Em boa hora usou Nuno Pacheco o paralelo com a história contada por Eça,
que a Internet também me permitiu que transpusesse integralmente, pois serve de
símbolo ao SIRESP da nossa negligência, tal como ao material hospitalar mais
sofisticado que por vezes a imperícia técnica abandona ao canto da nossa pobreza
indiferente, ou do nosso novo-riquismo luzidio e vão. O artigo de Nuno Pacheco,
rico no conceito, tão inútil como o de Eça, explora bem, tal como este, a nossa
imprevidência, ignorância, míngua de responsabilidades e a muita pobreza
espiritual, na não manutenção de um meio de tratamento ou salvamento que
dinheiros exteriores nos forneceram, necessitados de acompanhamento informativo
que não quisemos ou não pudemos obter, deixando à sorte ou à dedicação alheia a
salvação na tragédia. Não, não queremos aprender, é nossa sina, a lembrar as frustrações de Camões «.....a Pátria... que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza.»
OPINIÃO
O salva-vidas de Eça renasceu nos fogos?
Há um curioso paralelismo entre uma história antiga e
um drama bem actual. No centro, está um salva-vidas.
Nuno Pacheco
Público, 29
de Junho de 2017
A história é antiga. Eça de Queiroz contou-a, como só ele sabia fazer, numa
das Farpas que escrevia com Ramalho Ortigão. Datou-a de Julho de 1872 e
começava assim: “Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens.
Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou
corajosamente, e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do
Cabedelo. Conseguiram salvar 10 homens. 14 morreram.”
Esta era a notícia. Trágica nas mortes, como muitas outras. Mas esperançosa
nos rápidos socorros voluntariosos que evitaram desgraça maior. Mas havia um
pequeno pormenor a ter em conta e Eça não se esqueceu dele: “A 10 passos do
mar, repousava o salva-vidas. O salva-vidas não desceu ao
mar. (…) Entendeu que não era com ele.
Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha obrigação de vir era
a bomba dos incêndios. O salva-vidas não. O salva-vidas só
se moveria para algum caso especial, em que ele pudesse dar os seus serviços
especiais – como, por exemplo, se tivesse desabado um muro. Então correria.
Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se imóvel,
aboborando.” Soa-vos familiar, esta história?
O episódio passou-se há 145 anos, em plena monarquia constitucional,
mas há coisas em que Portugal pouco muda, por muito que mudem os seus regimes e
hábitos sociais. Voltemos ao dito salva-vidas. Tinha, escreve Eça, um
fiscal remunerado e uma comissão dedicada. Esta, volta e meia, reunia-se,
deliberava e era mandada louvar pelo governador civil. Um dia, perguntaram ao
fiscal por que motivo não tinha o salva-vidas saído ao mar. A
resposta foi claríssima: “Não saiu o salva-vidas, porque não há
tripulação.” Abençoada clarividência. Eça não a deixou escapar: “Então
a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu – que para fazer navegar
um barco é necessária uma tripulação.” Foi nessa altura que “o
governador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e engenho, os
mandou louvar em portaria. E começou-se a procurar uma tripulação.”
Sem sucesso. Cada marinheiro ou remador contactado, olhava o salva-vidas e
recusava. “Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o
barrete entre os dedos, e diziam secamente: – Menos eu!” A comissão,
continua Eça, “tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se
melancolicamente, e ia deliberar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico.
O salva-vidas dormia.” Até que, finalmente, a comissão o visitou.
E levou mãos ao nariz. Estava podre!
“Se descesse às águas desfazia-se –
foi a opinião dos peritos. E a comissão, com o olfacto resguardado, saiu e
continuou a deliberar. Sempre que uma lancha se volta a comissão reúne-se e,
grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado e pontual, recebe o seu
ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira,
as gaivotas voam, e os que naufragam morrem. E de vez em quando o senhor
governador civil, despertando do seu cismar, manda louvar a comissão.” Continua a soar-vos familiar esta história, para lá
do tempo e das diferenças?
Portugal anda, por estes dias e por via de uma dolorosa tragédia, não no mar
mas em terra, não pelas vagas mas pelas chamas, a contas com umas letras. Duas vogais
e quatro consoantes, para sermos precisos. Alinhadas numa sigla, dão o seu
ar de importância. Justificada, porque foram caras. E o que é caro, pensarão
muitos, deve ser bom. Os relatórios, porém, apontam-lhe falhas. Mas as
letras defendem-se e dizem que correu tudo bem. Morreram 64? A culpa não é
delas. É verdade, não é. Também não foi culpa do salva-vidas, em 1872, haver
mortes no mar. Foi, isso sim, dos imbecis que acharam que bastava haver um
salva-vidas a exibir-se na areia para que o mar, receoso, deixasse de engolir
pescadores. Pois tantos anos passados, ainda há quem pense que basta exibir
umas letras ameaçadoras à natureza, para que esta acalme o seu visceral furor.
Estão enganados. Talvez, como sucedeu com o barco, as letras estejam podres e
ninguém queira saber. Talvez tenha havido um péssimo negócio. Talvez tenha
chegado a hora de pôr as letras na ordem.
E se tanta coisa se desfaz, desfaça-se ao menos uma
que já está desfeita.
O Salva-vidas da Foz do Douro
Julho 1872.
Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou corajosamente,
e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do Cabedelo. Conseguiram
salvar 10 homens: 14 morreram.
A 10 passos do mar, repousava placidamente o salva-vidas. O salva-vidas não
desceu ao mar. Fez como o Palácio da Torre da Marca, ou como a estátua de D.
Pedro IV - deixou tranquilamente os pescadores na agonia das vagas. Entendeu
que não era com ele. Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha
obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas, não. O salva-vidas
só se moveria para algum caso especial, em que ele pudesse dar os seus serviços
especiais - como, por exemplo, se tivesse desabado um muro.
Então correria. Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se
imóvel, aboborando.
O salva-vidas da Foz tem um fiscal remunerado e tem a Comissão do
Salva-vidas.
Esta comissão, cujas atribuições ignoramos, revela às vezes a sua
existência na prosa das gazetas. Lê-se: "Ontem reuniu-se a Comissão do
Salva-vidas, em assembleia geral, para deliberar"; ou "Foi mandada
louvar pelo governo civil a Comissão do Salva-vidas".
Destas deliberações e destes louvores resulta que, quando se volta uma
lancha com 24 homens, morrem 14; resulta que tem de se aprestar, rapidamente,
na aflição, um barco casual, com homens voluntários e compassivos, que às vezes
se volta numa violência de mar, e complica o desastre; e resulta que o
salva-vidas nem sequer finge.
Podia descer, molhar-se, navegar um instante: não; conserva-se agasalhado
na sua habitação onde, dizem rumores gloriosos, ele está embrulhado em algodão,
num cofre.
No entanto a opinião interroga o senhor fiscal. O senhor fiscal explica:
— Não saiu o salva-vidas, porque não há tripulação.
Assim foi muito tempo.
O salva-vidas não tinha tripulação. O Porto confiou sempre que o
salva-vidas se tripulasse a si mesmo. Porque, enfim, um barco que tinha a
forma, a construção aparente, o tamanho dos outros a que se chamava
salva-vidas, devia ter qualidades originais, exclusivas, de excepção -e que
naturalmente possuía o poder de se dirigir e de se tripular. E esperou-se
sempre que, se houvesse um naufrágio, o salva-vidas se desamarraria, se meteria
cordas e cabos, se desceria ao mar, se remaria, se iria ao leme, e ele mesmo
estenderia a proa, como mão salvadora e firme, aos náufragos desolados.
Esperava-se isto do brio do salva-vidas. Vem um naufrágio. Bom!
Abrem-se-lhe as portas e a comissão fica esperando que ele se espreguiçasse e
corresse febrilmente ao desastre.
O salva-vidas não se moveu. - Está a dormir, disseram entre si, e
sacudiram-no robustamente. - Agora, agora! murmuravam. Mas com um espanto
aterrado, viu-se que o barco estava imóvel, como num alicerce. Gritava-se na
praia, e o grosso mar bramia.
A comissão suava, pedia-lhe, increpava-o, cuspia-lhe: - o barco,
inabalável, estendia a sua sombra bojuda sobre a quente amarelidão da areia.
Então a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu - que para fazer
navegar um barco é necessária uma
Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens. tripulação.
Quando a comissão, em assembleia geral, afirmou definitivamente esta ideia
- foi que o governador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e
engenho - os mandou louvar, em portaria. - E começou-se a procurar uma
tripulação...
Mas aí foi a crise temida. Cada marinheiro, cada remador, convidado a
comparecer, acercava-se do salva-vidas, apalpava-o, olhava-o, e recusava
resolutamente. Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o
barrete entre os dedos, e diziam secamente: - Menos eu!
A comissão tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se
melancolicamente, e ia deliberar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico. O
salva-vidas dormia.
Enfim um dia a comissão, exasperada, veio, em grupo, interrogar o segredo
estranho. Aproximou-se do salva-vidas. Olhou e levou violentamente a mão ao
nariz. O salva-vidas, o jovem salva-vidas estava podre!
Se descesse à água desfazia-se - foi a opinião dos peritos. E a comissão
com o olfacto resguardado, saiu e continuou a deliberar. Sempre que uma lancha
se volta a comissão reúne-se, e grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado
e pontual, recebe o seu ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras
passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem.
E de vez em quando o senhor governador civil,
despertando do seu cismar, manda louvar a comissão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário