quinta-feira, 27 de julho de 2017

Não deixou escola


Os articulistas vão analisando o estado de uma nação que se pauta por uma habitual postura de ataque mútuo, naturalmente mais exacerbada após as catástrofes recentes aqui vividas. A violência instalou-se no Parlamento, o poder judicial, ao invés de prosseguir isento e eficiente, como parte de um todo governativo de superior relevância, desce à liça reivindicativa, o que significa que ele próprio se deixou contaminar pela febre desordeira, não em função de uma Justiça nacional de equilíbrio e imparcialidade, mas em função dos seus próprios interesses.
E no meio disto, um homem que parece ser um exemplo no país, um curto texto sobre ele na mesma página do texto de Rangel. Houvesse outros como ele, a fazer escola…
Américo Amorim: «Já se disse tudo sobre o carisma, o génio, a vontade indomável do empresário. Despretensioso e ligado à família. Pouco se disse do “tudo” que se aprendia e do “mundo” que se abria numa só conversa.»
 I Texto: Estado de esquizofrenia política
Vicente Jorge Silva
Público, 16/7/17
A questão suplementar – e decisiva – é saber se o cruzamento destes estados patológicos não tornará inevitável uma deriva que o país tem sabido evitar até agora: o populismo.
Diz o dicionário (Lello) sobre a palavra esquizofrenia: "Doença mental caracterizada pela incoerência mental e pela ruptura de contacto com o mundo exterior". Ora, o debate parlamentar sobre o Estado da nação foi um exemplo instrutivo de como essa doença ameaça contaminar os comportamentos políticos.
A incoerência mental revelou-se comum quer ao Governo e os seus aliados da esquerda, quer à oposição da direita. Não é decerto uma novidade, mas o facto de se ter manifestado na sequência de duas situações graves – Pedrógão e Tancos – e da demissão de três secretários de Estado, investigados pela Justiça devido à aceitação de convites da Galp para assistirem ao Europeu de futebol, criou um ambiente propício à esquizofrenia política.
Para além das duras acusações contra a falta de liderança revelada pelo Governo nas últimas semanas, a oposição continua refém de uma obsessão recorrente de que não consegue libertar-se: o saldo positivo das contas nacionais e os índices socioeconómicos que favorecem a actual gestão governativa. Ou seja: segundo o PSD e o CDS, esse balanço deve-se às políticas seguidas pela anterior maioria de direita, à "austeridade dissimulada" do Governo socialista e aos seus estratagemas orçamentais (as famosas cativações), mas nunca, jamais, em tempo algum, ao facto de ter ocorrido uma mudança de sentido e de rumo, com a reversão de medidas impostas pela governação precedente. Se o país está eventualmente melhor, isso deve-se ao Governo anterior, ainda que os factos indiquem o contrário – e de as previsões catastrofistas de anteriores governantes, como Passos Coelho e Assunção Cristas, se terem revelado infundadas. Eis um reflexo típico da "ruptura de contacto com o mundo exterior" – começando, desde logo, pela recusa em enfrentar a popularidade do Governo socialista.
Em contrapartida, o Governo insiste em cavalgar essa onda, desvalorizando – ou iludindo – aquilo que os acontecimentos de Pedrógão, Tancos ou as demissões dos secretários de Estado puseram em evidência: as graves disfunções da máquina administrativa, a falta de uma visão estratégica para o país em áreas cruciais para o seu desenvolvimento e segurança, ou ainda a ligeireza insustentável de sentido ético revelada pelos secretários de Estado demissionários (independentemente da discutível natureza criminal dos seus comportamentos). São outros sinais de "ruptura de contacto com o mundo exterior".
II Texto:  O Bullying velado ao poder jurisdicional
Inquieta-me a facilidade com que, em Portugal, se procura lançar a dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a independência das magistraturas.
Público, 19 de Julho de 2017
1. As demissões dos três secretários de Estado por causa de um alegado recebimento indevido de vantagem, traduzido em viagens a jogos do Campeonato Europeu de Futebol de 2016, serviram mais uma vez para levantar fantasmas. Foram algumas, e bem audíveis, as vozes que se indignaram com o Ministério Público e com o seu zelo perseguidor de políticos. A que se soma mais um adiamento na apresentação da acusação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, que também relevaria de uma gestão acrítica do poder jurisdicional. Finalmente, tudo seria coroado pelo anúncio da greve dos juízes, supremo gravame corporativo, agora aprazado para os inícios de Outubro, precisamente para interferir com o apuramento do resultado das eleições autárquicas. Magistrados do Ministério Público e juízes estariam agora concertados para irritar e perturbar o poder político. No caso das viagens, corria-se mesmo o risco, a acreditar em alguma prosa destilada na última semana, de nos estarmos a aproximar do “governo dos juízes”.
2. A prosa e a prosápia que lhe vai associada mantiveram para já um tom baixo e lateral, mas vão fazendo o seu curso e cavando o seu sulco. A voz mais forte e desafinada foi, porém, a do Presidente da Assembleia da República que, inusitadamente e contra o dever de recato e de respeito pela função jurisdicional a que está constitucional e institucionalmente adstrito, resolveu comentar o acerto jurídico da actuação do Ministério Público. Algo que é especialmente bizarro, se não fosse grave. Em que outra democracia e Estado de Direito, com os quais nos gostemos de comparar, ocorre ao Presidente do Parlamento dar palpites sobre o bem ou o mal fundado de despachos de constituição de arguidos? Que, lembre-se, não implicam sequer qualquer acusação e que, no caso, até foram solicitados pelos próprios. É patente que o actual Presidente da Assembleia não soube honrar a tradição de rigorosa imparcialidade dos seus antecessores. São muitas as ocasiões em que deixa transparecer a sua preferência partidária e ideológica e em que conduz os trabalhos com evidente acrimónia para com os deputados que não apoiam a actual solução governativa. E nisso, destoa e destoa abissalmente dos seus antecessores. Mas enquanto está na pura gestão do múnus parlamentar, está ainda dentro de uma esfera em que se submete à publicidade crítica e a uma possibilidade (ainda que limitada) de contraditório. Agora, quando decide passar para a relação com os demais poderes do Estado, tudo se torna mais sério, mais denso e mais complexo
3. De há muito que escrevo sobre o poder jurisdicional, o estatuto dos magistrados e a função que jurisdição e magistraturas desempenham e vão desempenhar nas democracias do século XXI (e, em especial, se as pensarmos como democracias “poliárquicas” e “não territoriais”). Nos últimos anos, verdade seja dita, neste preciso espaço, não tenho tratado o tema, apesar de em diferentes colóquios e seminários, ter regressado a ele recorrentemente. Seja como for, inquieta-me a facilidade com que, em Portugal, por mera conveniência de partido e de conjuntura, se procura lançar a dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a independência das magistraturas. E mais me inquieta ainda quando ela vem quase sempre dos mesmos sectores (e actores), que depois rasgam as vestes com as transformações da judicatura na Turquia e na Polónia ou até na Hungria.
4. A primeira palavra para a greve dos juízes. Não preciso aqui de mostrar pergaminhos: julgo ter sido dos primeiros, já em 2001, a considerar a greve uma contradição nos termos. A única coisa que poderia ser admissível – e só num quadro de risco para o regular funcionamento das instituições democráticas – seria uma acção destinada a defender a independência jurisdicional. Os juízes não são funcionários públicos, são titulares de órgãos de soberania. Por isso mesmo, questionei também sempre a possibilidade de “sindicalização” ou de constituição de uma “associação sindical”. Em todo o caso, e desde que passei por esta área no Governo, nos idos de 2004-2005, reconheço alto interesse prático, mesmo que teoricamente contestável, na existência destas organizações sindicais. Na verdade, a cristalização de alguns assuntos na esfera sindical permite que os Conselhos Superiores respectivos não sejam tomados por esse tipo de preocupações e assuntos, criando uma salutar divisão de esferas. Concedo, por isso, desde então, no papel útil e meritório das plataformas sindicais de magistrados, embora não possa em caso nenhum aceder ao reconhecimento de um direito à greve.
5. Dito isto, que não é pouco, choca-me de sobremaneira a tentativa de condicionamento e de acantonamento do poder jurisdicional. Ao contrário do que muitos pensam e escrevem, nas sociedades poliárquicas do século XXI, o papel do poder judicial vai crescer e aumentar. A grande questão, portanto, não é a de limitar e constranger o poder judicial, como procuram fazer a todo o transe os adeptos das democracias iliberais. A grande questão é compreender qual o seu papel e função em sociedades democráticas em que o poder político se “desterritorializa”. Com efeito, nestas sociedades a garantia da esfera liberal de direitos – os direitos mais ligados à pessoa, aí compreendidas as dimensões sociais – dependem mais da protecção judicial do que do voto. E, por isso, é fundamental compreender que a sobrevivência dos direitos fundamentais no novo espaço político está intimamente dependente de um fortalecimento do poder jurisdicional em sede de legitimidade e de responsabilidade.
6. A maioria dos comentadores, mesmo os ilustrados, continuam a viver sob o paradigma do velho Estado. Desconhecem as tensões multisseculares do judicial com o político, a origem teórica e histórica do governo dos juízes ou até um módico dos sobressaltos que viveu a Itália dos anos 90. Falam sem saber. Só porque dá jeito. Para defender os secretários de ocasião e quejandos.


Nenhum comentário: