É claro que nem todos os avós
têm o (des)conforto de uma casa grande própria para acolher nas férias os
filhos dispersos pelo estrangeiro (alguns, pela província) com os respectivos
filhos e os amigos dos filhos ou dos netos, mas a crónica de Maria João Avillez
retrata com humor e graça a desordem que
reina por essas alturas, no seu espaço de rainha-mãe, arrastada no vendaval de
uma movimentação em que os planos não funcionam numa época de gerações cada vez
mais libertas da contenção e da rigidez que os hábitos de outrora impunham.
Já lá vai também o tempo em
que Sá de Miranda, para aconselhar seu irmão Mem de Sá, que foi governador do
Brasil, sobre a vacuidade da muita ambição, lhe conta a história do Rato do
Campo e o da Cidade, em que aquele, convidado por este, grato, por lhe ter
acudido numa certa ocasião no campo, onde se perdera, o leva à casa rica onde
vivia, na cidade, mas onde o do campo passou tormentos de receios, regressando,
breve, à sua paz campesina.
Não se trata, de facto, de
nada parecido com o que refere Maria João Avillez. Só a situação de estranheza
nos tempos actuais, perante a invasão que desconcerta os hábitos, me fez acudir
aquela outra em que o rato pobre, para receber o rato rico, a quem deve
favores, mereceu o descritivo pitoresco e de grande realismo e actualidade, apesar
do discurso ainda arcaico, que transcrevo – não da Internet, hélas! – como paralelo
de situações de atrapalhação - que Maria João Avillez traduz com o seu
estilo elegante e sóbrio e Sá de Miranda, com saber igualmente
humanista:
«Um rato duma cidade /
tomou-o a noite por fora; / quem foge à necessidade? / Lembrou-lhe a velha
amizade / doutro que i no campo mora.
«- Saiu-me a conta errada;
/ muitas vezes acontece: / cresceu-me minha jornada - / diz, entrando na
pousada; / logo cidadão parece.
«O pobre, assi salteado /
dum tamanho cidadão, / em busca dalgum bocado / vai e vem muito apressado / que
não punha os pés no chão.
«Ordena sua mezinha / (inda
tinha algum legume, / inda algum pó de farinha); / pôs-lhe i tudo quanto tinha,
/ pede perdão por costume.
«Diz: Quem tal adevinhara /
(contra o cidadão severo) / tanto revolvera e andara, / que alguma cousa
buscara / a quem tanto devo e quero.
«Cumpre muito àquela mesa /
mais da fome que da gula; / tem a fogueirinha acesa, / faz rosto ledo à
despesa, / co trabalho dissimula. …»
Não é o caso de fazer “rosto
alegre à despesa” - embora perfeitamente actual essa versão - mas de o fazer à balbúrdia fora do costume.
O tempo passa depressa, hélas! As férias já quase foram.
O tempo passa depressa, hélas! As férias já quase foram.
Certificado de desordem (primeira crónica estival)
OBSERVADOR, 8/8/2017
Fui-me apercebendo que, se
não me lembro de os meus pais se terem “ocupado” desta forma dos meus filhos,
foi simplesmente porque não era, como hoje é, (quase) urgente
fazê-lo. Era-se avó doutra forma.
1. Não é que esteja distraída com o Verão (como
se pudesse dar-me a esse luxo); nem que desde Julho não se cozinhem empadões,
guisados e picados; ou não haja, no ar, aquele inquietante pré-aviso de
iminente alteração da ordem vigente. Mas a verdade é que não esperava para já
tão aparatoso alarido. Temi afogar-me entre as datas de chegada dos vários “estrangeiros”
onde vive a prole, entre a “requisição de apoios logísticos e automobilísticos,
entre a permanente indefinição dos locais por onde contam cirandar, entre
vários e variados outros requisitos. O “pater famílias” exausto antes do tempo,
optou por fabricar um mapa (um excel mas detesto a palavra) com a ilusão de que
lá imprimindo a complexa agenda das férias estivais dos filhos&famílias,
“tudo se resolveria”. O “tudo” não é senão a (vã) tentativa de que as nossas
cabeças percebam a quantas andamos e consigam depois organizar-se (as cabeças)
em função dessa suposta, digamos, descoberta de algum norte trazido pelo mapa.
2. Não tem sido fácil, nem fluido: tão depressa
os filhos chegam num dia como “afinal” noutro; mal anunciam, com “carácter
definitivo”, que estacionarão de armas, bagagens e filhos em Lisboa, “afinal”
vão directos para destinos neles assaz improváveis como a Praia Grande ou
Sesimbra, “mas se puderem deixem aí um carro” (como se tivéssemos uma loja de
carros).
Passadas que serão, porém,
esses novos locais e a sacrossanta paragem na mítica “costa vicentina”, a tribo
desaguará no nosso Oeste, produzindo ao aterrar uma indefinível composição de
“feelings” que vão da nossa mais imensa alegria a um sempre reeditado espanto
face à sua prodigiosa capacidade em subverter a ordem e a vida como nos
habituamos a achar que elas são. Como se trouxessem consigo um certificado de
desordem, devidamente autenticado pela realidade que usam praticar.
Convencionara-se – verbo de
uso por aqui pouquíssimo praticado – que o tal mapa contemplaria o calendário
da vida estival, das entradas e saídas, até à (preciosa) informação sobre o
“estatuto” dos amigos esperados – residente, passante, hóspede de curta
duração… Serviu de pouco: ultrapassado pela velocidade das geografias e
geometrias destas vidas, o mapa foi ficando de pouca serventia.
3. “É para avisar que depois de Sesimbra, chego
aí com um grupo no dia tal”, anunciava-me há dias telefonicamente um filho,
algures da vasta Europa. Um “grupo”?
O “aviso” alertando para
(ainda) mais camas e víveres (quem gere a estalagem sou eu) indicava sobretudo
o quanto o meu interlocutor telefónico pouco se impressionara com a lotação
esgotada da casa. Já anteriormente requisitada para abrigar amigos estrangeiros
de outro irmão que “vinham de propósito, mãe!” Deslocavam-se do mundo para
A-dos-Negros, operação que num puro acto de overbooking eu temia que
fosse agora curto-circuitada. E por “um grupo”.)
E pensar que faltavam ainda
os “avisos” de última hora de um terceiro filho que também poderia mudar datas
e alterar destinos, que a única coisa previsível em tudo isto é a
imprevisibilidade deles próprios.
4. Desisti. Não era só o overbooking. Nem
supermercados, reabastecimentos de frigoríficos ou andar por estes montes e
vales a suplicar mais ajudas domésticas. Era, como dizer?, a perplexidade com
que (ainda) olho esta espécie de “rendição” que o século XXI – e o final do XX
– viu consumar-se nos pais face aos filhos. E dos avós, capturados pela vida
dos netos, as compras, os sapatos, as gripes, os estudos, as actividades
extra-escolares dos netos. Ser avó virou uma saga generosa, capaz de
transfigurar uma reforma pacata numa cavalgada afanosa. Uma segunda vida: sem
horas e garantidamente multiusos.
Sim, sim, já o ouço, caro
leitor, a dizer-me que se não quiséssemos, não seria assim, rendição tão
voluntária. Sucede que não é bem isso e só o descobri quando chegou a nossa
vez. Passou a ser assim, porque passou a ser preciso acudir.
Quem tem trinta ou trinta e
tal anos esfalfa-se para domar a vida: muito trabalho fora de casa e pouca
ajuda dentro dela; filhos, custo de vida alto, remunerações baixas. Como
“actuar” face a um estado de coisas que os filhos têm hoje de protagonizar e
vencer ao mesmo tempo, senão aligeirando quotidianos povoados de crianças e
responsabilidades, com uma duração non stop entre a aurora e a noite entrada?
Fui-me apercebendo com os
anos que, se não me lembro de os meus pais se terem “ocupado” desta forma dos
meus filhos, foi simplesmente porque não era, como hoje é, (quase) urgente
fazê-lo. Era-se avó doutra forma. A configuração da vida desenhava-se com
outras coordenadas que pouco ou nada oscilavam. A previsibilidade era um
instrumento de navegação, havia amparos familares e ajudas domésticas; havia
algo de parecido com garantias, ainda não se praticava a precaridade. E havia
menos surpresas. De algum modo sentíamo-nos a salvo. Sem nunca perceber que
isso não tinha preço mas tinha os dias contados.
5. Apesar do omnipresente Canal Panda, de
tropeçar mil vezes ao dia em sapatos desirmanados, biberons e toalhas de praia
sempre sem dono, de me afligir outras tantas com o assassínio dos canteiros
pela bola de futebol; de, em vão, me enervar com o facto (não despiciendo) da
parte de cima dos pijamas não “pertencer” à de baixo; apesar dos inoxidáveis
“mas” (“mas porque é que não posso ter o Ipad do avô?”; “mas porque é que não
havemos de ir às Caldas comer um gelado?“; “mas porque é que tenho de ir tomar
banho?”) é aqui, neste Oeste silencioso, brumoso e atlântico, que me sinto a
salvo. E neblinas por neblinas, iodo por iodo, ventos por ventos, prefiro-o a
qualquer Praia Grande ou Pequena, ou à improvável Sesimbra que este Verão
seduziu os meus. Um porto de abrigo onde (com breve escapadas) se permanece
toda uma época, deixando Lisboa muito ao longe, mesmo sabendo-a à mão de
semear, pertíssimo daqui. Mas a essência desta “outra vida” que o poeta dizia
que “era o Verão” não é senão tornar maravilhosamente longínquas quaisquer
distâncias, por mais breves que sejam ou estejam.
Sim, é verdade, o desabafo
contradiz a desordem ruidosa acima descrita que caracteriza as famílias
numerosas que nos alegrarão os dias, guiadas pelo excel do “pater familias”.
Mas é ainda mais verdade que o Verão tem o dom de “produzir” distâncias. Distâncias
de tudo. O que logo define (e perfuma) o que pode ser essa “outra vida”. Distante da “outra”.
Talvez por isso aqui me julgue a salvo.
(Mas só talvez.)
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