Recursos pejorativos
E, no entanto, o trabalho torna o
homem mais vertical, apesar da “obliquidade” e frieza da designação “recurso”,
na expressão justamente crítica de Bagão Félix, aplicada ao homem coisificado, equiparado
aos demais recursos, roda ou tubo numa engrenagem de múltiplos mecanismos.
Mas não acho uma expressão ofensiva. A mulher
que limpa as casas, o professor que ensina, o médico que ajuda a salvar da
doença, o pedreiro que trabalha na calçada, uns de picareta, outros guiando o
tractor, o que repara os carros, o sapateiro que fabrica os sapatos… tantos, e
sem esquecer os que governam, e os cientistas e os artífices e os artistas, todos
são recursos de que dependem os outros recursos, mesmo os materiais que os «recursos
humanos» inventaram, maiores entre todos, por muito esmagados que sejam na
máquina infernal de que constitui pura célula, mas com o poder da sua
capacidade de decisão, “roseau pensant” na expressão clássica.
O problema está, de facto, na exploração astuciosa
e profundamente egoísta e vexatória dos que, estando na mó de cima, esmagam os
das mós de baixo, sem pensarem senão em si próprios para a repartição das
benesses e dos lucros e isso é profundamente injusto.
Mas,
não fora o trabalho, e o homem morreria de tédio, sem objectivos, ou mataria,
para se distrair, ou entregar-se-ia ao vazio de uma existência vegetativa. E
isso seria mais monstruoso ainda do que o egoísmo explorador e parasita dos
que, estupidamente, se julgam acima de todos os poderes e direitos, abusando
daqueles a quem, afinal, recorrem para aumentar o seu lucro. A própria mulher
também lutou por ele, pelo trabalho fora de casa, pela sua igualdade de
direitos, pelo companheirismo e a chamada “realização pessoal”, que se diz que
o trabalho concede.
Ao
contrário da frieza das expressões com que são designadas as pessoas, puros
recursos equiparados aos objectos, creio que, sem o borbulhar do trabalho, a
Terra seria um deserto iníquo de prostração e inércia. O homem ou a mulher como
recurso, sendo este expressão cínica e desumanizadora, não deixa de ser real, e
forma quadros bonitos de ternura, na mão que se estende ao filho pequeno ou ao
apoio ao desamparado.
Mas
o artigo de Bagão Félix é, de facto, pertinente, e foram vários os comentadores
que não resisto a transcrever, na sua justeza:
Público, 6 de
Julho de 2017
Recursos humanos: uma expressão oblíqua
Nas
empresas e organizações, a expressão “recursos humanos” está generalizada para
designar as pessoas. Ele é recursos financeiros,
ele é recursos informáticos, ele é recursos materiais, ele é recursos tecnológicos,
ele é recursos naturais, ele é, enfim e às vezes só no fim, recursos humanos.
Ou seja, meios, instrumentos para uma determinada finalidade. Historicamente,
saltámos do velho conceito marxiano de “força de trabalho” para esta
perspectiva igualmente redutora. Bastaria, aliás, substituir a palavra
mais suave de “recursos” pelo vocábulo sinónimo de “meios” para melhor se
percepcionar, quanto às pessoas, quão discutível é a referida expressão.
Aliás, podemos
ler sinceras explicações sobre Recursos Humanos ou o seu acrónimo (RH).
Transcrevo uma delas: “a primeira parte faz referência a Recursos que
é um conjunto de elementos que se tem à disposição para resolver uma série de
necessidades. A segunda parte – Humanos – é a
adjectivação do termo que equipara com outros como os tecnológicos, os
financeiros, etc.”
É óbvio que os
recursos das pessoas são humanos, mas as pessoas não são recursos (meios)
humanos. A tecnocrática expressão estendeu-se a tudo
que diz respeito à gestão das organizações. De tal sorte que há uma
crescente e preocupante tendência para ver as pessoas como componentes
meramente instrumentais. E, ao mesmo tempo, evidenciando a natureza
adjectiva como certos dirigentes vêem o trabalho (dos outros). Hoje a aridez
e a impessoalidade com que, não raro, são tratadas as questões laborais é o
sinal desta visão estritamente instrumental. Por isso agora, já não há
despedimentos (de pessoas), antes há reestruturações (de organizações) ou, em
inglês envergonhado e quantitativo, “downsizing” …
Esquece-se,
amiúde, que o primeiro fundamento do valor do trabalho é a própria pessoa. É
como pessoa que se é sujeito do trabalho. Logo o trabalho nem é um
bem-mercadoria, nem um elemento impessoal da organização produtiva.
O trabalho tem
uma dupla dimensão: objectiva e subjectiva. Objectivamente, enquanto noção
económica e técnica, consiste no conjunto de actividades, meios, instrumentos e
técnicas para a produção de bens e serviços. Na sua abordagem subjectiva,
trata-se essencialmente de o ver à luz da inerente dignidade do trabalho,
porque realizado por uma pessoa. É aqui que se exprime, em plenitude, a sua
dimensão ética e deontológica. Esta visão humanista deveria sempre ter
preeminência.
Com a
globalização desregrada, tem-se acentuado a gestão das pessoas como mera gestão
de recursos. O idadismo (ideologicamente
significando a atitude preconceituosa e discriminatória com base na idade,
levando ao descarte das pessoas ainda relativamente novas nas empresas), a tecnocracia
economicista (ou seja, a prevalência dos meios, independentemente dos
fins), o poder burocrático (uma forma gélida de separar meios e
fins) têm conduzido a formas desumanizadas, senão mesmo de uma
perigosa coisificação e robotização das pessoas, ora e apenas recursos.
De um modo quase
metafórico, direi que os sistemas contabilísticos vêem as pessoas como custo na
Conta de Exploração, mas ignoram-nas no activo dos Balanços (há excepções, como
no caso das Sociedades Anónimas Desportivas… onde, todavia, se “vendem” e
“compram” atletas chamados activos).
Os melhores
decisores são os que vêem as pessoas segundo uma justa ética dos cuidados, que
tem na sua base a riqueza da relação interpessoal, afastando a perspectiva
impessoalizada, fria e mecânica, e reforçando uma actuação baseada na
coordenação de saberes, de ideais, de aspirações, de valores (e não somente de
recursos). Como diz a doutrina social da Igreja, o trabalho é para o
homem e não o homem (apenas) para o trabalho.
Comentários
C.Machado
Um
tema muito interessante os Recursos Humanos(RH):
Em
primeiro lugar gostaria de chamar a atenção para a circunstância de sempre ter
havido muita preocupação com este tema. Posso indicar algumas referências:
–
O filme de 1936 de Chaplin, “Os Tempos Modernos” sobre os efeitos da
Organização do Trabalho do fordismo, com a cronometragem dos tempos na execução
de tarefas nas linhas de montagem industriais. Um filme de grande impacto na
altura e que passa regularmente nas Cinematecas de todo o mundo;
–
O filme mais recente de 2000, “Recursos Humanos”, de Laurence Cantet. Novos
problemas;
–
O filme de Marco Martins, “São Jorge”, de 2016;
–
O ensaio de Richard Stenner “A Corrupção do Carácter” (Trabalho, Flexibilização
e Precarização);
–
Os textos de João Freire sobre o tema Sociologia do Trabalho, com inspiração em
Alain Touraine e Pierre Dubois, que produziram muita investigação no tema.
O
que influencia hoje o tema dos RH:
–
Precarização do trabalho, nomeadamente na oferta do mercado de trabalho aos
jovens;
– A financeirização da economia, proveniente da desregulação dos mercados financeiros, trouxe a impotência do poder político perante o poder do capital. As politicas de RH hoje são uma cortina de fumo utilizada pelas empresas, conduzindo a politicas de gestão que visam simplesmente a maximização dos lucros, utilizando como armas o lobbying e a promiscuidade com os poderes estabelecidos.
– A financeirização da economia, proveniente da desregulação dos mercados financeiros, trouxe a impotência do poder político perante o poder do capital. As politicas de RH hoje são uma cortina de fumo utilizada pelas empresas, conduzindo a politicas de gestão que visam simplesmente a maximização dos lucros, utilizando como armas o lobbying e a promiscuidade com os poderes estabelecidos.
A
grande questão:
–
Quem, num mundo como este, pode falar em realização profissional e pessoal pela
via do TRABALHO? Pode considerar-se pertinente que se objective o trabalho
como lema de vida? Acredito que sim, naquelas pessoas que
verdadeiramente trabalham para os outros e para melhorar o mundo: os
profissionais da saúde, os professores, os cientistas, os artistas e outros
trabalhadores com estes correlacionados. Estes são RH;
–
Não se vislumbra que seja plausível a realização profissional numa organização
capitalista, que prossegue o objectivo de quanto maior o lucro melhor, sem
olhar a meios para atingir fins, em prejuízo do equilíbrio ambiental, da
delapidação dos recursos do Planeta ao extremo e, muito importante, como
salienta Stenner, acima referido, agredindo a saúde física e psicológica de
quem trabalha.
Questão
de ordem geral:
Nunca
existiram políticas de RH; existiram simplesmente avanços e recuos no
desenvolvimento do Modo de Produção Capitalista. A proletarização do
campesinato e o advento dos avanços tecnológicos levaram ao alargamento da
classe adstrita aos serviços(middle class) e contribuíram para a menorização
do trabalho manual pela crescente robotização.
Luis Miguel Neto
Saúdo
o ESPAÇO PUBLICO de hoje 6a feira, da autoria de António Bagão Felix! Enquanto
docente universitário de disciplinas relacionadas com Gestão de Recursos
Humanos, na Universidade de Lisboa aquele input parece-me da maior importância.
A ‘coisificação’ das pessoas nos ambientes organizacionais é um mal que, além
de historicamente paradoxal – A saga de Hawthorne foi o contrário, uma
libertação de condições opressoras e alienantes – é, também trágico, um pouco,
como a emergência do vocabulário de guerra dos ‘danos colaterais’ do jornalismo
dos ‘factos alternativos’ e dos drones assassinos como video jogos. É bom
lembrar, como é entendido, que a confusão de dimensões leva a erros lógicos e
de decisão em diferentes domínios da vida empresarial, corporativa e social,
como a discriminação etária, e não apenas de género – tanto que as organizações
podiam aproveitar da ‘experiência/saber refletido dos seus colaboradores mais
velhos! Bem haja António Bagão Felix, keep doing the good (mindful) work!
José Neto
6 de Julho
Dr.
Bagão Félix
Parabéns
pelo artigo. Muitas vezes (nem sempre) discordo do que escreve, mas, desta vez,
só posso felicitá-lo. RH é expressão generalizada de que não gosto e que
infelizmente é a semanticamente adequada a uma certa cultura empresarial. José
Neto
Manuel Figueiredo
Tudo
certo, infelizmente.
Agora,
as pessoas (meras coisas ou números) não são despedidas: a fórmula que mais se
utiliza é “a partir de (data, com um mês de antecedência) deixará de ser nosso
colaborador”.
Para
agravar ainda mais o cenário, abusa-se nas exigências (mesmo físicas) aos
trabalhadores, porque “enquanto a máquina resistir” maiores serão os ganhos: o
princípio de uma moderna versão de “escravatura”. As entidades com
responsabilidade (com deveres) alheiam-se e, se questionados, escudam-se em
argumentos falsos, não investigados. Inadmissível!
Sempre
pensei que a Concertação Social se esforçasse, pelo exemplo, em dignificar quem
trabalha: no mínimo, levar a considerar os parafusos num nível diferente dos
outros recursos, as pessoas.
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