sábado, 19 de agosto de 2017

Registe-se


Diferentes nos temas e nos espaços de referência, já também afastados de duas semanas nas suas escritas, os dois artigos de opinião que seguem mantêm a sua visibilidade, na pujança da força humana que faz que os casos referidos, tristemente caricatos, sejam um dia registados na História – quem sabe? – como feitos de heroísmo e glória, ou de puras banalidades que, todavia, ajudam a definir as idiossincrasias dos povos e das gentes, na efervescência contínua dos arranjinhos da ambição e do poder.

Inimigos da democracia, lá e cá
Nicolás Maduro, o mais recente membro do clube de ditadores, é apoiado por um partido português.

Diogo Queiroz de Andrade    -    EDITORIAL
Público, 2 de agosto de 2017

A Venezuela deixou de ser uma democracia. Tem presos políticos, tem um governo com um líder autocrático, tem os tribunais manietados, a tropa está na rua para impedir a liberdade e a nação está a caminho de possuir uma Constituição ilegítima.
Dois líderes da oposição voltaram a ser detidos durante a noite, sem indicação do local para onde iam, nem identificação dos agentes envolvidos. Leopoldo López e Antonio Ledezma estão condenados em processos que são políticos — que devem agora estender-se a outras figuras que se opõem ao Governo. Trezentos e setenta mil soldados estão mobilizados desde sábado para garantir que o poder se mantém do lado do Governo, de preferência com menos manifestações activas e com mais liberdades suprimidas.
O líder Nicolás Maduro continua a fuga para a frente, porque tudo o que está a acontecer visa apenas e só manter o poder. Não importa quantos venezuelanos morram de fome ou dos tiros antimanifestantes. A única coisa que importa a Maduro é manter a liderança — o poder e o seu programa de rádio em que continua a passar salsa para entreter as massas que ainda o escutam. Este é o mesmo homem que acusou potências estrangeiras de infectar Chávez com cancro, que governa por decreto, que destruiu o tecido produtivo em nome de uma política corrupta para beneficiar os seus aliados e tornar o território uma plataforma privilegiada para o tráfico de droga.
As instituições internacionais não se deixam enganar: os Estados Unidos já condenaram o regime e apreenderam os bens dos líderes; o Parlamento Europeu pede que a União Europeia faça exactamente o mesmo; a Amnistia Internacional acusa o Governo de tentar desesperadamente silenciar todas as formas de crítica e de estar a arrastar o país para a ruptura; e o responsável das Nações Unidas pelos direitos humanos assume estar profundamente preocupado com a situação dos presos políticos.
É incompreensível que se continue a defender este regime, como o faz o PCP. Não é uma novidade histórica, muito menos vindo de quem se mantém admirador da Coreia do Norte. Mas é grave que assim seja e é prova do atraso que vive quem insistem em olhar para o mundo com os olhos cegos pela ideologia. A liderança comunista portuguesa assume-se como cúmplice dos polícias que matam manifestantes e das políticas que matam os venezuelanos à fome. No meio há portugueses.

Uma história que nos empobreceu e nos envergonha
Público, 16 de agosto de 2017
Manuel Carvalho

A crónica da morte anunciada da PT é muito mais do que o relato de uma falência ou a história de uma companhia que correu mal. É principalmente uma crónica de costumes. Uma novela, onde a patifaria, a falta de escrúpulos e o perfume da corrupção atravessa diferentes elites do poder económico e do poder político para se abater sobre um país afundado numa grave crise financeira e moral. Tanto como os danos resultantes da destruição de uma empresa inovadora que poderia servir de baluarte à modernização e à internacionalização da economia nacional, a história sórdida da agonia da PT e as movimentações crápulas da maioria dos seus principais dirigentes deixa em Portugal e nos portugueses uma sensação de vulnerabilidade que só o sistema judicial poderá um dia resgatar.
Há muito se sabia que o capitalismo português não passava de um libreto de uma ópera cómica. Há muito que se suspeitava que as teias relacionais entre as elites financeiras da capital e o poder político tinham criado um sistema que se defendia e se perpetuava em relações conspícuas. Durante a tenebrosa era de José Sócrates, essas redes viveram no ambiente ideal para prosperar e perder qualquer laivo de vergonha. O alto patrocínio de São Bento foi para Ricardo Salgado e os seus sequazes mais do que uma autorização: foi um incentivo para que a PT fosse transformada num cadáver onde os abutres pudessem saciar as suas necessidades financeiras.
Tudo aconteceu sem que os reguladores vissem, sem que altos quadros da PT denunciassem, sem que a imprensa se empenhasse em perceber, sem que as instâncias judiciais fossem capazes de antecipar o que estava em jogo. O falhanço da PT, sendo consequência de uma cultura irresponsável, é também o falhanço do país que fomos nesses anos perdidos da primeira década do século.
Perdida a glória da PT, encaixada a destruição de valor, resta exigir que a Justiça faça o seu caminho. Resta também desenvolver mecanismos de vigilância que evitem a repetição de uma vergonha assim. Se houve um mérito no período de ajustamento foi o de trazer para a luz do dia a venalidade e velhacaria que se cultivavam entre os donos disto tudo. Hoje já não há empresas como a PT para extorquir. Esperemos que a denúncia de investigações jornalísticas como a da Cristina Ferreira ou a punição judicial sejam capazes de travar por muitos anos a germinação de redes como as que arrasaram a PT




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