde e à reforma”, disse ao Suddeutsche Zeitung. Teve uma derrota histórica.
Kohl teve de enfrentar a oposição interna do Bundesbank e das elites económicas, quando decidiu reconverter cada marco da RDA, sem qualquer valor, num marco da RFA. Entendeu o grito que se repetia em cada manifestação: “Se o marco não vier até nós, iremos nós ter com o marco.” No dia 1 de Julho de 1990, na Alexander Platz, era meia-noite quando os grandes bancos alemães já instalados na parte leste de Berlim abriram as suas portas para trocar os marcos sem valor pela mais poderosa moeda europeia. Foi a mais simbólica das manifestações. Que a Alemanha e a Europa pagariam caro. O Governo de Bona injectou triliões e triliões de marcos para impedir que a economia de RDA pura e simplesmente soçobrasse, endividando-se nos mercados e levando as taxas de juro a subir em toda a Europa. Prometeu a Gorbachev quantias astronómicas para financiar a saída das tropas soviéticas da RDA e a sua instalação na União Soviética. A economia alemã entrou em recessão, contaminando as economias europeias. Foi um custo pesado, que tinha de ser pago. Ironia da História: foi o SPD de Gerhard Schroeder que teve de enfrentar a situação económica alemã quando ganhou as eleições a Kohl em 1998, abrindo as portas às grandes reformas de que hoje ainda beneficia. Depois de 16 anos como chanceler, batendo o recorde do homem em que sempre se inspirou, Konrad Adenauer, acabou afastado da política pela actual chanceler, sob a acusação de ter recebido dinheiro para financiar o partido. Mais uma vez, a sua natureza revelou-se: recusou-se a dizer quem foram os financiadores, junto dos quais empenhou a sua palavra. Criticou duramente Merkel, por vezes de forma grosseira, que ambiciona hoje bater o seu recorde, acusando-a de não perceber até que ponto a Europa era vital para a Alemanha. “Ela está a destruir a minha Europa.” Nunca lhe perdoou a traição. Viveu os últimos anos com amargura e ressabiamento. Mas o seu lugar na História já estava traçado.
Confiança
As relações pessoais que criou com Mitterrand mas também com Gorbachev foram decisivas. Sabia até que ponto a confiança é fundamental na política internacional. Discutiu os termos da negociação com Gorbachev, os dois sozinhos, no jardim da sua casa de Bona, que descia em direcção ao Reno. Confiava em Mitterrand. Quando, em 1982, a União Soviética instalou nos países do Leste novos mísseis SS-20 de médio alcance apontados às cidades europeias, e os EUA se dispuseram a instalar na Alemanha mísseis de médio alcance equivalentes, Helmut Schmidt, o ainda chanceler social-democrata que sucedeu a Brandt, teve de enfrentar uma tremenda contestação, animada pela extrema-esquerda e por uma ampla ala pacifista do SPD. Kohl herdou-lhe a tarefa. Teve o total apoio de Mitterrand. “Os mísseis estão a leste e os pacifistas a oeste.” Dois anos depois, em 1984, O Presidente francês convidou-o a visitar o lugar da terrível batalha de Verdun, na Grande Guerra. Ficou para sempre a fotografia de ambos, de mãos dadas, imóveis perante o campo de batalha.
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Nem tudo foi fácil. Kohl levou tempo demais a reconhecer a fronteira Oder-Neisse que separa a Alemanha da Polónia. Em 1984, quando Reagan o visitou e lançou o célebre desafio a Gorbachev — “deite este muro abaixo” —, foi com o Presidente americano ao cemitério onde estão enterrados os militares das SS. Causou uma vaga de consternação. Quando rebentou a guerra na ex-Jugoslávia, em 1991, o seu chefe da Diplomacia decidiu, sem consultar os parceiros europeus, apoiar a independência da Croácia, velho aliado da Alemanha durante a II Guerra.
Tinha, como todos os grandes líderes, as virtudes dos seus defeitos. Deixou como legado a coragem que sempre teve de enfrentar as batalhas mais difíceis. Foi o homem certo no momento certo. É isso que a Europa lhe deve.

OPINIÃO
Um investigador original
Frei Francolino Gonçalves é reconhecido nos meios da investigação bíblica como uma das suas grandes figuras. Morreu, em Jerusalém, no dia 15 de Junho.
FREI BENTO DOMINGUES O.P.
Público, 25 de Junho de 2017
1. Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) diz que, no período medieval, “a literatura portuguesa, em matéria de traduções bíblicas, é de uma pobreza desesperada”. Esta afirmação tem sido repetida, mas nunca desmentida. A primeira tradução da Bíblia, a partir de hebraico e do grego, foi realizada por João Ferreira d’Almeida, que tinha passado, aos 14 anos, do catolicismo ao protestantismo (Igreja Reformada Holandesa). A sua tradução foi publicada e corrigida entre os séculos XVII e XVIII.
José Nunes Carreira sintetizou a história da Exegese Bíblica em Portugal [1] nos seus momentos altos e baixos. Frei Francolino Gonçalves foi um dos seus momentos mais importantes. Fez parte dos grandes investigadores da famosa Escola Bíblica de Jerusalém (EBJ), a responsável, desde os finais do séc. XIX, pelo estudo científico da Bíblia, no campo católico. Para dar a conhecer as dificuldades desse grande salto, aconselhou que fosse editada, em Portugal, uma obra incontornável do seu fundador, Marie-Joseph Lagrange, O.P. [2]
Frei Francolino morreu, em Jerusalém, no dia 15 de Junho. Nasceu em Curujas, Macedo de Cavaleiros, a 28 de Março de 1943. Professou na Ordem Dominicana em 1960.
Nunca procurou fazer carreira. Seguiu o caminho de preparação para ser uma testemunha lúcida do Evangelho. Depois dos estudos curriculares, em filosofia e teologia, em Portugal e no Canadá, foi enviado para a EBJ. Aí e durante 43 anos, trabalhou como investigador e professor. Considerou-se, até ao fim, como um estudante. Foi solicitado para fazer cursos e conferências em Paris, Berlim, Salamanca, Roma, Portugal, Tóquio, Quebec, Cusco, Lima, Santiago do Chile, México, mas as suas responsabilidades de investigador, de preparação de novos investigadores e de publicações científicas estiveram sempre ligadas à EBJ. Era a sua casa, de vida e trabalho, num contexto de atentados permanentes contra os direitos humanos.
Reconhecido nos meios da investigação bíblica como uma das suas grandes figuras, de alcance internacional. Ao ser convidado para Membro da Comissão Bíblica Pontifícia, e reconduzido pelo Papa Francisco, alguns meios de comunicação católica portuguesa acordaram para uma realidade que ignoravam.
Em Portugal, foi premiado, em 2011, pela Academia Pedro Hispano, é membro da Academia Portuguesa de História, do conselho científico de CADMO, da Revista Lusófona Ciências das Religiões, do ISTA e da Associação Bíblica Portuguesa.
Quem desejar conhecer a sua bibliografia pode recorrer ao site Bibliothèque St Étienne de Jérusalem – École Biblique et Archéologique Française [3]. Em Portugal foi, sobretudo, nos Cadernos ISTA que publicou alguns dos seus estudos mais significativos [4].
Espero que, em breve, sejam publicados em livros. Todas as vezes que tentei que isso acontecesse, dizia-me sempre que gostaria ainda de rever o conjunto, como obra unificada. A sua insatisfação nada pôde contra a morte.
2. Frei José Nunes, O.P., na celebração da Eucaristia de evocação de Frei Francolino, referiu-se a um dos seus estudos decisivos e inovadores sobre as representações de Deus nas duas religiões iaveístas do Antigo Testamento (AT) [5], isto é, a existência de dois iaveísmos diferentes. Esse estudo é muito extenso e muito analítico. A eleição de Israel, a sua libertação do Egipto e a aliança que Iavé fez com ele são os artigos fundamentais da fé iaveísta.
Esta era a opinião comum que fazia das relações entre Iavé e Israel a matriz do iaveísmo. Tornou-se, para vários autores, uma posição insustentável. Era contestada a opinião corrente liderada por uma grande figura da exegese, von Rad. A própria constituição dogmática Dei Verbum, do Vaticano II, deve muito à teologia desse teólogo luterano. Mas, na sequência de outros investigadores, Frei Francolino mostrou, pelo contrário, que o AT contém duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
Segundo o Fr. Francolino, os  exegetas não prestaram a atenção que mereciam estas vozes discordantes. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores nem, por maioria de razão, do público cristão. “As minhas pesquisas, nesta matéria, confirmaram, essencialmente, os resultados dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT, que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro, na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT.”
3. Qual é a importância da descoberta de dois iaveísmos? Julgo-a de grande alcance para todos os leitores do AT e considero-a uma das raízes do universalismo cristão. É a diferença entre um Deus universalista, Deus de todos os seres humanos e da criação, casa comum de todos, e a representação de um Deus nacionalista que confunde o Mundo com os interesses de um povo, capaz não só de o defender, mas de se tornar inimigo dos outros povos, podendo até mandá-los exterminar.
É esta distinção que nos pode ajudar a compreender o sentido e o absurdo da violência de muitas páginas da biblioteca do povo de Israel. Colocou-se na boca de Deus os interesses de um povo contra os outros povos. Não pode ter sido o Deus do Universo a escrever essas blasfémias.
NOTA: Poderá encontrar mais referências a Frei Fracolino e à sua obra no Google
[1] Exegese Bíblica, Dicionário de História Religiosa de Portugal, C-I, Círculo de Leitores, 2000, pp 221-229
[2] Recordações pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia, Biblioteca Dominicana, Tenacitas, 2017
[3]http://biblio.ebaf.info/cgi-bin/koha/opac-search.pl?q=au:Gon%C3%A7alves%20Francolino%20J
[4] http://www.ista.pt/1/upload/ista_25_2012.pdf, pp 92-136; Artigos Fr. Francolino, p117
[5] Iavé, Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e salvação, ISTA, n.º 22, 2009, pp 107-152, ver, sobretudo, pp 114-115


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