É Andrómaca, que, na
tragédia do mesmo nome, de Eurípedes, se defende contra Menelau
(que a quer matar, em defesa da sua filha (e da bela Helena), Hermíone,
despeitada por aquela ter ocupado o seu tálamo conjugal - embora como escrava,
depois da destruição de Tróia, (onde, como esposa de Heitor, fora rainha) -
exprobando-o na sua mediocridade, como herói pouco consistente da Ilíada.
Vejamos passos do seu discurso:
«…Não
te julgo, por isso, digno de Tróia, nem Tróia o é já de ti. (Por fora, os
que parecem bem pensar são brilhantes, mas, no íntimo, são iguais a todos os
homens, excepto se possuem riqueza que lhes dá grande influência)…»
«Ó habitantes de Esparta, os mais odiosos dos mortais a todos os
homens! Dolosos conselheiros, mestres em mentiras, forjadores de desgraças,
homens de pensamentos tortuosos, que não andais por caminhos sãos, mas só por
desvios, a vossa prosperidade na Grécia é uma injustiça! Que é que em vós se
não encontra? Não abundam os assassínios? Não sois avarentos? Não se descobre
sempre que uma coisa dizeis com a boca, e outra pensais?...»
Não há, pois, que envergonhar.
O que conta José Manuel Fernandes a respeito da escolha de Isaltino
de Morais e de muitos mais, só prova que os que os escolhem
pertencem às camadas cultas, dos que leram Eurípedes e tantos outros antigos
que escreveram sobre anomalias proibidas, tanto mais que esses de Oeiras até
têm boa percentagem de gente formada superiormente. Se insistem em reeleger
Isaltino, e se este não se envergonha de ser reeleito, é porque têm leituras suficientes
para perdoar ou assumir o erro, atidos também ao clássico “errare humanum
est”, que abrange todos esses Basílios Hortas e Josés Sócrates do nosso
pequeno burgo de incendiários impunes.
Dias em que me
envergonho do meu país
OBSERVADOR, 10/8/2017
Primeiro Isaltino. Depois o triste caso do juiz. A seguir o passado
cheio de sombras das alternativas. Oeiras é um retrato do pior do país. Mas que
dizer, em Sintra, dos enganos de milhões de Basílio?
1. Ainda bem que não sou munícipe de Oeiras. Sou eleitor de Sintra,
mas isso não me livra de incómodas perplexidades.
Nem sei bem por onde começar a falar de Oeiras. Talvez por aquilo que
nem todos sabem: estamos no concelho onde o nível médio de educação da
população é mais elevado do país. Em Oeiras 30,7% dos habitantes
tinham o ensino superior, de acordo com o censo de 2011, quando a média
nacional era de apenas 13,8%. Só em Lisboa superava Oeiras neste indicador
Oeiras, com 31,1% de licenciados. Só que em Lisboa há muito mais habitantes
com pouco ou nenhuma formação (27,1% só têm, na melhor das hipóteses, o 1º
ciclo do Básico, contra apenas 20% em Oeiras). Mais: o concelho de
Oeiras era mesmo, nesse censo de 2011, o único do país onde mais de metade da
população tinha concluído pelo menos o ensino secundário (53%, contra uma média
nacional de apenas 30,5% e acima dos 49,1% em Lisboa).
Ou seja: o que quer que aconteça nas eleições naquele concelho não
acontecerá por falta de formação e educação da sua população. Mas será que
sucede por a essa formação e educação não corresponderem bons níveis de
rendimento? Também não. De acordo com os cálculos do INE, em 2013 (últimos
dados disponíveis) o poder de compra per capita de Oeiras era 80,7% superior
à média nacional. Só Lisboa tinha um indicador melhor, pois o poder de
compra na capital mais do que duplica a média nacional. Cidades como Cascais
ou o Porto ficavam claramente atrás de Oeiras.
Temos assim que o concelho mais educado do país e o segundo com mais
poder de compra se preparava para reeleger como presidente da Câmara Isaltino
Morais, alguém condenado por fraude fiscal e branqueamento de capitais. E
escrevo “preparava” porque um juiz entendeu recusar a sua candidatura com base
em irregularidades formais. Não
sei como esse processo terminará, mas não tenho muitas dúvidas de que Isaltino
iria ser coroado de novo em Oeiras – e que sê-lo-á se a sua candidatura acabar
por ir por diante. E não tenho dúvidas porque os oeirenses já o reelegeram em
2005 e 2009 quando já havia muitas dúvidas sobre a sua probidade e era arguido
em vários processos, tal como depois elegeram em 2013 o seu número dois, alguém
que concorria numa lista com o seu nome. O que significa que apenas iriam
reincidir.
Mas este é apenas o começo da história. A continuação conheceu esta semana o rocambolesco
episódio da recusa das listas encabeçadas por Isaltino por um juiz que foi
secretário da concelhia do PSD no tempo em que o seu principal rival nestas
eleições – o seu antigo benjamim Paulo Vistas – ocupava a presidência desse
órgão. Pior: o
dito juiz é afilhado de casamento desse mesmo Paulo Vistas mas
não achou que essa sua proximidade a um candidato lhe impunha pedir escusa
quando lhe tocou avaliar a validade das listas candidatas. Pior ainda: não se
sentiu inibido para tentar barrar, na secretaria, a candidatura de Isaltino,
existindo até a indicação de que numa anterior ocasião decidiu de forma diferente
quando confrontado com o mesmo tipo de alegada irregularidade na
recolha de assinaturas por… Paulo Vistas.
Satisfeitos? Já acham bastante para o “concelho mais educado do país”?
Pois então deixem-me acrescentar que o pesadelo não acaba aqui.
Começando por Paulo Vistas, actual presidente da câmara e que era
tido como o principal rival de Isaltino Morais, temos de recordar que ele foi
também o principal suspeito
na investigação às ruinosas PPP de Oeiras. Não consegui apurar em que estado se encontra este
processo, só sei que essas PPP municipais foram mesmo um mau negócio para o
erário público.
Passando a Joaquim Raposo, o candidato do PS e que
durante muitos anos dirigiu os destinos do vizinho município da Amadora, os
processos em que foi suspeito ou esteve a ser investigado são ainda mais numerosos,
mais estranhos e envolvendo ligações mais perigosas. José Guilherme, o famoso empresário que fez uma
“gentileza” a Ricardo Salgado, tem a sua base na Amadora e era um dos
protagonistas de um processo, entretanto arquivado, que chegava também ao
ex-deputado do PSD Duarte Lima, a Armando Vara e a José Sócrates. Esse
foi um daqueles processos que esteve anos parado sem qualquer diligência num
tempo que o Ministério Público era conhecido como o “arquivador-mor do reino”.
Dele nos ficou pelo menos a informação das companhias do autarca que o PS foi
repescar para tentar conquistar Oeiras – e sobre o que nos dizem essas
companhias abstenho-me de comentários. De resto sabemos também que pode não ter
declarado devidamente o seu património imobiliário ao fisco, omitindo a existência de uma piscina numa
sua casa.
A seguir ao trio Isaltino-Vistas-Raposo surge por fim o candidato
oficial do PSD, Ângelo Pereira, uma figura ainda tão pouco conhecida que os
cartazes da sua campanha optaram por o representar como um boneco que apresenta
o seu currículo. Mesmo assim já foi apanhado
no “huaweigate”, apesar de tudo uma coisa de crianças ao lado de
todas as sombras que pairam sobre o triunvirato de “adultos” que se apresenta a
votos em Oeiras (Vistas, de resto, também
está envolvido neste “huaweygate”).
Nada aqui é bonito de se ver, nada aqui é boa referência para a nossa
cultura democrática – neste caso a cultura democrática de um concelho “de
elites”, aquele onde menos se pode atribuir à falta de educação ou de
informação as escolhas dos seus eleitores. Eles sabem o que estão a fazer, oh
lá se sabem.
2. Como referi logo na abertura deste texto não sou
munícipe de Oeiras – mas sou de Sintra, aquele concelho onde o actual
presidente e candidato do PS, Basílio Horta, se enganou em apenas três zeros
nas suas declarações de rendimentos depositadas no Tribunal Constitucional. Três
zeros que valem 5,6 milhões de euros. Mesmo dando de barato que foi
um engano, o crescimento de conta bancária de Basílio entre 2002 e 2010, e
depois 2013, está muito mal explicado. A mim, que sou eleitor do concelho, não
me satisfaz. Sobretudo não gosto de encontrar, como dizer?, fragilidades destas
em alguém que entre 2002 e 2010 esteve vários anos à frente do AICEP, colaborou
de muito perto com o então primeiro-ministro José Sócrates e o seu ministro da
Economia Manuel Pinho, e sobretudo deu a cara por projectos ruinosos que custaram
centenas de milhões de euros à Caixa Geral de Depósitos (o mais
notório de todos o do investimento na fábrica da La Seda em Sines, mas também o
da unidade da Pescanova em Mira) e nunca se distanciou da política suicida
seguida nesses anos.
Seja lá como for, enganos como os invocados por Basílio Horta como
justificação para o que está nas suas declarações de rendimentos não podem
passar sem penalização política. Quanto a uma penalização eleitoral, os
eleitores de Sintra julgarão.
Quanto ao resto do país, que parece encolher os ombros, não sabemos se
é apenas por estar a banhos, se por nas suas terras conhecerem outras histórias
do mesmo jaez, se por puro e desesperado desencanto. Seja qual for a resposta,
é um mau sinal – sinal de que a nossa democracia está longe de ter os hábitos
de rigor e probidade que encontramos em países não só com democracias mais
antigas, como com instituições mais saudáveis e que, claro, são mais ricos. Bem
mais ricos. É que, no fim do dia, a salubridade das instituições está por regra
associada a economias mais dinâmicas e inovadoras. E por cá, quanto a salubridade,
o tempo é mais de colocar uma mola no nariz.
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