Os articulistas vão analisando
o estado de uma nação que se pauta por uma habitual postura de ataque mútuo, naturalmente
mais exacerbada após as catástrofes recentes aqui vividas. A violência
instalou-se no Parlamento, o poder judicial, ao invés de prosseguir isento
e eficiente, como parte de um todo governativo de superior relevância, desce à
liça reivindicativa, o que significa que ele próprio se deixou contaminar pela
febre desordeira, não em função de uma Justiça nacional de equilíbrio e
imparcialidade, mas em função dos seus próprios interesses.
E no meio disto, um homem que
parece ser um exemplo no país, um curto texto sobre ele na mesma página do
texto de Rangel. Houvesse outros como ele, a fazer escola…
Américo Amorim: «Já se disse tudo sobre o carisma, o génio, a vontade
indomável do empresário. Despretensioso e ligado à família. Pouco se disse do “tudo”
que se aprendia e do “mundo” que se abria numa só conversa.»
I Texto: Estado de esquizofrenia política
Vicente Jorge Silva
Público, 16/7/17
A questão suplementar – e decisiva – é saber se o cruzamento destes
estados patológicos não tornará inevitável uma deriva que o país tem sabido
evitar até agora: o populismo.
Diz o dicionário (Lello) sobre a palavra esquizofrenia: "Doença
mental caracterizada pela incoerência mental e pela ruptura de contacto com o
mundo exterior". Ora, o debate parlamentar sobre o Estado da nação foi
um exemplo instrutivo de como essa doença ameaça contaminar os comportamentos
políticos.
A incoerência mental revelou-se comum quer ao Governo e os seus aliados
da esquerda, quer à oposição da direita. Não é decerto uma novidade, mas o
facto de se ter manifestado na sequência de duas situações graves – Pedrógão e
Tancos – e da demissão de três secretários de Estado, investigados pela Justiça
devido à aceitação de convites da Galp para assistirem ao Europeu de futebol,
criou um ambiente propício à esquizofrenia política.
Para além das duras acusações contra a falta de liderança
revelada pelo Governo nas últimas semanas, a oposição continua refém de uma
obsessão recorrente de que não consegue libertar-se: o saldo positivo das
contas nacionais e os índices socioeconómicos que favorecem a actual gestão
governativa. Ou seja: segundo o PSD e o CDS, esse balanço deve-se às políticas
seguidas pela anterior maioria de direita, à "austeridade
dissimulada" do Governo socialista e aos seus estratagemas orçamentais (as
famosas cativações), mas nunca, jamais, em tempo algum, ao facto de ter
ocorrido uma mudança de sentido e de rumo, com a reversão de medidas impostas
pela governação precedente. Se o país está eventualmente melhor, isso deve-se
ao Governo anterior, ainda que os factos indiquem o contrário – e de as
previsões catastrofistas de anteriores governantes, como Passos Coelho e
Assunção Cristas, se terem revelado infundadas. Eis um reflexo típico da
"ruptura de contacto com o mundo exterior" – começando, desde logo,
pela recusa em enfrentar a popularidade do Governo socialista.
Em contrapartida, o Governo insiste em cavalgar essa onda,
desvalorizando – ou iludindo – aquilo que os acontecimentos de Pedrógão, Tancos
ou as demissões dos secretários de Estado puseram em evidência: as graves
disfunções da máquina administrativa, a falta de uma visão estratégica para o
país em áreas cruciais para o seu desenvolvimento e segurança, ou ainda a
ligeireza insustentável de sentido ético revelada pelos
secretários de Estado demissionários (independentemente
da discutível natureza criminal dos seus comportamentos). São outros sinais de
"ruptura de contacto com o mundo exterior".
II Texto: O Bullying velado
ao poder jurisdicional
Inquieta-me a facilidade com que, em Portugal, se procura lançar a
dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a independência das
magistraturas.
Público, 19 de Julho de
2017
1. As
demissões dos três secretários de Estado por causa de um alegado recebimento
indevido de vantagem, traduzido em viagens a jogos do Campeonato Europeu de
Futebol de 2016, serviram mais uma vez para levantar fantasmas. Foram algumas, e bem audíveis, as vozes que se
indignaram com o Ministério Público e com o seu zelo perseguidor de políticos.
A que se soma mais um adiamento na apresentação da acusação ao
ex-primeiro-ministro José Sócrates, que também relevaria de uma gestão acrítica
do poder jurisdicional. Finalmente, tudo seria coroado pelo anúncio da greve
dos juízes, supremo gravame corporativo, agora aprazado para os inícios de
Outubro, precisamente para interferir com o apuramento do resultado das
eleições autárquicas. Magistrados do Ministério Público e juízes estariam agora
concertados para irritar e perturbar o poder político. No caso das viagens,
corria-se mesmo o risco, a acreditar em alguma prosa destilada na última
semana, de nos estarmos a aproximar do “governo dos juízes”.
2. A prosa e a
prosápia que lhe vai associada mantiveram para já um tom baixo e lateral, mas
vão fazendo o seu curso e cavando o seu sulco. A voz mais forte e desafinada
foi, porém, a do Presidente da Assembleia da República que, inusitadamente e
contra o dever de recato e de respeito pela função jurisdicional a que está
constitucional e institucionalmente adstrito, resolveu comentar o
acerto jurídico da actuação do Ministério Público. Algo que é especialmente
bizarro, se não fosse grave. Em que outra democracia e Estado de Direito, com
os quais nos gostemos de comparar, ocorre ao Presidente do Parlamento dar
palpites sobre o bem ou o mal fundado de despachos de constituição de arguidos?
Que, lembre-se, não implicam sequer qualquer acusação e que, no caso, até foram
solicitados pelos próprios. É patente que o actual Presidente da Assembleia
não soube honrar a tradição de rigorosa imparcialidade dos seus antecessores.
São muitas as ocasiões em que deixa transparecer a sua preferência partidária e
ideológica e em que conduz os trabalhos com evidente acrimónia para com os
deputados que não apoiam a actual solução governativa. E nisso, destoa e destoa
abissalmente dos seus antecessores. Mas enquanto está na pura gestão do múnus
parlamentar, está ainda dentro de uma esfera em que se submete à publicidade
crítica e a uma possibilidade (ainda que limitada) de contraditório. Agora,
quando decide passar para a relação com os demais poderes do Estado, tudo se
torna mais sério, mais denso e mais complexo.
3. De há muito
que escrevo sobre o poder jurisdicional, o estatuto dos magistrados e a função
que jurisdição e magistraturas desempenham e vão desempenhar nas democracias do
século XXI (e, em especial, se as pensarmos como democracias “poliárquicas” e
“não territoriais”). Nos últimos anos, verdade seja dita, neste preciso espaço,
não tenho tratado o tema, apesar de em diferentes colóquios e seminários, ter
regressado a ele recorrentemente. Seja como for, inquieta-me a facilidade com
que, em Portugal, por mera conveniência de partido e de conjuntura, se procura
lançar a dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a
independência das magistraturas. E mais me inquieta ainda quando ela vem quase
sempre dos mesmos sectores (e actores), que depois rasgam as vestes com as
transformações da judicatura na Turquia e na Polónia ou até na Hungria.
4. A primeira
palavra para a greve dos juízes. Não preciso aqui de mostrar pergaminhos: julgo
ter sido dos primeiros, já em 2001, a considerar a greve uma
contradição nos termos. A única coisa que poderia ser admissível – e só num
quadro de risco para o regular funcionamento das instituições democráticas –
seria uma acção destinada a defender a independência jurisdicional. Os
juízes não são funcionários públicos, são titulares de órgãos de soberania. Por
isso mesmo, questionei também sempre a possibilidade de “sindicalização” ou de
constituição de uma “associação sindical”. Em todo o caso, e desde que passei
por esta área no Governo, nos idos de 2004-2005, reconheço alto interesse
prático, mesmo que teoricamente contestável, na existência destas organizações
sindicais. Na verdade, a cristalização de alguns assuntos na esfera sindical
permite que os Conselhos Superiores respectivos não sejam tomados por esse tipo
de preocupações e assuntos, criando uma salutar divisão de esferas. Concedo,
por isso, desde então, no papel útil e meritório das plataformas sindicais de
magistrados, embora não possa em caso nenhum aceder ao reconhecimento de um
direito à greve.
5. Dito isto, que não é pouco, choca-me de sobremaneira
a tentativa de condicionamento e de acantonamento do poder jurisdicional. Ao
contrário do que muitos pensam e escrevem, nas sociedades poliárquicas do
século XXI, o papel do poder judicial vai crescer e aumentar. A grande
questão, portanto, não é a de limitar e constranger o poder judicial, como
procuram fazer a todo o transe os adeptos das democracias iliberais. A grande
questão é compreender qual o seu papel e função em sociedades democráticas em
que o poder político se “desterritorializa”. Com efeito, nestas
sociedades a garantia da esfera liberal de direitos – os direitos mais
ligados à pessoa, aí compreendidas as dimensões sociais – dependem mais
da protecção judicial do que do voto. E, por isso, é fundamental
compreender que a sobrevivência dos direitos fundamentais no novo espaço
político está intimamente dependente de um fortalecimento do poder
jurisdicional em sede de legitimidade e de responsabilidade.
6. A maioria dos comentadores, mesmo os ilustrados,
continuam a viver sob o paradigma do velho Estado. Desconhecem as tensões
multisseculares do judicial com o político, a origem teórica e histórica do
governo dos juízes ou até um módico dos sobressaltos que viveu a Itália dos
anos 90. Falam sem saber. Só porque dá jeito. Para defender os secretários de
ocasião e quejandos.
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