segunda-feira, 24 de julho de 2017

Já Júlio Dinis o informara


Trata o texto seguinte de um email, enviado por João Sena, de um fenómeno de aculturação linguística que faz que a terminologia inglesa, trazida com o progresso, seja a mais implantada nos países ditos civilizados, e isso se traduz no uso por vezes pedante de palavras e expressões estrangeiras que irritam os defensores dos purismos nacionais. Não se pode estranhar, contudo, esta proliferação da anglofonia, não só porque são várias dezenas as nações originárias da expansão colonial britânica, mas porque o inglês se tornou a língua-chave para uma comunicação comum, aprendida nas escolas como segunda língua, as descobertas científicas sendo em grande parte de proveniência britânica e isso até já o reivindicavam de longa data os ingleses retratados em personagens sui generis, caso de alguns súbditos de sua majestade britânica em livros de Júlio Dinis.
Lembro isto a propósito da minha irmã, que de vez em quando informa sobre as suas leituras de Júlio Dinis, especialmente em ocasiões de grande “stress” provocado pelas crueldades de um mundo assustador, de que se pretende fugir ainda que só pela evasão literária. Como sempre nos dissemos, Júlio Dinis é um escritor maior, que se lê dos nove anos aos noventa e mais, se as condições físicas e intelectuais o concederem então. O meu pai tinha-os na sua estante e desde sempre foram companheiros na nossa viagem da vida, nós próprias posteriormente preenchendo as nossas estantes com o escritor da definição simpaticamente erosiva de Eça “Júlio Dinis viveu leve, escreveu de leve, morreu de leve”, na sua homenagem fúnebre de um escritor sadiamente prolífico que morreria tão jovem. Ora há dias, a propósito das dietas que estão na ordem do dia, lembrou a minha irmã, nas nossas “causeries” matinais “du dimanche» que, em “A Família Inglesa” que anda a reler, encontrou referência aos malefícios do açúcar, o que muito estranhou, por ser obra do século XIX, e, a propósito da utilização superior do inglês no mundo, recordou o mesmo livro, que ontem trouxe e nos mostrou entusiasmada, motivo por que, a seguir ao texto do email caricaturando o uso imoderado dos anglicismos, transponho da Internet – e não sei com que outro nome haveria de a baptizar, a esta maravilhosa Internet, que me permite transcrever sem custo todo o livro, se assim o quiser. Mas limito-me aos discursos dos três velhos amigos ingleses, da sociedade comercial do Porto - Mr. Richard Whitestone, o nobre hospedeiro, Mr. Brains, o optimista, Mr. Morlays, o pessimista,  no importante jantar que servirá de charneira para o remate da intriga em torno de preconceitos e orgulhos familiares que o amor vencerá. E os bons sentimentos também.
I – O texto da Internet
«Esta é uma carta que uma senhora escreveu para um canal de televisão para que a lessem em directo:»
“Du yu espic inglish"
- "Desde que aos emblemas lhes chamam pins, aos maricas gays, às comidas frias lunches, e aos elencos de filmes, castings, este país não é o mesmo: agora é muito, muitíssimo mais moderno.
- Antes as crianças liam banda desenhada em vez de comics, os estudantes colavam posters pensando serem cartazes, os empresários faziam negócios em vez de business, e os operários, tão ordinários que eles eram, pegavam numa caixa ao meio-dia em vez  da tupperware.
- Eu, no colégio, fiz aeróbica muitas vezes, mas, que tonta que era, pensava estar a fazer ginástica. Ninguém é realmente moderno se não disser todos os dias cem palavras em inglês.
As coisas, noutra língua, soam-nos muito melhor.
- É evidente que não é o mesmo dizer bacon em vez de presunto, ainda que tenham a mesma gordura, nem vestíbulo em vez de hall, nem deficiente em vez de handicap ...  Sob este ponto de vista, nós, os portugueses somos moderníssimos.
- Já não dizemos biscoito, mas cup-cake, nem temos sentimentos, mas feelings. Compramos tickets, tablets, comemos sandwiches, vamos ao pub, praticamos rappel e raffting, em vez de acampar, fazemos camping e quando vem o frio, assoamo-nos com kleenex.
Estas mudanças de linguagem influenciaram os nossos costumes e melhoraram muito o nosso
aspecto.
- As mulheres não usam meias, mas panties, e os homens não usam  cuecas mas slips e depois de se barbearem, deitam after-shave que deixa a cara muito mais fresca que o tónico.
- O português moderno já não corre, porque correr é de cobardes, mas faz jogging e footing; não estuda, mas faz masters e nunca consegue   estacionar mas encontra sempre um parking. -- O mercado agora é o marketing; o auto-serviço, o self-service; a escala, o ranking e o director, o manager.
- Os importantes são vips, os auriculares walkmen, os postos de venda stands, os executivos yuppies; as babásbaby-sitters, e até, nannies.
- No escritório, o chefe está sempre em meetings ou brain storms e quase sempre com a public-relations, enquanto a assistant envia mailings e organiza trainings; depois irá ao ginásio fazer gim-jazz, e encontrar-se-á com todas as do jet, que acabam de fazer liftings, e com alguma top-model amante do yogurte light e do body-fitness.
- O arcaico aperitivo deu lugar aos cocktails, onde se oferece roast-beef ainda que pareça o mesmo, engorda muito menos que a carne.
- Uns, trabalham num magazine, não num programa. Na televisão, quando o apresentador diz várias vezes a palavra O.K. e dança, rodando pelo palco, a isso chama-se show, muito diferente, como sabem, do antiquado espectáculo. Já não põem anúncios, mas spots que, para além de serem melhores, permitem-lhe fazer zapping.

«Espero que tenham gostado... E que não tenham ficado com stress»

II  - Os Textos de apoio à tese:
1º Texto :  Sobre a universalidade da língua inglesa:
CAPÍTULO XXXII de “Uma Família inglesa” de Júlio Dinis: “OS CONVIVAS DE Mr. RICHARD”
«… Este mundo é um grande teatro. Pouco a pouco, ascendeu a conferência a mais sublimados assuntos. A questão política abriu campo à mais vasta questão social, onde os dois ingleses continuaram a conservar cada um a sua provada individualidade ao serviço da causa da pátria comum. Mr. Brains, o otimista, abraçava-se com entranhado afeto às utopias. Neste momento, estendendo a vista através dos séculos futuros, estava percebendo ao longe a tão almejada unidade dos povos, realizada por uma só nação, por uma legislação única, por uma língua comum; a supressão da palavra «guerra» desse vocabulário universal, em consequência de não ter objeto a que se aplicar; e depois a matéria, subjugada pela inteligência, obrigada a trabalhar, e o espírito, livre da atenção às impertinentes exigências da vida positiva, a entrar em especulações de ordem superior, em conceções metafísicas.
 — Então é que se realizará o último fim do homem na terra! Que não viva eu, Mr. Whitestone, para saudar esse grande dia! Que não possa dizer, na língua universal de então, o meu «bom-dia» ao sol que romper!
 Mr. Richard, sorrindo, com ares de quem não tinha fé muito ardente em tão dourado futuro, perguntou:
— E que língua será essa, Mr. Brains? Alguma das existentes hoje, que se generalizará; ou outra nova, que terá de se formar ainda?
— Quem o pode dizer, Mr. Richard? Isto é segredo do futuro. Mas não há dúvida que existem grandes plausibilidades a favor da inglesa.
— Ah! sim?
 — Por certo. Primeiro que tudo, é a Inglaterra a primeira nação colonial. Em todas as cinco partes do mundo é já familiar o inglês. A jovem América, nos seus elementos mais vigorosos, nos que hão de vencer os outros, é de origem inglesa também. E depois, meu caro Mr. Richard, a França tem em si inoculado o princípio destruidor que há de sacrificá-la; a França é papista, o que vem a ser o mesmo que estar condenada à morte. Demais, o carácter filosófico da língua inglesa.
 Não o seguiremos agora na dissertação filológica, cujo corolário foi que, com o andar dos séculos, toda a humanidade falaria inglês — lei que, se se realizasse, talvez concorresse a produzir grave desafinação na celebrada harmonia dos orbes, pelo lado da humanidade.
 Mr. Morlays tomou a palavra para ir à mão ao compatriota. Como era de prever, não tinham tanto de lisonjeiras as vistas de Mr. Morlays sobre os destinos sociais. A humanidade, principalmente a que não era inglesa, não devia, pensava ele, bater palmas ao futuro que se lhe antolhava. Sempre que meditava nestas coisas, Mr. Morlays, em vez de sorrir a utopias, sonhava catástrofes. Foi por isso que ponderou em tom lúgubre:
— Não creio, Mr. Brains, não creio que seja possível realizar-se dessa maneira e por o sucessivo progresso dos povos essa nacionalidade universal. Segundo o que eu tenho lido, o mundo, em que pousamos os pés, é essencialmente sujeito a convulsões; encerra um núcleo inflamado que, a cada momento, lhe está alterando a superfície. Grandes   cataclismos  têm já presenciado a humanidade, e quem sabe quantos presenciará ainda? Parte dos continentes que habitamos, segundo se lê nos livros dos naturalistas, foram outrora todos cobertos de águas; sendo de crer que nações de outros tempos estejam sepultadas hoje nos abismos do mar. Ora, se no futuro se operarem ainda dessas revoluções, como é plausível acreditar — a parte continental do globo será submergida, e do seio das águas surgirão superfícies não povoadas. O que é possível é que, em virtude das especiais condições geográficas da Inglaterra e da sua natureza insular, ela não participe da sorte dos grandes continentes, dos quais está desligada; que prevaleça e sobreviva à ruína e submersão deles, vendo até acrescerem ao seu território as novas terras, que o cataclismo arrancar do fundo dos mares. Então talvez, e só assim, se poderá realizar o futuro que Mr. Brains imagina, sendo os ingleses os únicos possuidores do globo. Depois, como se receasse que esta tão extravagante como patriótica teoria geológica não tivesse sido compreendida, acrescentou:
— Porque. reparem. Vejam este chapéu — e tomou para exemplo o chapéu de pano que servia a Mr. Richard durante as suas operações hortícolas. — Suponhamos esta copa o mundo; sendo as saliências das dobras os continentes, e as cavidades os mares; aquela pequena saliência do meio, que fica isolada das outras, seja a Inglaterra. Carregando eu nas saliências exteriores, até as desfazer, as cavidades elevam-se e vão aumentar a saliência do meio. Vêem? E, como para não perder a feição pessimista ainda nesta conceção, concluiu: — Talvez fosse uma felicidade que todas as saliências se desfizessem de vez!
Já vêem os leitores que, embora por processos diferentes, os dois compatriotas de Peel aguardavam com fé viva o mesmo fenómeno na história do futuro — o soberano predomínio da nação inglesa sobre o mundo inteiro. Esta é de facto a crença de todo o verdadeiro inglês, diversificando apenas, como os dois grandes exemplares que o leitor tem à vista, na maneira de concebê-la realizada.
 Mr. Richard sorriu à teoria histórico-geológica do amigo.
 — Será bom que, por cautela, nos vamos passando para a ilha, Mr. Morlays. O fundo dos mares não é grande clima para viver, e o cônsul da sua Majestade não nos isentará de sermos engolidos como simples portugueses.
 Mr. Brains aplaudiu cordialmente a observação do amigo Richard. À medida que se adiantava a manhã e que os odoríferos vapores da cozinha, atravessando as salas, chegavam às pituitárias, britanicamente apuradas, dos convivas, a conversa principiou a baixar das alturas, por onde pairara, para assuntos mais terrenos e comezinhos.»
2º Texto estranho à tese mas não às “causeries” das damas portuguesas:   Sobre dietas

«Mr. Whitestone pensava como S. Francisco de Sales, a quem atribuem a opinião de que o fogo é bom durante doze meses no ano. Mr. Morlays encontrou em tudo isto motivos para observações de crítica atrabiliária. — Maus hábitos, Mr. Richard, maus hábitos! Estes costumes enlanguescedores são os que têm operado a visível degeneração da raça humana. As escrófulas. — Misericórdia, Mr. Morlays! Que feia palavra para antes de jantar! — exclamou Mr. Richard, rindo. — São os males da civilização. Depois do açúcar, o pior inimigo do nosso organismo é o fogão. — Então o açúcar também? — O açúcar! Eu tenho para mim que a mais lastimosa descoberta da indústria do homem foi a desse pó insidioso, que traiçoeiramente nos tem envenenado o corpo todo, misturando-se ao sangue. — É célebre! Eu tinha ideia de que Mr. Morlays era até apaixonado pelo doce! — E que prova isso? A nossa natureza é feita assim. Adquirido o hábito do mal, até o mal, até a dor lhe é indispensável

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