quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Bate tudo certo


Nem são precisos comentários. E estranha-se que não se atente nestes dizeres de António Barreto.
O Estado frágil
António Barreto
OBSERVADOR, 27/8/17
O Estado português é gordo, mas é fraco. É pesado, mas não é firme. É um Estado fraco que torna vulnerável o seu povo. Entre incêndios, assaltos e acidentes, o Estado falhou. Nas previsões e na prevenção. Na prontidão do socorro e na rapidez da ajuda. Na humildade com que se devem tratar as vítimas, na coragem com que se reconhecem culpas, na seriedade com que se estudam as causas, no rigor com que se apuram as responsabilidades, na eficiência com que se distribuem auxílios e na honestidade com que se deveriam repartir ajudas solidárias.
São tempos de falhanço do Estado. Do Estado central e local. Do Estado político e administrativo. Do Estado civil e militar. Pelas vítimas, os acidentes de Pedrógão foram os mais dolorosos, mas não pela extensão e pela intensidade. Os fogos insistem. A prevenção continua a falhar. As comunicações permanecem erráticas e em regime de avaria. A coordenação é deficiente, foi-o desde o primeiro dia, melhorou aqui e ali por força das circunstâncias, está longe, muito longe, de ser satisfatória. Ou sequer de dar um pouco de segurança.
Há uma espécie de incúria generalizada em que se repetem os acidentes e os prejuízos. A ajuda atrasa-se. Os socorros ditos de solidariedade chegam tarde, quando chegam. Na maior parte dos casos, as ajudas imediatas para reconstrução e reinício de actividade, que deveriam demorar dias, não chegaram ao fim de semanas. Toda a gente do Estado tem algo a dizer, a garantir o que não têm e a prometer o que não podem. A culpar os outros, sempre os outros, os de baixo, os do lado, os de cima e os da oposição.
Os autarcas procuram a reeleição e queixam-se do governo, se forem de diferente cor política, ou dos serviços, se forem do mesmo partido. O governo faz promessas e bate na oposição, esperando subir nas sondagens. A oposição garante que não quer aproveitar e não faz outra coisa. Só os bombeiros parecem estar à altura.
Preparam-se já leis magníficas, como se o problema fosse esse. Não vão faltar os planos miríficos a longo prazo, o planeamento integrado, o ordenamento estratégico e o equilíbrio sustentável. Vão demorar anos a regulamentar, décadas a elaborar e eternidades a concretizar, enquanto persiste a palha à volta das casas, o mato nos baldios e nas florestas, o matagal nos caminhos, o restolho seco, os combustíveis vegetais prontos a disparar, a insuficiência de sapadores, as falhas de comunicações... Culpas de muitos a começar pelos aldeões que não tratam das suas casas e das suas fazendas, pelos lavradores que não querem gastar, mas tão-só encaixar, dos autarcas que preferem rotundas feitas pelos amigos artistas e pavilhões desportivos pagos pela União Europeia...
Em Tancos, falhou a disciplina, a responsabilidade e a noção de dever público. Falharam os militares directamente encarregados, por preguiça, por inconsciência e não se sabe se por coisa pior. Falharam os responsáveis por não ter acudido. Falharam os dirigentes militares e políticos pelo espectáculo lamentável, quase indecoroso, de esquiva culpas e de redução da importância do ocorrido.
Até uma procissão no Funchal trouxe mais de uma dezena de vítimas mortais, esmagadas por uma árvore, em acidente impensável, a que não falta desleixo e imprevidência, com uma polémica típica entre responsáveis, do proprietário à câmara, passando pela freguesia. Vai discutir-se seriamente a localização da responsabilidade entre o solo, a raiz, o tronco e os ramos ou pernadas assassinas...
Perdidos no imprevisto, os dirigentes políticos iniciam as suas intervenções com frases desajeitadas: "Trago uma palavra de esperança"... "Quero deixar uma mensagem de solidariedade"... Percebe-se logo o artificial. Sente-se a compaixão forçada do dever e do lugar-comum. A esperança e a solidariedade não se anunciam.
As minhas fotografias - Crianças à beira de passagem de peões, Barcelona.

Numa avenida que nos conduz à Praça da Catalunha, onde começam as Ramblas, duas crianças esperam a sua vez para atravessar numa zebra. Apesar de plástica, a metralhadora, de aparência perigosa, deve sair directamente de um filme de ficção científica ou de um Rambo interestelar. Não fora a cor amarela e estávamos diante de verdadeira ameaça. Vivemos tempos em que as armas não só fazem parte do quotidiano como também se transformaram em brinquedos. "Brinquedos"... não rimam muito bem com "armas"... Nem "armas" com "crianças"... Mas são estes os costumes. Nesta semana, um dos assassinos das Ramblas tinha 17 anos.

Turismo hipocondríaco, pastéis de Vouzela a compensar


Viemos – a minha irmã e eu – a Pinheiro de Lafões, visitar a nossa prima Celeste, que já tantos males sofrera e estava condenada a mais, porque partiu uma perna, o que impossibilitou a sua actual autonomia de movimentação e o resto. É com tristeza que o noto, (atida a um passado de amizade e alegrias conjuntas, ou mesmo vividas na distância preenchida por via epistolar ou telefónica), e desejando com toda a força a recuperação da nossa prima, enquanto vamos estranhando os embates inesperados da vida, que a todos condenam, afinal, e que por todos nós já passaram.
 Gostaria de dizer, com o Zé Fernandes de “A Cidade e as Serras”, que “Em breve os nossos males esqueceram ante a maravilhosa beleza daquela serra bendita”, pois também estes montes da distância, pintalgados de casario, e com recortes a furar o azul, em vários tons de verde-cinza, me trazem ainda o contentamento que sempre sentia quando outrora chegava aqui de comboio, nesta linha do vale do Vouga, onde, antes de chegar à estação de Pinheiro, passava uma linda ponte, transformada hoje em estradinha, por entre o cemitério colorido e bem cuidado de cada lado da estrada, e na qual aqui e além os carris antigos marcam ainda o traçado, aplainado segundo a altura primitiva daqueles.
É certo que a família, composta de irmã, cunhado, sobrinhos, se desvela em torno da nossa prima, o que compensa um pouco o que sabemos de casos de pais e mães muitas vezes lançados em lares com imagens de pesadelo, de velhos dormitando em cadeirões, ou de olho atento à porta por onde uma visita vem quebrar a rotina da sonolência ao longo das paredes, da sala-depósito de seres sem existência própria, ou acutilando-se entre si em linguagem de maldade senil, se não demencial.
Mas a vista deste café de Pinheiro, onde escrevinho – há sempre, nas terrinhas,  um café propício às ânsias de liberdade (a sós ou de companhia) das vidas condicionadas da maioria das pessoas - é consoladora,  com os tons de verde variado, escorrendo até para além do rio, com milheirais e castanheiros e figueiras e macieiras, já bem pejadas de frutos, muitos deles caídos no chão, que o excesso de calor apodreceu e fez tombar, os quintais rodeados de muros floridos, nos jardins, uma ou outra couve crescendo por entre as flores, os campos com as latadas de uvas americanas já bem azuis e prontas para comer, ladeando pequenos troços de feijoais,  tomateiros, mas sobretudo milheirais, onde raramente se vê viv’alma, como se via antigamente, de lavrador cavando, ceifando ou regando a terra, a tecnologia, hoje, aparentemente substituindo o trabalho manual, embora invisível, numa paz preguiçosa, que se revela também no excesso de ramos caídos no chão das matas.
Também fomos passear pelas terras das nossas origens familiares, com a nossa prima Amarílis - o marido e os filhos daquela ficando a tomar conta da “mãe Celeste” (na terminologia meiga da Ana, a filha mais nova da nossa torrencial cicerone, inexcedível em capacidade informativa e evocativa. Tanto Destriz como o Carregal – como, de resto, Pinheiro, Oliveira de Frades, e todas essas terras em redor – Reigoso, Cercosa, Vide… - se mostram aparentemente mais afortunadas do que outrora, do ponto de vista habitacional, onde antigos ou recentes emigrantes construíram casas de maior ou menor dimensão, por vezes recuperando as casas antigas dos antepassados, de velho e sujo granito, outras casas, feitas de raiz, rivalizando em aparência com as mais modestas, talvez por natural orgulho de exibir prosperidade, ou simplesmente por amor pelo espaço natal. Na verdade, grande parte das casas estão fechadas, os donos regressados após as férias, aos países do seu trabalho que lhes possibilitou o bem-estar para a velhice, e daí a aparência de solidão nos campos que a natureza generosa vai fazendo verdejar, com muitos fetos e silvedos de mistura, ladeando os caminhos, os campos de milho para os gados sobrepondo-se em dimensão aos demais campos, milho usado para os gados, segundo informação da nossa prima.
Matas de pinheiros, eucaliptos, sobreiros, preenchem igualmente as estradas sinuosas, quase se tocando as copas, a lembrar riscos de incêndios, que aqui não chegaram ainda, o que conforta, provisoriamente, as almas.
E o nosso turismo ligeiro ficou-se por aqui, a intenção era mesmo a de visitar a nossa Celeste, quatro dias passados de excelentes almoços, merecendo uma descrição entusiástica, à maneira do arroz com favas queirosiano, mas de que o excesso gastronómico diário nos canais televisivos, torna supérflua a referência. Ficam os pastéis de Vouzela para presentear a família, como ponto cimeiro de doçura, a suavizar as agruras de algum pessimismo turístico ou vivencial aqui subentendido.
E a lembrança da casa velha dos meus avós maternos, no Carregal, reduzida a uma parede, já sem a data que ainda há poucos anos tinha, de há cerca de dois séculos – 1827 ou pouco mais - tendo por única aparência de vida, como ironia, a abertura da caixa do correio, na pedra rasgada, onde outrora existia uma caixa vermelha para o correio da aldeia de que o meu avô devia ter sido depositário, e para as cartas dos filhos que partiram para a África ou o Brasil, e cujos descendentes, multiplicados, se foram fixando em França ou outros locais do mundo – de preferência europeu – como os descreve Linda de Suza na sua “Mala de Cartão” – veio trazer imagens recuadas, entre outras, a da minha avó materna eternamente sentada no banco corrido, na varanda, de tempos a tempos arrastando o balde de madeira com as lavagens para os porcos até à caleira, a um canto da varanda, por onde as lançava para a bacia de pedra em baixo, no curral, no meio dos grunhidos de avidez dos porcos, cujo destino era a salgadeira.
Ao lado da caixa do Correio, crescia uma glicínia roxa, com um único cacho, que cortei para levar à minha prima Celeste, como abraço simbólico da casa familiar, mas no dia seguinte estava murcha, a acompanhar a imagem de ruína da parede fronteira da casa que deixou de o ser, é certo, mas de que os reconstrutores da nova aldeia mantiveram um resto de parede, a lembrar antigas glórias de pujança, de que o seu pai e a minha mãe fizeram parte.


sábado, 26 de agosto de 2017

Portugal insular


Não quero perder a crónica. Pelo rigor do descritivo, pela sua subjectividade, não caprichosa mas sincera, pela beleza paisagística que descobre, pelas informações mais prosaicas referentes a produtividade e trabalho, pela pincelada crítica mas certeira na política, um texto de Maria João Avillez para guardar, não como crónica feminina como refere um ou outro seu comentarista, com aversão machista às Páginas Femininas dos jornais dos apagados tempos reaccionários, ou por repúdio pela corajosa frontalidade de uma jornalista política que não desdenha de enveredar pela descrição colorida, manobrando a “pena” - (salvo seja!, que as tecnologias são tais hoje, de teclado real mas de letra virtual, que só temos acesso físico a esta quando a gravamos no papel) - com extrema perícia.

O despertar da bela adormecida? (terceira crónica estival)
OBSERVADOR, 23/8/2017
E sobre isso, um véu de melancolia tão pesado e uma solidão tão desolada que moldaram os poetas, políticos e pintores que os Açores nos deram.
1. A bela adormecida desperta do seu longo sono. Não há bela como ela. Por breves dias que valeram por mil, pude ver o seu acordar. Num berço verde, rodeada de mar e envolta de hidranjias que é como aqui na ilha de S.Miguel se chama ás hortenses.
Já se sabe – e quantos o disseram, cantaram ou escreveram antes de mim? – que não deve haver muitos mais lugares no mundo como as ilhas açorianas. Onde quer que o olhar pare, tem de ficar. Com demora. Dando tempo ao tempo para absorver a estonteante exuberância das espécies botânicas que compõem a paisagem; a incrível amplitude dos verdes (quantos contei?), a rara e rica sinfonia cromática das hidranjas (este ano vi pela primeira vez na minha vida cachos delas, cor de vinho, muito tinto); a arquitectura da ilha, aconchegada entre cumes e montanhas, o debrum azul do mar, a alva pedra branca, o negro basalto. Névoas brancas e um silêncio puríssimo que em certos lugares tudo parece suspender. E por sobre tudo isso, um véu de melancolia tão pesado e uma solidão tão desolada que moldaram a alma açoriana e lhe “construíram” uma identidade própria e exclusiva.
2. Aqui não há Agosto. A ilha como que o suprime, dispensando naturalmente multidões, ruído, suor e azáfamas. Não lhe caiem bem. Há o Agosto deles. Festas populares, vilas com a noite iluminada, cantorias nos coretos, bailes nas praças e adros. E claro, alguns festivais de música que a “Bela” desperta. Do Brasil este ano veio Seu Jorge e dizem que foi um êxito.
E… (por uma vez a lenda é verdadeira) há, quase sempre, as quatro estações num só dia, o que amplia até ao infinito a fortuna da viagem: com o ar ainda fresco, a caminhada pelo começo da manhã; se o tempo aquece, o inesperado mergulho numa piscina natural que não se conhecia ou um desvio meio secreto até uma lagoa escondida; a mais saborosa morcela se subitamente chuvisca; o mais exaltante banho de mar quando o sol, de repente, se abre como um leque e se queda, estampado sobre areais irresistíveis como por exemplo o de Santa Bárbara. Ou enfim, a mais adequada guarida para quando a chuva se zanga que é o “Arquipélago”, antiga fabrica de açúcar transformada num centro de artes com arquitectura de primeira água (Francisco Vieira de Campos, Cristina Guedes, João Mendes Ribeiro).
Em que outro lugar é que tudo isto é possível num mesmo dia, embalado pelas quatro estações e amparado em tão pródiga natureza?
3. Havia quem vituperasse o sono sem fim da bela adormecida: que estava para ali, pasmada e parada, como quem diz sem préstimo nem serventia, afora a beleza (o que já não seria pouco, tão assombrosa ela é…). Há agora quem deplore, em jornais ou salões, o seu acordar: que há turistas a mais, estradas entupidas e acessos congestionados aos bilhetes postais do costume, Sete Cidades e por aí. Eu, o que lá vi neste feliz regresso a S. Miguel – e só posso falar pelo que vi – foi um acordar de vida e para a vida. Impulsionado ou produzido quer por açorianos, quer por continentais, quase sempre jovens, bom sinal. Novos lugares de encontro, novos arranjos do espaço público, novas esplanadas, novos lugares de cultura, novas moradas gastronómicas, novas iniciativas. E surpreendentes hotéis que mais apetece chamar de abrigos: o pequeno “White” que lembra Santorini, de tão branco e de tão azul; o delicioso Furnas Boutique hotel, entre o ímpar verde das Furnas e as suas fontes termais a 40 graus e onde tão bem se conversa sobre esta coisa da vida; o agora tão bem “revisto” Bahía Praia, aberto sobre a quase negra areia da Praia de Agua d’Alto e que se conhecia de outras e piores encarnações. E claro, o Eco-Resort de Santa Bárbara, um poiso na improvável costa norte, ou de como o trabalho, a persistência, a imaginação, estão imutavelmente, invariavelmente, gloriosamente, na origem do que nos surge levianamente como um “êxito”.
(Não, não sou uma agente turística, sou uma jornalista dando boas notícias sobre o que é nosso e viajo exclusivamente por minha conta).
Nada nesta desenvoltura micaelense me chocou, pelo contrário, não regressarei assustada. Apenas um pouco assustada pela possibilidade de que uma fractura provocada pelos omnipresentes “interesses” subverta a ancestral harmonia de um conjunto de características tão, como dizer? privativas. Claro que os “interesses” e o seu tentacular poder económico (a natureza humana é o que é), podem ser nefastos mas parece quase impossível “alguém” ousar interferir com este milagre da natureza e com o que Deus aqui fez. Tão abençoado que me parece não haver outro igual em todo o território nacional. (sim, talvez o Douro tenha o mesmo o fôlego). O que também explica os poetas, pintores, políticos, jornalistas, que esta terra nos deu e foram “primeiros” nos seus misteres. (e escolho dois da minha particular estimação: um de ontem, Antero; outro de hoje, Jaime Gama).
4. Um território que se descobre ou redescobre e por onde se passeia e vagabundeia como se fosse por um imenso parque e nisto residirá indiscutivelmente o maior encanto e a mais assombrosa sedução desta ilha. Apercebi-me e não pela primeira vez, que os concelhos dispõem de brigadas de jardineiros, limpadores e cuidadores que jardinam, limpam e cuidam a paisagem. É vê-los, trabalhando com afinco e afã por essas freguesias fora. Não vi um jardim público desmazelado, uma berma mal cuidada, um canteiro esmorecido, um tufo de hortenses mal amanhado, uma árvore mal podada.
Maravilhando quem chega, quem passa, quem fica, quem parte.
Como esses vários solares, casas ou “Montes” que se abrem pelos verões acolhendo, com a prata da casa e uma simplicidade alegre, quem vem. Em S. Miguel convive-se, há essa arte e esse gosto, valorizando com isso a paisagem natural e emprestando-lhe o interesse e a curiosidade dos bons encontros e das boas conversas. Passado e presente confundem-se numa teia infindável de parentescos, memórias, famílias, por onde perpassa toda a nossa História.
5. Já aqui vim incontáveis vezes. Também já percorri com vagar outras ilhas deste arquipélago português. Mas deve haver poucos sítios neste vasto mundo onde a cada regresso se murmure para si mesmo que “desta vez” a vertigem da beleza tomou conta de nós. Que agora tudo foi ainda maior, ainda melhor, e que, sim, vai ser preciso voltar. Outra vez, todas as vezes.
6. Quase me sinto envergonhada deste ilusório efeito de “distância” onde me embalei sobre o que – a todos os níveis – se passa na “República”. Desde um país que arde há dois meses até às missas em Barcelona onde o Estado português se faz representar ao mais alto nível (porquê?), passando pelas causas ainda não apuradas da tragédia de Pedrogão, ou aquilo que se ouve aos políticos, vive-se em sessões contínuas de estranheza.
Para usar um substantivo delicado.


Incendiários quadrados circulando


Por aí. A coberto do segredo. Segredo da noite. Segredo das redes. Segredo dos esconderijos. Segredo das paredes que calam, porque não têm ouvidos nem olhos, ao contrário da sentença. Segredo de todos os disfarces possíveis, segredo de todas as indiferenças, segredo de todas as impunidades, tão incendiários os que põem o fogo na floresta, como os que o põem no sistema da ficção governativa, como os que fingem não se aperceber, ou se apercebem e nada fazem para reverter. Afinal, somos todos quadrados a circular por aqui, à espera de qualquer maná que tombe no nosso deserto de imprevidência, cinismo ou cobardia.
Santana Castilho aponta com indignação o dedo acusador ao experimentalismo educativo de um pretenso ministro da educação, actuando de acordo com a manipulação partidária que o informa, mas levantamos a pálpebra ensonada pelo excesso de caldeiradas dos nossos programas televisivos divertidos, ao nosso gosto democrático, e voltamos a fechá-la, no pasmo do nosso marasmo. O que for, soará. De toda a maneira, um bravo para o artigo de Santana Castilho.

Santana Castilho - Público
Quarta-feira, 23 de agosto de 2017
Em Educação, as medidas de política têm estado demasiado ligadas à ideologia dos grupos dominantes. Melhor dizendo, aos convencimentos dos que, em cada momento, governam em nome desses grupos.
A interacção e a interdependência das sociedades modernas são cada vez maiores e provocam um interesse crescente pelos instrumentos que influenciam os seus diferentes sistemas. A Saúde, a Justiça, a Educação e a Economia, para citar apenas as áreas que de modo mais evidente marcam a nossa qualidade de vida, estão sob escrutínio constante de instrumentos de comparação e de grupos de pressão, que nos dividem entre “bons” e “maus”, segundo encaixemos ou não no que determinam ser politicamente correcto. No contexto da discussão pública, tais realidades acabam por se impor e contaminar a análise de outros factores. 
Em Educação, as medidas de política têm estado demasiado ligadas à ideologia dos grupos dominantes. Melhor dizendo, aos convencimentos dos que, em cada momento, governam em nome desses grupos. As últimas alterações que o sistema de ensino sofreu oscilaram entre concepções anglo-saxónicas, de raiz empirista, e ideias construtivistas, de inspiração piagetiana. Estas, hipervalorizando as ciências da Educação. Aquelas, hipervalorizando o conhecimento. E quando novos líderes recuperam medidas de líderes passados, que a prática mostrou estarem erradas, contam sempre com o apoio dos prosélitos da tribo, convenientemente esquecidos das evidências que viveram. Muitos deles são autores, nas redes sociais, quase sempre sob anonimato, de intervenções onde a injúria substitui a troca civilizada de argumentos e falseia a percepção do que se discute. Nesta espécie de bordéis de cobardes, a ignorância é o menos. O mais é a subserviência infame ao interesse do momento. O mais é impor como politicamente correcta uma visão ideológica que já foi testada e falhou. Assim vamos, em meu sentir, no prólogo de mais um ano escolar, sob o policiamento disfarçado do pensamento livre, rumo a uma pedagogia totalitária. 
Começou o disfarce com uma revisão curricular que, oficial e centralmente, não existe. Com efeito, são algumas escolas que poderão alterar 25% do currículo, sem que, centralmente, os programas tenham sido alterados e embora os professores só devam cumprir, desses programas, o que as “aprendizagens essenciais” fixaram, em híbrida convivência com as metas de Crato, que não foram explicitamente revogadas. Esta circulatura do quadrado será operada por artistas das 236 escolas que se alistaram na experiência pedagógica da “flexibilidade curricular”. E continuou o disfarce com o secretismo que envolve a coisa: os pais não tiveram o direito de saber se a escola onde iriam matricular os filhos estava ou não envolvida na experiência; e agora, depois da lista publicada, não se sabe que turmas virão a estar envolvidas, muito menos os critérios que ditam a escolha; todos os pormenores operacionais pertencem ao obediente e venerador corpo de directores e aos comissários da modernidade do século XXI, enquanto, como convém, a generalidade dos professores do século XX está de férias
Este processo de mudança, recorde-se, estava inicialmente programado para ser imposto a todo o sistema, sem qualquer tipo de testagem. Foram o Presidente da República e o Primeiro-Ministro que travaram essa lógica. Mas a intenção dos promotores subjaz ao disfarce da experimentação. Com efeito, uma experiência séria não se faz com a envolvência de mais de 20% do universo a que, eventualmente, se virá a aplicar o que se testa. Porque torna muito mais complexo o processo de acompanhamento e avaliação, cujo rigor é vital para a tomada da decisão final. Uma experiência séria não assenta na determinação de uma amostra cujo critério único é o voluntarismo das escolas candidatas. Uma experiência séria planeia com tempo e de modo transparente a formação dos agentes envolvidos, a mobilização dos recursos necessários e o desenho da estrutura de monitorização. 
Tudo visto, a “experiência” é, antes, uma primeira fase de uma alteração que Marcelo e Costa atrasaram para depois das autárquicas. Trará sobressaltos e instabilidade. E, no fim, a responsabilidade da balbúrdia ficará a débito dos professores do século XX, que alguns dizem avessos à inovação.

ºººººº

«O coração de muitos políticos parece reduzir-se a um código legal, que interpretam a seu modo. O meu é feito de matéria diferente e por isso dói e sangra como nunca. Foram muitas as situações ao longo da minha vida em que a minha lei foi ser contra a lei. Contra a lei iníqua. Contra a lei astuta que protege os poderosos e ignora os que nada podem. Contra a lei que despreza a moral e a ética. Contra o direito que não serve a justiça.»

Assim se define o homem que é conhecido, sobretudo, pelas crónicas que publica no jornal Público: textos imperdíveis que, de 15 em 15 dias, vêm agitar as águas turvas da torpe política nacional, nomeada e principalmente a referente às coisas da educação.
O estilo contundente dos seus artigos é um tiro certeiro na generalizada apatia, uma pedrada neste charco onde o país se afunda. A clarividência das suas análises, a sua prosa empolgante, cheia de garra, lucidez, inteligência, desassombro, são uma bênção - sempre!- , e uma inspiração, para aqueles poucos a quem a raiva ainda cresce nos dentes e nos dedos, professores ou não. Lê-lo é um bálsamo e um incitamento, saber-lhe o pensamento, uma força reposta.

O que o move: a persistência e uma vontade férrea, um humanismo que cada dia se vai tornando mais raro, uma absoluta urgência de transformar o mundo:

«Não desisto de convocar políticos e cidadãos comuns para o debate das ideias e para o exercício de informar com seriedade e verdade. Sem informação e discussão não há vida democrática.»

Manuel Henrique Santana Castilho nasceu em Beja. A simpatia e devoção que nutre pela classe docente terá despertado logo quando era aluno do liceu desta cidade, em resultado da muita admiração e estima que lhe mereceram alguns dos professores que aí lhe ensinaram coisas dos livros e da vida e a quem, ainda hoje, rende sentida homenagem. 


É, de resto, por influência de um desses professores que Santana Castilho decide licenciar-se em Educação Física. Frequenta o ISEF, em Lisboa, entre --- e --- . Inicia a sua vida profissional como professor desta disciplina e outras afins (Saúde, por exemplo) em escolas Secundárias e noutras que agora se chamariam de EB 2,3.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Um cheirinho de trágicos


Tudo, afinal, já estava programado lá no Olimpo, soube-se mais tarde, quando a irmã de Zeus, Eris de sua graça, furiosa por não ter sido convidada para os esponsais da ninfa Tétis, com o Rei Peleu – (pais de Aquiles, o tal cujo calcanhar a mãe não permitiu que recebesse o banho da imortalidade nas águas do rio Estígio, como fez com o resto do corpo do bebé, deixando o calcanhar a seco, tapado com a  sua mão distraída, sendo aí que a seta do Páris se espetou mais tarde, ao que constou, mas as histórias são como as cerejas, quanto mais se comem mais se acrescentam, infindáveis no apetite…
Retomo, pois, o meu conto, a informar que Eris, a deusa da Discórdia, lançou um pomo de ouro para o meio dos deuses convidados, destinado a ser entregue à mais bela deusa do banquete, o que logo - ou posteriormente, estas coisas do tempo, sendo, afinal, irrelevantes, sujeitas a tantas  indefinições - se traduziu como o pomo da discórdia, tal como a maçã da Eva, no aliciamento da malvada serpente, seria o pomo da ira do Jeová e, em consequência, da despedida dos nossos pais do Éden, para a Idade do Ferro, segundo a versão bíblica, nem sei se contemporânea dos mitos contados seriamente pelos gregos Homero, e  Hesíodo, e reproduzidos, já como facécias ou enfeites adjuvantes, pelos latinos Ovídio e Virgílio e outros autores latinos, e por isso nem sabemos em quem havemos de acreditar, embora o nosso Camões também tenha feito jus a esses contos, que serviram para exaltar os nossos próprios heróis, pois em questão de heroísmos não deixamos os nossos créditos por mãos alheias, tal como posteriormente tivemos o exemplo do Damasozinho Salcede, da ficção queirosiana, em todo o caso despicienda, por ser puramente caricatural, e que até acho que nos devia melindrar.
As deusas escolhidas pela sua representatividade, na questão do concurso de beleza da responsabilidade de Eris, foram Hera (Juno), Atena (Minerva) e Afrodite (Vénus), e o juiz da sentença foi Páris, filho de Anquises, o último rei de Tróia, o qual a família mandara para o monte Ida, (onde de momento vivia com a apaixonada Enone), precisamente porque o oráculo predissera que aquele filho da mãe Hécuba (e irmão de Heitor, de Cassandra, de Policena, e de outros), seria o causador da destruição de Tróia o que, com efeito, aconteceu, tendo havido até, no século XIX, um arqueólogo alemão que descobriu  a localização de fragmentos de espaços troianos.
De facto, os deuses olímpicos, que não estavam para se comprometer em diferendos de saias - o império feminino, ainda por cima de natureza divina, fatalmente mais assustador - passaram a pasta da tomada da decisão a Páris, o tal filho troiano castigado no monte, sem ter culpa, que logo foi pressionado por chantagens de diferentes dimensões, exercidas pelas três concorrentes divinas, num saber de três mil anos atrás, que nos maravilha na sua ancestralidade, provando a fraca evolução do homem e assim também da mulher, ainda hoje atreitos a esse modus operandi angariador de proveito próprio. Mas finalmente o pomo foi entregue a Afrodite, que prometera a Páris a mais bela mulher do mundo.
Estava eu no café a reviver estes pormenores, quando, ao chegar a casa, logo por minha sorte decorria o filme «Tróia», com um Aquiles lindo de morrer, desempenhado por Brad Pitt, mas a Helena do filme não me pareceu aquela figura esplendorosa de beleza que se diz que era, e que está descrita igualmente com extrema agudeza de espírito na obra ímpar de Jonh Erskine - “A vida privada de Helena de Tróia”.
Tudo se passou como fora predito, e Tróia acabou destruída e a arder, ao fim de dez anos, em que deuses e deusas estiveram metidos ao barulho, numa promiscuidade de simpatias e antipatias com os heróis, de causar espanto, embora, de facto, nem já assim tanto, habituados que estamos aos arranjinhos dos tempos de hoje, mesmo sendo diferente a mola geradora de tais envolvimentos entre uns e outros, por vezes de tão diferentes estatutos sociais.
Morto Heitor, pelo furioso Brad Pitt daquela altura, Aquiles (ao que parece, morto posteriormente pela seta de Páris orientada por Apolo precisamente para o seu calcanhar da vulnerabilidade, (por descuido da mãe Tétis, como já foi explicado), Andrómaca, de princesa que era, como esposa de Heitor, em Tróia, foi feita escrava de Neoptólemo (em Eurípedes) ou Pirro (em Racine), o filho de Aquiles, o qual, (em Eurípedes), já era casado com Hermíone, filha amada de Helena e de Menelau, este último, marido brando que fizera a guerra para reaver a esposa e assim aconteceu, apesar dos dez anos de adultério daquela, que naturalmente as más línguas das coscuvilheiras espartanas condenavam, segundo se lê também no livro do John Erskine, mais uma prova da fraca evolução do humano ser, desta vez no capítulo do preconceito social, apesar de, cá entre nós, pelo menos, as coisas parece estarem a mudar, graças às regras da democracia da nossa conquista revolucionária de cravos, os incêndios chegados posteriormente.
Mas é a figura de Andrómaca que sobressai nas tragédias de Eurípedes e na de Racine - na primeira, no seu dilema de salvar o filho (Molossos, que, como escrava, tivera de Neoptólemo) à custa da sua vida (que Tétis salvará no final, “dea ex machina”, ao apelo do torturado Peleu, a quem morreram o filho Aquiles e o neto Neoptólemo, este último morto por Orestes, a pedido de Hermíone, sua prima e amada de longa data); na peça de Racine, na dor de Andrómaca, no seu dilema entre salvar o seu filho e de HeitorAstyanax – casando com Pirro, ou deixando-o morrer às mãos gregas, por fidelidade incontornável à memória de Heitor.
Orestes, (o matricida, filho de Agamémnon e de Clitemnestra - esta última irmã de Helena, (e assassina do marido, chefe da empresa de Tróia, no regresso deste, e com bastas razões para o ter feito, pois lhe matara uma sua filha, Ifigénia, à traição, para obter ventos propícios, antes da partida para Tróia, dez anos antes)… Orestes, pois, amante fervoroso de Hermíona, sua prima, que, sobretudo na peça de Racine, se serve dele com astúcia para chegar aos seus fins - obter novamente as boas graças de Pirro ou, no falhanço desse plano, dar-lhe a morte e, em seguida, enlouquecer de dor - Orestes tem um excelente papel também de amante frustrado, joguete das astúcias de Hermíone e do próprio Pirro, desejoso este de se ver livre de Hermíone para poder usufruir da viúva de Heitor, Andrómaca, como já foi dito, impecável na fidelidade ao marido morto, figura bem trágica em ambas as peças – severa e implorativa para com a altiva Hermíone e o pai desta, Menelau, na peça de Eurípedes, suplicante e firme na de Racine, o filho – Astyanax - sendo a razão do seu desespero no dilema entre salvar o filho ou casar com Pirro.
Transcrevo um excerto da fala de Andrómaca, de Eurípedes, apenas para mostrar quanto era severa, corajosa e amante do seu filho, na sua resposta a Menelau (2º Episódio) em que Menelau lhe apresenta o filho que, diz, será sacrificado se Andrómaca não sair do altar da deusa Tétis, onde se refugiara, dando a sua vida pelo filho, chantagem de homem cobarde, como lho revelará a intrépida Andrómaca, simultaneamente figura frágil de vítima traída, a lembrar as falas de Inês de Castro na peça de António Ferreira:
ANDRÓMACA: Ai de mim! Cruel sorteio e escolha de vida me apresentas: se me toca em sorte viver, sou miserável; se me não toca, sou infeliz. Ó tu, que graves acções praticas por pequenos motivos, crê-me:  Porque me matas? Qual a causa? Que cidade hei traído? Qual dos teus filhos matei? E que casa incendiei? Partilhei, forçada, o leito com o meu senhor; e então não é a ele, que é o culpado disto, mas a mim que dás a morte? Deixas ficar a causa, e voltas-te para o efeito, que lhe é posterior. Ai que desgraças, minha infortunada Pátria! Como sofro horrivelmente! Porque havia eu de dar à luz e a este meu fardo juntar uma carga dobrada? Mas porque choro assim e não seco as lágrimas e penso nos males presentes? Eu que, do alto das muralhas, vi morrer Heitor, atrelado ao carro, e Troia lamentavelmente incendiada, eu que, como escrava, embarquei nas naus argivas, arrastada pelos cabelos; e quando cheguei à Ftia, vi-me unida ao assassino de Heitor! Que prazer tenho, pois, em viver? Para onde devo olhar? Para as desgraças presentes, ou para as passadas? Só este filho me restava, como luz da minha vida; vão-no matar aqueles a quem tal parece conveniente. Mas, por certo, não o será, pela minha miserável vida; nele, de facto, reside a minha esperança, se me salvar, e será desonra para mim não morrer pelo meu filho...

A “Andromaque de Racine é toda ela uma explosão de paixões, numa análise psicológica de extraordinário relevo, em que imperam os alexandrinos cheios de ritmo e organização do pensamento, em que cada personagem vai desbravando a sua caminhada e a sua causa amorosa ou as suas razões de súplica. Apenas um breve exemplo desse exercício literário de paralelismo frásico, com ORESTE dirigindo-se a PYRRHUS, no objectivo de o fazer entregar o filho de Heitor à ira grega: “Et qu’à vos yeux, Seigneur, je montre quelque joie / De voir le fils d’Achille et le vainqueur de Troie. / Oui, comme ses exploits nous admirons vos coups: / Hector tomba sous lui, Troie expira sous vous.» ...

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Ora bolas!


Mandou-me a minha filha, lá do norte do país,
Onde se encontra em passeio,
De férias sabendo a pouco,
–  Cinco pessoas em alegre companhia –
E não quatro
Como no poema enviado,
Um azulejo gravado em tons de azul,
Fotocopiado pelo telemóvel,
E de leitura sofrível
Que felizmente encontrei
Na internet e gravei
Aqui mediatamente
Já legível.
Era um poema de António Feijó
Versando o tema do Amor em harmonia
Com a fuga do Tempo incontinente
E por isso esvaindo-se subtilmente
Como é do senso comum.
Mas eu não acredito assim tanto
No negativismo desse pessimismo
Pois às vezes o tempo volta para trás,
Como dizia o Mourão
E traz-nos o amor perdido
Nem que seja na saudade
Do passado não perdido
Revivido.
O Amor e o Tempo
 António Feijó, in 'Sol de Inverno'
Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.

— «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»

Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento...
— «Porque voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» — Nesse momento,

Volta-se o Amor e diz com azedume:
— «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume

De fugir com o Tempo... Adeus! Adeus!

Árias


O engraçado texto de João Miguel Tavares sobre uma alegada letra machista de Francisco Buarque de Hollanda provocou em mim uma onda de nostalgia, ao lembrar-me de Carlos Ramos, que fui logo escutar na Internet, para reviver as suas emoções de infidelidade conjugal, expressas de uma forma tão delicada e abrangente que logo nos faz aderir a um pensamento de reciprocidade na questão adulterina, e daí que se entenda o seu fado marialvesco antes como um receituário amável de feminismo revanchista. Transcrevo-lhe a letra, e, juntamente, um daqueles comentários de uma esquerda assumida, nos seus punhos de renda de defesa dos bons costumes, que toda se esganiça contra o terra-a-terra sadio de João Miguel Tavares, moço valente e bem formado e suficientemente lúcido para não se deixar influenciar pela doutrinação deprimente que geralmente se protege de S. Tomás: “Olha para o que ele diz, não para o que ele faz”.
Chico Buarque, o perigoso machista
Os estilhaços dessa literalidade idiota chegaram agora às canções do pobre Chico, antes amado por entender como nenhum outro a condição feminina. Se até ele é machista, nenhum homem está a salvo.
João Miguel Tavares
22 de agosto de 2017
Francisco Buarque de Hollanda decidiu apresentar o seu próximo disco com o lançamento de um tema chamado Tua Cantiga. O que ele foi fazer. Tua Cantiga, história singela de um homem de família perdidamente apaixonado por outra mulher, tem lá pelo meio os seguintes versos: “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.” Foi o que bastou para o artista que em tempos foi classificado como “unanimidade nacional” ser acusado de estar a promover em 2017 o velho machismo de 1977. Escreveu Luciano Trigo no Globo: “Chico parece preso a uma visão da mulher – e da relação homem-mulher – dos anos 70 do século passado (…), cujo romantismo se baseava na desigualdade e na assimetria de papéis entre homens e mulheres.”
Parece que a mulher trabalhadora brasileira com menos de 30 anos já não vai em conversa de amores assolapados, e que proferir frases como “na nossa casa serás rainha” (também consta da letra) é uma ofensa para qualquer mulher devidamente empoderada.Largar mulher e filhos? Que cafajestada é essa?”, pergunta Luciano Trigo. A produtora Flávia Azevedo, escrevendo no HuffPost Brasil, concorda: “Essa mulher que ele evoca, não sou eu. Nem a que somos nem a que queremos ser. Essa que precisa ser salva, que sonha com o reino do lar, essa que goza ao ouvir ‘largo mulher e filhos’.” A obsessão com a linguagem por parte da esquerda mais progressista está a ter esta consequência estranhíssima: torna o seu discurso muito próximo do da direita conservadora. Mesmo um defensor de Chico Buarque disse que Tua Cantiga era uma “canção sobre dois adúlteros”, expressão que já não ouvia desde os tempos em que o arcebispo de Braga tomava posições públicas sobre O Império dos Sentidos.
Chico Buarque já respondeu à polémica, com a inteligência e o humor que Deus lhe deu, reproduzindo no seu Facebook um diálogo que diz ter “entreouvido na fila de um supermercado”: “Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante.” A piada é boa, mas não chega a ser verdadeira. Ficar com a família e a amante não é machismo, tal como ficar com a família e o amante não é feminismo – é apenas traição. E a traição, até há bem pouco tempo, era algo que somente dizia respeito aos envolvidos. Contudo, num mundo onde as palavras estão sob uma vigilância que já não se via desde os tempos da Inquisição, não só uma simples canção ficcional passa a ser um manifesto machista, como a argumentação alegadamente “feminista” e “empoderada” é ridiculamente parecida com a do Catecismo da Igreja Católica.
Os grupos oprimidos e seus defensores, SJW (Social Justice Warriors) para os amigos, estão diariamente a bombardear o muro que separa as palavras dos actos, fazendo equivaler uns e outros. Que isto seja típico de uma mentalidade totalitária parece não lhes passar pela cabecinha. Os estilhaços dessa literalidade idiota chegaram agora às canções do pobre Chico, antes amado por entender como nenhum outro a condição feminina. Se até ele é machista, nenhum homem está a salvo. Antigamente, eram só os cristãos que iam à missa pedir perdão por pensamentos, palavras, actos e omissões. Os novos sacerdotes do politicamente correcto não querem menos do que isso – exigem que nos ajoelhemos aos pés dos infinitos deuses dos SJW e peçamos perdão não só pelo que fizemos, mas também pelo que dissemos, pensámos e cantámos no duche.

Não Venhas Tarde
  "Não venhas tarde!",
Dizes-me tu com carinho,
Sem nunca fazer alarde
Do que me pedes, baixinho
"Não venhas tarde!",
E eu peço a Deus que no fim
Teu coração ainda guarde
Um pouco de amor por mim.
Tu sabes bem
Que eu vou p'ra outra mulher,
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer,
Tu estás sentindo
Que te minto e sou cobarde,
Mas sabes dizer, sorrindo,
"Meu amor, não venhas tarde!"
"Não venhas tarde!",
Dizes-me sem azedume,
Quando o teu coração arde
Na fogueira do ciúme.
"Não venhas tarde!",
Dizes-me tu da janela,
E eu venho sempre mais tarde,
Porque não sei fugir dela
Tu sabes bem,
Que eu vou p'ra outra mulher.
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer.
Sem alegria,
Eu confesso, tenho medo,
Que tu me digas um dia,
"Meu amor, não venhas cedo!"
Por ironia,
Pois nunca sei onde vais,
Que eu chegue cedo algum dia,
E seja tarde demais!

Comentário:
DNG
  22.08.2017

Francisco Buarque de Hollanda. Quem é este senhor? O que escreveu, o que cantou, o que viveu. Onde é conhecido, onde foi aplaudido, quem comoveu? Quantas borgas, vinhos, desenganos e loucuras de uma vida no palco. O palco do teatro da vida. Quantos maricas conheceu, com quantos estabeleceu amizades apesar do preconceito? Mas há o lixo. Lixo? Que lixo? De que não se enxerga claro. Lol. Força JMT. Atira.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Uma figura de topo


António Bagão Félix, numa aparência modesta, de quem quase pede desculpa para falar, é uma figura que se impõe pela firmeza de opiniões que, sem exaltação nem agressividade, constituem, todavia, autênticas pedradas no lamaçal em que nos afundamos, de vaidades e atropelos a cada passo, que ele se não inibe de desmascarar, numa voz viva e certeira, de quem não receia assumir princípios inamovíveis de respeito pelos valores humanos. Acabo de o ouvir num programa de Ecclesia, orientado por Paulo Rocha, que julgo ter ouvido, na altura, e que a Internet reproduz no You Tube – uma análise do ano 2016 através de sete palavras iniciadas por E - Esperança, Eutanásia, Ética, Exemplaridade, Exortação, Economia, Ensinamento – de uma concepção social firmada na doutrinação da Igreja e na própria ética – constituindo uma lição “topo de gama”, para usar um atributo do artigo seu que transcrevo a seguir, onde se salienta, a par da mestria da argumentação didáctica e ética, a graça de um humor crítico igualmente magistral. O mesmo direi do artigo a seguir – sobre a nossa imprevidência e inércia, a propósito de uma árvore assassina sem culpa.
Uma figura curiosa, a de Bagão Félix, no desassombro com que defende velhos princípios, no olhar vivo e voz educada com que abrange uma amplitude de saberes, a que não falta a argúcia do humor desmascarador dos atropelos.

Topos de gama e gamas de topo

António Bagão Félix

Público, 17 de Agosto de 2017,

Gama, terceira letra do alfabeto grego, mas também expressando uma série de coisas da mesma categoria, ordenadas segundo o seu valor. Topo, entre outras significações, quer dizer o grau mais elevado que se pode alcançar. Topo de gama, uma expressão recentemente lexicalizada de carácter qualificativo, que atribui a um dado objecto um lugar preferencial numa determinada escala.
O tempo de agora convive bem com esta desengonçada expressão. A obsessão topo-gamista invade tudo e enevoa cabeças. Topo de gama para automóveis, topo de gama para andares de luxo, topo de gama para equipamentos electrónicos, topo de gama para telemóveis, topo de gama para as “bimby” e respectivos ersatzes, topo de gama para canídeos, topo de gama para comida de animais de estimação, topo de gama nos lugares dos estádios, topo de gama para topos de gama …
As regras são implacáveis na “topolândia”. Quem não alinha (por não poder ou não querer) com esta bitola consumista é antiquado, parolo, rústico, pelintra ou pobretana. A marca de água neste novo reino do gastar e do trocar é o “certificado topo de gama”, adquirido algures e exibido por toda a parte. Tem a vantagem de se mostrar por símbolos exteriores, por sinal bem visíveis e assinalados. Não exige, por seu lado, atributos interiores e invisíveis que são suporte da vida fora da efemeridade dos topos e das gamas. O coleccionador de topos de gama veste bem e calça melhor. Fala de arte e cita Montesquieu. Exibe, garbosamente, um insondável kit de gadgets, incluindo o último grito da moda tecnológica segundo a revista da especialidade. Fala abundantemente com estrangeirismos e aprimora a fragrância matinal.
Evidentemente que o topo de gama pode ser mais de topo do que de gama, ainda que de gama, enquanto tempo de um verbo, se possa sempre dizer algo mais. Sobretudo, considerando a convergência, que por vezes existe, entre o topo de gama e a gama fiscalmente declarada do salário mínimo nacional, ou seja, o rendimento de menor grana, mas de maior gama.
O verbo topar é inseparável do topo de gama. Porque este só faz sentido se for topado. Quer dizer, falado, comentado, invejado, atraído, comparado. A relação com outro verbo – gamar – não é absoluta, mas a sua correlação é crescente. Quer dizer, gamar pode ser uma condição necessária para se chegar ao topo de gama, dependendo, obviamente, da gama e do gamão. Topam?
Há também os topos de gama que, recorrentemente, levam uma topada fiscal que os torna inacessíveis ao comum dos mortais, a não ser se exibirem passaporte e recursos topos de gama chineses, franceses, russos e de outras paragens.
Falando em impostos, é verdade que os há também topo de gama. Mas esses ninguém os quer exibir, embora, por vezes, topem (isto é, tropecem) nas declarações tributárias.
O certo é que o Estado Fiscal qualifica quase tudo como topo de gama. O mais recente imposto topo de gama é o adicional ao IMI. Mas também no IRS, onde um modesto ordenado paga uma taxa marginal de 42%, nos combustíveis onde o fisco mama qualquer gama, para já não falar no mamão IVA, que é o topo de gama dos tributos. Pena é que o IVA da electricidade que é de alargada gama, mas não é de topo, tenha a mesma taxa de IVA dos diamantes, carros de alto luxo ou vestuário sacado aos animais selvagens que são de restrita gama, mas de elevado topo.
Há ainda os topos de gama literários. Há quem lhes chame best-sellers, ainda que os dois conjuntos não sejam necessariamente iguais. Mas basta ir a uma livraria para apanharmos nas ventas logo à entrada os topos de gama “light” (lidos (?) agora, nas praias e arredores), enquanto nos vemos em palpos de aranha para encontrar um livro de Torga, Jorge de Sena ou Herberto Helder.

As árvores (nem sempre) morrem de pé
21 de Agosto de 2017
Depois da tragédia no Funchal, o passa-culpas. O costume. Antes de tragédias quase anunciadas, o “queixa-andar”. Também o costume. No meio, conferências de imprensa para defesa própria. Ainda o costume. A saga do debate entre o “nada fazia prever”, o “já havia relatórios” ou, ainda, o “estava prevista a intervenção, mas não havia dinheiro” (entre fontanários e rotundas). Assim vamos andando, até que a erosão da memória quase tudo anestesie e pouco se aprenda.
Na tragédia humana do Funchal, discute-se, agora, de quem é o terreno da árvore mortífera. Ou se o carvalho sucumbiu por fungos ou de morte natural. Ou se ele se despenhou no meio das pessoas por causa de um ramo do plátano seu vizinho. Ou se a responsabilidade é da Junta de Freguesia, da Câmara Municipal de agora, da Câmara Municipal de antes, dos serviços regionais, da República, de mim ou de si, caro leitor… Também o costume, em Portugal apenas mudando os protagonistas e as evidências. E, ali, por azar não havia sequer um qualquer “Siresp” ou um operador de telecomunicações para apanhar no lombo todas as responsabilidades.
A árvore tombou desalmadamente, matando e ferindo. Embora não devamos generalizar o que não é generalizável, esta situação alerta para a falta de atenção para com as chamadas árvores  urbanas. Apesar da denúncia cívica de organizações da sociedade que lutam por uma acrescida consciência para o bom tratamento das árvores, infelizmente, pouco se lhes liga. Tomam-se medidas que agravam este estado de descuido e de incúria (ou, pelo menos, de ignorância ou incompetência). Por exemplo, em Lisboa, entre muitos aspectos positivos, como o de haver mais árvores por toda a cidade e parques, a responsabilidade da sua manutenção passou para as juntas de freguesia. Assim se perdeu a eficaz e sábia ideia de escala. Agora, cada qual faz como quer, e há sinais evidentes de que há quem não perceba patavina de cuidados com árvores (basta olhar para podas quase assassinas que se vêem aqui ou acolá ou para a secura extrema a que, não raro, estão sujeitas), como também não se substituem árvores mortas que jazem nos passeios. E os jardins botânicos estão sujeitos a uma penúria que faz dó. Há por todo o Portugal árvores classificadas de interesse público ou património nacional que sofrem tratos de polé, quase abandonadas à sua sorte.
Mas a responsabilidade não é apenas das entidades públicas. É também nossa. Não me refiro apenas aos maus-tratos que recebem de alguma gente que as olha (?) como de pedregulhos se tratasse, estorvando a manobra de um qualquer carro ou camião. Falo, também, da insensibilidade generalizada de quem nem sequer dá pela árvore que está junto de casa e para quem tanto faz como deixa de fazer a tal espécie. Não há cultura comportamental que lhes dê a devida importância e ninguém quer saber dos benefícios das espécies arbóreas em termos ambientais. Nem sabem, nem querem saber. Um desprezo absoluto.
Na atenção que as árvores merecem está, obviamente, o cuidado a ter com as que estão doentes fazendo perigar pessoas ou bens e as que vão morrer segundo a sua natureza e a lei da vida. Também importa erradicar más práticas de escolha de espécies completamente desajustadas da nossa tradição arbórea. Um caso evidente foi a invasão aparolada de palmeiras das Canárias (Phoenix canariensis) por todo o lado, para as quais um escaravelho vermelho (Rinchoforus ferrugineus) se tem encarregado de contribuir para repor a “normalidade arbórea” no Continente.

E se costumamos dizer que as árvores morrem de pé, ou seja, com dignidade, impõe a prevenção de acontecimentos danosos para as pessoas que algumas árvores também se abatam. No momento certo, antes que nos abatam a nós.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

«Las Meninas» de Velasquez


Lembrou-me o quadro de Velasquez este artigo de José Pacheco Pereira, pois, tal como aquele, que a si mesmo se retratou de lado, observador saliente numa tela de extraordinário relevo figurativo, Pacheco Pereira começa o seu texto com a descrição dos seus sentimentos e insónias que o votam ao absoluto de uma ideia fixa sobre Donald Trump, motor indigno de um mundo em vias de desabar. Como participante desse mundo, Pacheco Pereira apõe o seu dedo acusador, tal o Velasquez da tela, de que me limito a transcrever um excerto descritivo colhido na Internet:
«En una época de oscurantismo y superstición encontramos a un pintor de cámara, arquitecto, aposentador del Rey, geómetra, astrólogo, políglota… gestando la obra que Luca Giordano denominaría “La Teología de la Pintura”. Esta “Teología” nos demuestra que testigos de una época son también los pintores, poetas, músicos… quienes, fortuita o intencionadamente, han dejado en sus obras un trocito del espíritu de aquel tiempo.
Cuando se facturó tan extraordinaria obra, España estaba inmersa en el tenebrismo de un siglo que, sin embargo, es recordado por su portentosa “luminosidad” en el aspecto artístico. Es el Siglo de Oro español, el comienzo de la pérdida de hegemonía de España en Europa y la época del reinado de Felipe IV (1621 a 1665), un rey que, ante todo, fue mecenas del arte, gracias a lo que nos ha legado un inmenso patrimonio artístico. Su pintor predilecto no fue otro que Diego Rodríguez de Silva Velázquez.»
E desse modo nos descreve também os papéis que lhe tiram o descanso, no trabalho insano que assumiu de os salvar do esquecimento, o que me levou igualmente a outra figura ímpar da nossa cultura – Sá de Miranda – cuja ânsia de perfeição, na sua imitação dos clássicos o levou a burilar continuamente os seus escritos, embora não seja esse o caso de Pacheco Pereira:
«Ando c’os meus papéis em diferenças; / são preceitos de Horácio – me dirão; / em al não posso, sigo-o em aparenças. / Quem muito pelejou como irá são? / Quantos ledores, tantas as sentenças; / c’um vento velas vêm e velas vão.»
Julgo que Pacheco Pereira merece bem o apreço e a gratidão do seu tempo, como “avis rara” de estudioso em vias de extinção, pese embora o preconceito contra quem se limita a gerir “ex cathedra”, os destinos da política, sem arrostar os ventos e marés do ofício de governar. Mas a análise sobre Donald Trump e seus parceiros é de uma lucidez que bem lembra a luz com que Velasquez consagra as personagens do seu mundo artístico.
A estação tola
Público, 29 de julho de 2017
José Pacheco Pereira
Deve ser da estação tola, mas nestes dias de Verão com temperaturas abusivas a minha cabeça útil encolhe muito e só me interessam meia dúzia de coisas. Nem sequer é escapismo ou férias, coisas que habitualmente não faço do mesmo modo que o comum dos mortais, certamente com efeitos irreparáveis na mesma cabeça encolhida que se passeia em cima dos ombros. Férias significa apenas que tenho menos obrigações secundárias (como escrever este artigo) e mais tempo para me dedicar às obrigações principais (como seja “salvar” papéis, antigos e modernos, de há cem anos e de hoje, da máquina trituradora da ceifeira dos papéis, da Destruidora da Memória, da Inimiga dos Arquivos), ou seja, uma coisa excelente.
Presumo que aquilo que nestes dias me interessa não tenha o público, nem as audiências habituais, que teria se falasse sobre os fogos, sobre as aleivosias “do Costa”, os ciganos de Loures e a sua Nemesis local, os afectos presidenciais, os crimes de ciúmes e ganância, e a perfeição seria eu escrever sobre as “preparações” das “preparações” futebolísticas, a que se agarra uma televisão com síndrome de abstinência da bola. Nada disso, resta-me aquilo que, com a cabeça reduzida a metade pelo calor, me interessa. Ou seja, Trump e o perigoso reality show à sua volta, e os papéis, revistas, jornais e livros, mas mais papéis do que tudo o resto, porque há uma surpresa inscrita nos papéis que já poucas vezes tenho nos livros. (A Coreia do Norte lançou outro míssil...)
Trump e os papéis dão-me cabo do descanso e do sono e, no caso dos papéis, que de vez em quando resolvem desabar das pilhas em que deveriam estar sossegados, até me ameaçam a integridade física. A palavra é pomposa, mas eu já fui várias vezes agredido por pilhas de livros e papéis que resolveram deslocar o seu centro de gravidade sem autorização superior. E no caso de Trump e da animada corte à sua volta, melhor do que uma grande comédia, verdadeiro Guignol, resolvem fazer coisas interessantes desde as seis horas da manhã de lá, hora em que ele começa com o Twitter, até lá mais para a noite, quando as discussões mais animadas na CNN e na Fox se fazem. E a gente, apanhada por esse ópio da política bruta, dura e pura, fica a ver televisão às três, quatro horas da manhã por culpa dos fusos horários. Depois anda o dia todo feito zombie.
Claro que o que se passa na América de Trump é gravíssimo: é o esforço diário de um autocrata grosseiro, sem princípios, habituado a levar tudo à frente pelo dinheiro e pela ameaça, para subverter a governação de uma democracia, atacando as suas instituições e fazendo do bragadoccio o seu modo de vida. À sua volta mini-Trumps desavergonhados, palavra magnífica para os caracterizar, aparam-lhe todos os golpes, justificam-lhe as mais absurdas das coisas, como se o novo normal fosse aquela selvajaria. E não faltam mini-Trumps dos três sexos e uns ratinhos com medo de perder o republicano lugar, que se ele quisesse fazer uma ETAR Trump nas traseiras do Capitólio para “drenar o pântano”, justificariam de imediato o enorme alcance simbólico do acto vindo de um Presidente “não convencional”. A frase seguinte é que foi sendo assim “não convencional”, que ele ganhou as eleições, como se isso justificasse tudo o que ele faz baseado num único critério: o seu ego.
Na verdade, a América é hoje governada pelo único homem no mundo que viola as leis de Freud e só tem Ego e Super Ego, e não tem Id. Na verdade, tem, mas eu temo só de espreitar para essa caverna funda (por falar nisso, parece que a Associação dos Psiquiatras considera aceitável que se discuta publicamente o estado mental do Presidente...). A seu tempo far-se-á uma ópera sobre Trump.
Esta semana então foi mortífera, patética e ridícula, mas é mesmo assim tudo junto que as coisas se passam. O Presidente resolveu abrir uma guerra pública contra o seu mais que leal procurador-geral, membro do seu governo, apoiante da primeira hora, conservador e “trumpista” até à medula. Não foram só os insultos e as humilhações, foi a maldade pura e sem carácter de sugerir que Sessions, o primeiro senador que o apoiou, o fez por interesse eleitoral, numa altura em que não havia nada a ganhar em apoiar Trump. Depois, as aventuras de um mini-Trump, Scaramucci, com nome de uma personagem cómica da comedia dell’arte italiana, misto de criado e de vingador disfarçado, que faz um papel de palhaço. O homem que disse “amar” Trump em frase sim, frase não, Scaramouche representado por Scaramucci, fez umas declarações daquelas que a pudibunda televisão americana tem que estar sempre a fazer “piiii”, sobre o chefe do pessoal da Casa Branca a quem chamou paranóico e sobre a alma negra de Trump, habitualmente representado como Darth Vader ou como a Morte com caveira e tudo, Steve Bannon, a quem atribuiu um bizarro acto sexual muito ginasticado, ao estilo da serpente Ourobouros.
Nem tudo é mau nesta obsessão “trumpiana” que me assola. Pelo menos uma vez esta semana acordei com uma magnífica notícia, três corajosos senadores republicanos disseram a Trump que não mandava neles e votaram contra mais uma tentativa já desesperada de dar qualquer coisa ao Presidente que lhe permitisse vangloriar-se. Uma versão misteriosa de uma lei que era suposto não ser uma lei, a versão “magrinha” do “repeal”, sem “replace”, para acabar com o Obamacare não passou no Senado, apesar das ameaças directas de Trump a quem ousasse retirar-lhe um “win” da sua série de “win, win, win”. O abastardamento das instituições parlamentares, resultado das pressões de Trump que desejaria governar apenas por “ordens executivas”, e da subserviência dos republicanos que têm medo dele, é um dos aspectos mais preocupantes da pressão autocrática que Trump faz sobre o sistema democrático americano.
Depois de tudo isto, a máquina da propaganda faz as mais absurdas piruetas para o justificar e transformar a má-educação e falta de carácter, a ignorância e a grosseria numa manifestação de “inconvencionalidade”, de estilo anti-políticos tradicionais, de métodos empresariais, para agradar à “base”. Não sei o que mais me repugna, se Trump, se os gnomos republicanos, ou esta corte de empregados presidenciais escolhidos a dedo, e o Ministério da Propaganda e Espelho Narcísico que é a Fox News, por aquilo que os portugueses chamam “lata”.

Claro que com esta sucessão de malfeitorias, esta comédia que tem um drama por detrás — o drama do homem mais poderoso do mundo ser este — me tira do sério e do sono. E os papéis? Os papéis são o lenitivo para esta maldade do mundo. E como o artigo já está feito posso voltar para eles. Com a CNN ao fundo...

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O que nos falta é meios para animar a malta


Dois artigos de Opinião sobre as matérias que fazem correr rios de tinta nos jornais – o nosso caso nacional, de imprevidência e desresponsabilização, o caso internacional de xenofobia antiturística, mas não de afastamento do terrorismo islâmico, contrariamente aos pressupostos xenófobos. O primeiro, de João Miguel Tavares, desempoeirado e corajoso, condenando os demagogos do antiturismo, como, paradoxalmente, apelativos dos actos terroristas, como foi o mais recente caso de acção terrorista em Barcelona. O segundo, de António Barreto, síntese acusatória perfeitamente burilada em frases ondulatórias de paralelismos e antíteses, ao seu jeito argumentativo, dos nossos desmandos políticos e sociais, que, como sublinham os seus comentadores-detractores, o não ilibam de responsabilidades de que o próprio António Barreto se poderia acusar, como participante governativo que foi no atamancamento deste status a que se chegou, após a revolução dos cravos.
De todas as observações, o que mais nos aflige na nossa euforia pelo aumento do turismo por cá, como factor económico e talvez também cultural, são as razões que aponta J.M.T. sobre esse aumento, não proveniente de autenticidade qualitativa das nossas estruturas turísticas - pese embora as tentativas de aliciamento realizadas, no que toca, sobretudo, às comezainas - mas do receio generalizado do terrorismo islâmico, que, por enquanto, tem poupado o nosso país, mas cuja inércia cultural leva, naturalmente, ao repúdio, apesar da tranquilidade, e que as greves dos transportes, nos momentos-chave de partida e chegada turística, igualmente lesam – ou antes, lesionam. Por isso os países dos milhões de turistas continuam a ser os da vida cultural intensa, apesar do terrorismo, e J.M.T. faz deles parte, com a família, abandonando o nosso aos rezingões encartados como A. B, que tanto nos apraz ler.

Fazer turismo é combater o terrorismo
Cada um de nós – privilégio supremo – não precisa sequer de agarrar numa arma para fazer a sua parte. Basta pôr o chapéu e os óculos escuros. Cada turista é um combatente contra o Estado Islâmico. Não percebo como é possível não gostar deles.
Público, 18 de agosto de 2017
João Miguel Tavares
É de uma triste ironia que tenha sido na mesma Barcelona que se está a afirmar como capital mundial do antiturismo, com grupos organizados a pintar autocarros — “el turismo mata los barrios” —, a pichar paredes — “tourist go home” —, a promover manifestações — “Barcelona no està en venda” — e a invadir praias com cartazes xenófobos — “mon immeuble n’est pas ton immeuble!” —, que tenha ocorrido mais um atentado, vitimando pessoas de 35 nacionalidades diferentes em plena zona das Ramblas. Os grupos terroristas são os melhores aliados desta gente: um camião a alta velocidade vale por mil cartazes a dizer “tourists go home”.
Eis o que a trupe antiturista parece esquecer: a massificação do turismo na Europa está intimamente relacionada com a insegurança provocada pelo terrorismo. Portugal que o diga: as actuais enchentes em Lisboa e no Porto não se devem ao génio de quem nos governa, mas ao fracasso da Primavera Árabe, à instabilidade no Egipto e aos atentados no Magrebe. Para quem não tem dinheiro para voar para as ilhas do Pacífico, o planeta turístico está muito mais curto — e é por isso que as classes médias francesas ou inglesas invadem a Espanha mediterrânica ou Portugal. São quentes, não são caros e são seguros. Convinha que a trupe antiturista desenvolvesse alguma sensibilidade geopolítica.
Eu acabo de regressar a Portugal após dez dias a ser turista, que é uma coisa que acontece a todos os que têm o privilégio de sair de vez em quando das cidades onde vivem. Fui com a família de carro para França: rezámos a Deus em Taizé e ao império do Rato na Disneylândia de Paris; prestámos homenagem aos mortos americanos no cemitério de Colleville-sur-Mer; aprendemos que a guerra mata gente, mas mistura povos, enquanto deslindávamos os segredos da tapeçaria de Bayeux. Os meus quatro filhos desarrumaram lojas de souvenirs, tropeçaram em franceses e foram duas ou três vezes admoestados por indígenas. Fomos tristes turistas, com chapéus de abas largas, calções Coronel Tapioca e iPhone a disparar a cada 30 segundos.
E, no entanto, sentimo-nos bem: o turismo é a nossa pequena forma de resistência. As orações em Taizé são agora vigiadas por soldados franceses, equipados com armamento de guerra. A segurança na Disneylândia está muito mais apertada. Mas continuar a viajar pela Europa não é só um prazer — é a nossa modesta forma de resistir a quem nos quer matar. Daí que os desprezados turistas mereçam ser vistos com outros olhos: à sua maneira, eles são defensores de um modo de vida de que todos nos devemos orgulhar. Como sempre acontece com as ameaças exteriores, este terrorismo tão próximo tem, pelo menos, a grande vantagem de nos devolver o amor genuíno pelos nossos valores. Foi isso que tentei passar aos meus filhos: a consciência de que viver em democracia e em liberdade, numa das melhores e mais justas sociedades que o Homem foi até hoje capaz de criar, é um enorme privilégio.
Convém, por isso, valorizá-lo e defendê-lo. “No tinc por!” — “Não tenho medo!” —, gritou-se em Barcelona. Sim, é isso, mas também é muito mais do que isso: é um amor profundo à liberdade de cada um poder ser o que deseja e um imenso desejo de transmitir esse amor às gerações futuras. Cada um de nós — privilégio supremo — não precisa sequer de agarrar numa arma para fazer a sua parte. Basta pôr o chapéu e os óculos escuros. Cada turista é um combatente contra o Estado Islâmico. Não percebo como é possível não gostar deles.

O Estado frágil
António Barreto
DN, 20/8/17
O Estado português é gordo, mas é fraco. É pesado, mas não é firme. É um Estado fraco que torna vulnerável o seu povo. Entre incêndios, assaltos e acidentes, o Estado falhou. Nas previsões e na prevenção. Na prontidão do socorro e na rapidez da ajuda. Na humildade com que se devem tratar as vítimas, na coragem com que se reconhecem culpas, na seriedade com que se estudam as causas, no rigor com que se apuram as responsabilidades, na eficiência com que se distribuem auxílios e na honestidade com que se deveriam repartir ajudas solidárias.
São tempos de falhanço do Estado. Do Estado central e local. Do Estado político e administrativo. Do Estado civil e militar. Pelas vítimas, os acidentes de Pedrógão foram os mais dolorosos, mas não pela extensão e pela intensidade. Os fogos insistem. A prevenção continua a falhar. As comunicações permanecem erráticas e em regime de avaria. A coordenação é deficiente, foi-o desde o primeiro dia, melhorou aqui e ali por força das circunstâncias, está longe, muito longe, de ser satisfatória. Ou sequer de dar um pouco de segurança.
Há uma espécie de incúria generalizada em que se repetem os acidentes e os prejuízos. A ajuda atrasa-se. Os socorros ditos de solidariedade chegam tarde, quando chegam. Na maior parte dos casos, as ajudas imediatas para reconstrução e reinício de actividade, que deveriam demorar dias, não chegaram ao fim de semanas. Toda a gente do Estado tem algo a dizer, a garantir o que não têm e a prometer o que não podem. A culpar os outros, sempre os outros, os de baixo, os do lado, os de cima e os da oposição.
Os autarcas procuram a reeleição e queixam-se do governo, se forem de diferente cor política, ou dos serviços, se forem do mesmo partido. O governo faz promessas e bate na oposição, esperando subir nas sondagens. A oposição garante que não quer aproveitar e não faz outra coisa. Só os bombeiros parecem estar à altura.
Preparam-se já leis magníficas, como se o problema fosse esse. Não vão faltar os planos miríficos a longo prazo, o planeamento integrado, o ordenamento estratégico e o equilíbrio sustentável. Vão demorar anos a regulamentar, décadas a elaborar e eternidades a concretizar, enquanto persiste a palha à volta das casas, o mato nos baldios e nas florestas, o matagal nos caminhos, o restolho seco, os combustíveis vegetais prontos a disparar, a insuficiência de sapadores, as falhas de comunicações... Culpas de muitos a começar pelos aldeões que não tratam das suas casas e das suas fazendas, pelos lavradores que não querem gastar, mas tão-só encaixar, dos autarcas que preferem rotundas feitas pelos amigos artistas e pavilhões desportivos pagos pela União Europeia...
Em Tancos, falhou a disciplina, a responsabilidade e a noção de dever público. Falharam os militares directamente encarregados, por preguiça, por inconsciência e não se sabe se por coisa pior. Falharam os responsáveis por não ter acudido. Falharam os dirigentes militares e políticos pelo espectáculo lamentável, quase indecoroso, de esquiva culpas e de redução da importância do ocorrido.
Até uma procissão no Funchal trouxe mais de uma dezena de vítimas mortais, esmagadas por uma árvore, em acidente impensável, a que não falta desleixo e imprevidência, com uma polémica típica entre responsáveis, do proprietário à câmara, passando pela freguesia. Vai discutir-se seriamente a localização da responsabilidade entre o solo, a raiz, o tronco e os ramos ou pernadas assassinas...
Perdidos no imprevisto, os dirigentes políticos iniciam as suas intervenções com frases desajeitadas: "Trago uma palavra de esperança"... "Quero deixar uma mensagem de solidariedade"... Percebe-se logo o artificial. Sente-se a compaixão forçada do dever e do lugar-comum. A esperança e a solidariedade não se anunciam.

As minhas fotografias - Crianças à beira de passagem de peões, Barcelona[AS1] .
Numa avenida que nos conduz à Praça da Catalunha, onde começam as Ramblas, duas crianças esperam a sua vez para atravessar numa zebra. Apesar de plástica, a metralhadora, de aparência perigosa, deve sair directamente de um filme de ficção científica ou de um Rambo interestelar. Não fora a cor amarela e estávamos diante de verdadeira ameaça. Vivemos tempos em que as armas não só fazem parte do quotidiano como também se transformaram em brinquedos. "Brinquedos"... não rimam muito bem com "armas"... Nem "armas" com "crianças"... Mas são estes os costumes. Nesta semana, um dos assassinos das Ramblas tinha 17 anosFotografia de António Barreto