quarta-feira, 5 de julho de 2017

Save yourself, é o que é...


Em boa hora usou Nuno Pacheco o paralelo com a história contada por Eça, que a Internet também me permitiu que transpusesse integralmente, pois serve de símbolo ao SIRESP da nossa negligência, tal como ao material hospitalar mais sofisticado que por vezes a imperícia técnica abandona ao canto da nossa pobreza indiferente, ou do nosso novo-riquismo luzidio e vão. O artigo de Nuno Pacheco, rico no conceito, tão inútil como o de Eça, explora bem, tal como este, a nossa imprevidência, ignorância, míngua de responsabilidades e a muita pobreza espiritual, na não manutenção de um meio de tratamento ou salvamento que dinheiros exteriores nos forneceram, necessitados de acompanhamento informativo que não quisemos ou não pudemos obter, deixando à sorte ou à dedicação alheia a salvação na tragédia. Não, não queremos aprender, é nossa sina, a lembrar as frustrações de Camões «.....a Pátria... que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza.»

OPINIÃO
O salva-vidas de Eça renasceu nos fogos?
Há um curioso paralelismo entre uma história antiga e um drama bem actual. No centro, está um salva-vidas.
Nuno Pacheco
Público, 29 de Junho de 2017

A história é antiga. Eça de Queiroz contou-a, como só ele sabia fazer, numa das Farpas que escrevia com Ramalho Ortigão. Datou-a de Julho de 1872 e começava assim: “Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens. Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou corajosamente, e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do Cabedelo. Conseguiram salvar 10 homens. 14 morreram.”
Esta era a notícia. Trágica nas mortes, como muitas outras. Mas esperançosa nos rápidos socorros voluntariosos que evitaram desgraça maior. Mas havia um pequeno pormenor a ter em conta e Eça não se esqueceu dele: “A 10 passos do mar, repousava o salva-vidas. O salva-vidas não desceu ao mar. (…)  Entendeu que não era com ele. Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas não. O salva-vidas só se moveria para algum caso especial, em que ele pudesse dar os seus serviços especiais – como, por exemplo, se tivesse desabado um muro. Então correria. Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se imóvel, aboborando.” Soa-vos familiar, esta história?
O episódio passou-se há 145 anos, em plena monarquia constitucional, mas há coisas em que Portugal pouco muda, por muito que mudem os seus regimes e hábitos sociais. Voltemos ao dito salva-vidas. Tinha, escreve Eça, um fiscal remunerado e uma comissão dedicada. Esta, volta e meia, reunia-se, deliberava e era mandada louvar pelo governador civil. Um dia, perguntaram ao fiscal por que motivo não tinha o salva-vidas saído ao mar. A resposta foi claríssima: “Não saiu o salva-vidas, porque não há tripulação.” Abençoada clarividência. Eça não a deixou escapar: “Então a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu – que para fazer navegar um barco é necessária uma tripulação.” Foi nessa altura que “o governador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e engenho, os mandou louvar em portaria. E começou-se a procurar uma tripulação.”
Sem sucesso. Cada marinheiro ou remador contactado, olhava o salva-vidas e recusava. “Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o barrete entre os dedos, e diziam secamente: – Menos eu!” A comissão, continua Eça, “tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se melancolicamente, e ia deliberar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico. O salva-vidas dormia.” Até que, finalmente, a comissão o visitou. E levou mãos ao nariz. Estava podre!
 “Se descesse às águas desfazia-se – foi a opinião dos peritos. E a comissão, com o olfacto resguardado, saiu e continuou a deliberar. Sempre que uma lancha se volta a comissão reúne-se e, grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado e pontual, recebe o seu ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem. E de vez em quando o senhor governador civil, despertando do seu cismar, manda louvar a comissão.” Continua a soar-vos familiar esta história, para lá do tempo e das diferenças?
Portugal anda, por estes dias e por via de uma dolorosa tragédia, não no mar mas em terra, não pelas vagas mas pelas chamas, a contas com umas letras. Duas vogais e quatro consoantes, para sermos precisos. Alinhadas numa sigla, dão o seu ar de importância. Justificada, porque foram caras. E o que é caro, pensarão muitos, deve ser bom. Os relatórios, porém, apontam-lhe falhas. Mas as letras defendem-se e dizem que correu tudo bem. Morreram 64? A culpa não é delas. É verdade, não é. Também não foi culpa do salva-vidas, em 1872, haver mortes no mar. Foi, isso sim, dos imbecis que acharam que bastava haver um salva-vidas a exibir-se na areia para que o mar, receoso, deixasse de engolir pescadores. Pois tantos anos passados, ainda há quem pense que basta exibir umas letras ameaçadoras à natureza, para que esta acalme o seu visceral furor. Estão enganados. Talvez, como sucedeu com o barco, as letras estejam podres e ninguém queira saber. Talvez tenha havido um péssimo negócio. Talvez tenha chegado a hora de pôr as letras na ordem.
E se tanta coisa se desfaz, desfaça-se ao menos uma que já está desfeita.

O artigo de Eça in Uma Campanha Alegre, Volume II, Capítulo XXIX:
O Salva-vidas da Foz do Douro
Julho 1872.
Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou corajosamente, e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do Cabedelo. Conseguiram salvar 10 homens: 14 morreram.
A 10 passos do mar, repousava placidamente o salva-vidas. O salva-vidas não desceu ao mar. Fez como o Palácio da Torre da Marca, ou como a estátua de D. Pedro IV - deixou tranquilamente os pescadores na agonia das vagas. Entendeu que não era com ele. Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas, não. O salva-vidas só se moveria para algum caso especial, em que ele pudesse dar os seus serviços especiais - como, por exemplo, se tivesse desabado um muro.
Então correria. Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se imóvel, aboborando.
O salva-vidas da Foz tem um fiscal remunerado e tem a Comissão do Salva-vidas.
Esta comissão, cujas atribuições ignoramos, revela às vezes a sua existência na prosa das gazetas. Lê-se: "Ontem reuniu-se a Comissão do Salva-vidas, em assembleia geral, para deliberar"; ou "Foi mandada louvar pelo governo civil a Comissão do Salva-vidas".
Destas deliberações e destes louvores resulta que, quando se volta uma lancha com 24 homens, morrem 14; resulta que tem de se aprestar, rapidamente, na aflição, um barco casual, com homens voluntários e compassivos, que às vezes se volta numa violência de mar, e complica o desastre; e resulta que o salva-vidas nem sequer finge.
Podia descer, molhar-se, navegar um instante: não; conserva-se agasalhado na sua habitação onde, dizem rumores gloriosos, ele está embrulhado em algodão, num cofre.
No entanto a opinião interroga o senhor fiscal. O senhor fiscal explica:
— Não saiu o salva-vidas, porque não há tripulação.
Assim foi muito tempo.
O salva-vidas não tinha tripulação. O Porto confiou sempre que o salva-vidas se tripulasse a si mesmo. Porque, enfim, um barco que tinha a forma, a construção aparente, o tamanho dos outros a que se chamava salva-vidas, devia ter qualidades originais, exclusivas, de excepção -e que naturalmente possuía o poder de se dirigir e de se tripular. E esperou-se sempre que, se houvesse um naufrágio, o salva-vidas se desamarraria, se meteria cordas e cabos, se desceria ao mar, se remaria, se iria ao leme, e ele mesmo estenderia a proa, como mão salvadora e firme, aos náufragos desolados.
Esperava-se isto do brio do salva-vidas. Vem um naufrágio. Bom! Abrem-se-lhe as portas e a comissão fica esperando que ele se espreguiçasse e corresse febrilmente ao desastre.
O salva-vidas não se moveu. - Está a dormir, disseram entre si, e sacudiram-no robustamente. - Agora, agora! murmuravam. Mas com um espanto aterrado, viu-se que o barco estava imóvel, como num alicerce. Gritava-se na praia, e o grosso mar bramia.
A comissão suava, pedia-lhe, increpava-o, cuspia-lhe: - o barco, inabalável, estendia a sua sombra bojuda sobre a quente amarelidão da areia. Então a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu - que para fazer navegar um barco é necessária uma
Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens. tripulação.
Quando a comissão, em assembleia geral, afirmou definitivamente esta ideia - foi que o governador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e engenho - os mandou louvar, em portaria. - E começou-se a procurar uma tripulação...
Mas aí foi a crise temida. Cada marinheiro, cada remador, convidado a comparecer, acercava-se do salva-vidas, apalpava-o, olhava-o, e recusava resolutamente. Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o barrete entre os dedos, e diziam secamente: - Menos eu!
A comissão tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se melancolicamente, e ia deliberar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico. O salva-vidas dormia.
Enfim um dia a comissão, exasperada, veio, em grupo, interrogar o segredo estranho. Aproximou-se do salva-vidas. Olhou e levou violentamente a mão ao nariz. O salva-vidas, o jovem salva-vidas estava podre!
Se descesse à água desfazia-se - foi a opinião dos peritos. E a comissão com o olfacto resguardado, saiu e continuou a deliberar. Sempre que uma lancha se volta a comissão reúne-se, e grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado e pontual, recebe o seu ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem.
E de vez em quando o senhor governador civil, despertando do seu cismar, manda louvar a comissão.

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário


Nenhum comentário: