terça-feira, 8 de agosto de 2017

ADORAÇÃO de Cristina Drios


Um livro que, contrariamente ao sentido pacifista e de esplendor simbólico, subentendido no título, é todo ele sacudido por um frenesim de violência e sofrimento, quer no plano dos acontecimentos repentinos contemporâneos, que terão justificação posterior no contexto da Máfia, traduzido em perseguições e mortes no fio da intriga presente ou de alguns anos anterior, àquela ligado, quer nas biografias sucessivas das personagens do passado – o pintor Michelangelo Merisi (o Caravaggio) e o seu biógrafo, duque de Nottetempo, Matteo Mattei – com os respectivos figurantes, amigos ou inimigos, que se lhes vão colando, no vigor de uma acção em ziguezagueio constante, de retomas sucessivas, analepses e prolepses em jogo de luzes e sombras  como as que Caravaggio imprimiu aos modelos populares da sua arte realista, salientando ângulos percucientes ou mais serenos, bem diversa, pois, da pintura idealizada segundo o modelo platónico do Belo, dos seus contemporâneos renascentistas. Cristina Drios o vai explicitando nesta sua obra, extremamente rica quer do ponto de vista do estilo, quer do ponto de vista da manipulação dos dados da intriga, quer mesmo das referências de nível cultural e psicológico da urdidura romanesca.
Uma história muito moderna, pois, de contínuo suspense à maneira das tramas policiais hodiernas, inegavelmente bem escrito e atento aos pormenores das vidas, quer as contemporâneas quer as do passado que vem entroncar nesse presente, em processo de alerta insinuador de desfecho, sabiamente manipulado, segundo essa constante de suspense ou de mistério, em torno do quadro que subjaz à sua intriga, e que é descrito nas peripécias da sua realização, no plano da efabulação passada, ou do seu desaparecimento e busca no plano da acção presente.
Com efeito, como ponto de partida inspirador da obra, uma tela dá origem à intriga, e ao título do livro, precisamente o quadro de Caravaggio, cuja justificação ocupa uma página inicial, em epígrafe orientadora dessa intriga:

 «A tela Natividade com S. Francisco e S. Lourenço, ou A Adoração, pintada em 1609 por Michelangelo Merisi, o Caravaggio, foi roubada do Oratório de São Lourenço, em Palermo, a 17 de Outubro de 1969 e continua desaparecida. Tudo o mais é ficção ou quase.»

Sucede que o desaparecimento do quadro se efectua no próprio dia do nascimento de Antonia Rei, a mesma que, vinte e dois anos depois presenciará um homicídio, no espaço da praça do Teatro Massimo de Palermo, o que, por vias várias, a tornará protagonista da busca em torno do mistério desse quadro, com a descoberta da implicação de seu pai nesse desaparecimento, como membro sinistro ligado ao mundo da Máfia e do crime.
Uma contínua mudança de planos e focalizações, de contínuas insinuações de figuras e mistérios, em jogos de luzes e enfoques, que dispensam a decifração imediata dos imbróglios e das personagens, já apresentados aquando da incidência narrativa sobre Caravaggio no contexto da pintura do seu quadro para o seu protector Matteo Mattei (Parte II) e novamente referenciados aquando da autobiografia deste (Parte IV), e da sua relação com o esquivo pintor, fugido à justiça, por crime de homicídio.

Um quadro, pois, que serve como foco de irradiação da luz que dele parte para uma história de crime e busca e fuga, que tem como pano de fundo o poder certeiro destruidor da Máfia, no presente, da Inquisição, no passado - (século XVI) - que une as personagens no mistério da procura, mas definitivamente as separa quando a morte se impõe, semeando o terror e a fuga.

De cinco partes se compõe a estrutura da obra: a Primeira, em três momentos, localizada no presente – o testemunho de um crime pela protagonista, Antonia Rei, no espaço de uma praça em Palermo, o encontro com o agente futuro da busca – o comissário Salvatore Amato, seu protector futuro, o regresso a casa, com o problema da justificação, perante o pai, do cão assustado, que recolheu junto do dono assassinado, a descrição do pai – Renzo Rei – personagem sombria de elegante aparência, a referência ao folio de Matteo Mattei, com o título «Adoração», em evidência junto da secretária de mogno, a descoberta de um caderno de capa preta que começa a ler.
Trata a Segunda parte da referência à pintura, por Caravaggio, do quadro da Natividade intitulado «Adoração», no palácio de Matteo Mattei, duque de Nottetempo, em Palermo, em desencontro do pintor com este, que partira para Messina à sua procura. Pormenores biográficos da sua infância e idade posterior, de um viver de brigão insolente, entregue a dívidas, farras e bebedeiras constantes, referenciados conjuntamente com a manipulação dos dados sobre a feitura do quadro, com Caravaggio doente, mas transfigurado no momento da sua criação.

«Óleo sobre tela, 298 por 197 centímetros. O Menino e Maria. S. Francisco e S. Lourenço. O boi e o borrego. José e o velho. O anjo e a flâmula: “Gloria in excelsis Deo”.
O menino (um qualquer arranjado à pressa, um menino é um menino) e Eleonora, mulher de Matteo Mattei, duque de Nottetempo. Jean Marcheterre, o alfaiate francês do duque. O velho Achille Barbieri, o armeiro do duque. O boi e o borrego (uns quaisquer, arranjados à pressa, um boi é um boi e um borrego é um borrego). Orazio e o duque de Nottetempo, ou melhor, o seu irmão, o duque Gémeo (porque o outro, constava que corria meia Sicília em busca dele, para que não lhe escapasse o tão almejado quadro). Quanto ao anjo, Caravaggio adaptaria o menino. A flâmula decorada com as palavras «Gloria in Excelsis Deo» seria fácil de arranjar.
Pelo rasgão no tecto chegava-lhe a luz, preciosa e filtrada, e uma brisa marítima era, ao mesmo tempo, uma chamada e um aviso.
Orazio fez vir Jean Marcheterre de escantilhão. Foi-lhe pedido que costurasse, enquanto as riquíssimas vestes encomendadas pelo duque Nottetempo para Caravaggio ficavam esquecidas a ganhar mofo, uns hábitos, um para o S. Francisco e outro para o S. Lourenço, ele próprio e o armeiro. Qualquer coisa austera e sóbria, simples. Para trajar a duquesa na pele de Maria, Caravaggio exigiu um corpete vermelho fogoso. O próprio Orazio (secretário de Nottetempo) seria José. E aquele empertigado, Giovanni Mattei, o irmão do duque, que queria estar representado à viva força, o pintor pô-lo-ia na figura de um velho mendigo.»

Nova fuga de Caravaggio, após a realização do quadro, sem ter conseguido ver o seu benfeitor, e sobretudo admirador, o duque Matteo Mattei, ambos a contas com a Inquisição, “o sopro gelado da Morte” a interrogar ao ouvido de Caravaggio: «- Dizei-me, onde desejais marcar encontro?», expressão de alucinação, ligada a um contexto de sofrimento e anátema, num simbolismo animista que irá repetir-se com Matteo Mattei, também fugitivo, no final do seu livro (IV Parte) – “Dizei-me, pois, onde desejais marcar encontro?”, paralelo com o « - Onde marcaremos encontro” (V Parte) aquando da morte de Salvatore Amato, encomendada pela Máfia, como chamamento da mulher, Chiara, de cuja morte, tempos antes, dolorosamente inesquecível, ele se responsabilizava, culpado sem culpa, por lhe ter emprestado o seu carro, cuja explosão assassina era a si destinada.
Os simbolismos estão, pois, presentes na trama do livro, no passado como no presente, a desatenção humana, como erro punível, simbolizada, no Quadro de Caravaggio, na figura de José, virando a cabeça do objecto da Adoração – o Menino, - no caso de Salvatore, o empréstimo do seu carro a Chiara, sua bem amada mulher, num momento de urgência fatal (V Parte, em evocação de Salvatore) resultando na morte desta, com a explosão do carro, a si destinada, ou, no desfecho da intriga, a sua própria morte, pelos agentes da Máfia.

«O pintor fora sempre um obcecado perfeccionista e nada nos seus quadros se devia ao acaso, ao contrário da sua vida, marcada e virada do avesso pelo azar. O erro, portanto, fora propositado, de tal modo era flagrante. Salvatore Amato detectaria esse erro, grosseiro e voluntário, em todos os quadros da fase final da vida de Caravaggio. E isso tornava-se uma inimitável assinatura em telas supostas apócrifas como se, no fim da vida, o pintor, não encontrando melhor maneira de se redimir, escarnecesse do próprio talento.
Na Adoração, José é esse anacronismo. José somos todos nós quando certo dia, por egoísmo, negligência ou desatenção, desviamos o olhar daquilo que amamos. Para alguns, como Salvatore Amato, o preço fora demasiado alto. Também ele cometera um erro gravíssimo. Porém, cometê-lo intencionalmente, era algo de que muito poucos se poderiam gabar, sobretudo numa obra, razão pela qual um artista deseja ser recordado.»

Trata a III Parte da procura, por uma Antonia Rei fugitiva, do comissário Salvatore Amato, após a descoberta do livro preto de memórias da Mãe, espécie de Diário que será apresentado no início da V Parte, e que a fez identificar a figura sinistra do pai, como agente da Máfia, causador do infortúnio e desaparecimento da mãe, bem como o roubo do quadro A Adoração de Caravaggio, no mesmo dia em que ela nasceu, no mesmo Palácio cuja pertença fora da família de Matteo Mattei.
A IV Parte, continua a transcrição das Memórias do duque de Nottetempo, em tons diversos do seu discurso directo -  ora lírico, ora apelativo, ora mais contundente ou irónico, que Antonia Rei há muito conhecia de leitura e de conversas com o pai, e que referirá a Salvatore Amato (III e V Partes), o qual lhe dá guarida em sua casa, e ao cão do homem assassinado dias antes, na Praça do Teatro Massimo de Palermo.
A V Parte, iniciada com o Diário da mãe – escrito em 1969 – lançará luz no espírito de Antonia Rei, sobre o mistério da ausência da mãe – Anna - na sua vida, como tabu que sempre fora, naquele palácio dos Nottetempo, adquirido pelo seu avô, e onde ela fora educada por um pai sombrio e pela criada Maria, que a abandonara aos doze anos, para ser freira – elo próximo na decifração do mistério do roubo do quadro e do desaparecimento de Anna -  que Salvatore visita no seu convento, a convite daquela – freira arrependida, que se confessa cúmplice no roubo de quadro, e no desaparecimento de Anna Rei, mas que se redime pedindo a Salvatore que una mãe e filha, Anna Rei transformada em activista actual pelos direitos da mulher e tendo aparecido na televisão, rodeada por outras mulheres, em greve de fome por luta contra o poder criminoso da Máfia.
Escondida, pois, Antonia, no lar de Salvatore, que, com os seus trabalhos de arrumação transforma num espaço onde sonha, talvez, a possibilidade de uma vida de amor em comum, novamente o desvio dessa hipótese de felicidade, apenas sugerida, e que irá desembocar, antes, na tragédia da morte de Salvatore, no contínuo desencontro entre os seres, que o livro regista.

Limpidez de escrita, maturidade de conceito, confluência de planos e enfoques, contínuo jogo de luzes e sombras, nesta invasão de um passado poderoso de sofrimento e génio definindo uma humanidade que se repete e multiplica, como em espelhos facetados que se reflectem através dos tempos. Um livro surpreendente. Diferente.



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