sábado, 30 de setembro de 2017

Colaboração



Para a Chiado Editora enviei o seguinte texto, para preencher o espaço de criatividade do seu desafio deste ano, o qual foi aceite, para a sua nova antologia poética, hoje lançada:


 Respondendo ao desafio por vós lançado, envio este “poemeto”, que nada tem de lírico.

ENTRE O SONO E O SONHO – 2017
E a vida se processa em harmonia
Na apatia
Da nocturna vigília
Que faz que ao sono o sonho
Se sobreponha - enérgico e competente
De um viver diferente,
Na ilusão consistente
De que é possível alcançar
O cume da montanha, a flutuar
Em tapete impante,
Como outrora fez
O ladrão de Bagdá alegremente,
Intactos de esforço e arte,
A merecer louros sem glória,
Esses tais do título.
Assim também reza a história
Do milagre,
E a Bíblia
Lembrando os lírios do campo no seu canto,
Belos subitamente e também
Como o cacto
Que os céus protegem e alimentam
De esplendor e gordura no deserto
Febril do seu espaço aberto
Sem necessitarem de se esforçar
Para tanto.
Assim se defendem esses tais do sono
 - Só interrompido pelo sonho -
De um viver de alcance imediato
Do seu prato.


O amor da bola nos salvará

Mais um texto enviado por João Sena, retirado do blog A BIGORNA, de David Martelo – um estudo documentado sobre o Iberismo, na sua evolução e diferentes contextos históricos. Será que algum dia pegará esta praga do iberismo? Esperemos que ao menos o factor clubístico faça recuar a temerosa ideia de união ibérica, já que deixam de ser relevantes os pretextos linguísticos ou literários ou outros, fundados na própria História nacional, enobrecedores do conceito “pátria”, ante as ideologias evolucionistas interesseiras, para uma estabilidade económica e melhor trato social, sob os auspícios de uma nação socialmente mais equilibrada. Será? Afinal, cá por casa, o Hino Nacional já só praticamente se canta nos clubes…

O IBERISMO DEPOIS DE 1820
No curto período que medeia entre a revolução de 1820 e 1822, surge, através da maçonaria dos dois países ibéricos, a ideia de que uma solução federalista se afiguraria preferível a ficar Portugal na condição de colónia do Brasil. Tal tese perderia todo o sentido após o regresso do rei D. João VI e, sobretudo, depois de consumada a independência daquela colónia. Poderá avançar-se, sem grande erro, que, desde a revolução de 1820, o iberismo em Portugal se assume, primordialmente, como o ideário de uma certa elite intelectual, entre a qual se distinguem os nomes proeminentes de Antero de Quental, Oliveira Martins, Latino Coelho, Teófilo Braga, Henriques Nogueira. Outros se lhe opõem vivamente, como é o caso de Fernandes Tomás, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Anselmo Braamcamp, José Estêvão e tantos mais, travando-se, então, as mais contundentes polémicas. No âmbito da Corte, parece já não se acalentarem mais ilusões a respeito da bondade da solução ibérica. Por essa altura, é muito forte a posição britânica no contexto europeu e mundial e torna-se líquido que a Grã-Bretanha jamais veria com bons olhos o retrocesso à era de Filipe II. A única tentativa com algumas perspectivas de êxito para o retorno à união ibérica, ocorrida desde o final da Guerra Peninsular até aos nossos dias, emerge na sequência da deposição de Isabel II de Espanha, em 1868. Nessa ocasião, algumas figuras ilustres da política espanhola fazem deslocar a Lisboa o enviado Ángel de los Ríos, com a missão de oferecer o trono vago a D. Fernando II, viúvo de D. Maria II e pai do rei de então, D. Luís I. Mas a candidatura de D. Fernando é recusada pelas câmaras portuguesas. De los Ríos não desarma e oferece a coroa de Espanha a D. Luís. O monarca português, no entanto, apercebe-se do desagrado que tal hipótese provoca na opinião pública nacional e declina a oferta. Nalguns meios políticos e intelectuais espanhóis, a recusa dá origem a uma oportuna reflexão. Poucos anos volvidos, escrevia a propósito o catalão Francisco Pi y Margall: España desea unirse a Portugal, pero no Portugal a España. Tiene Portugal, como he dicho, cien veces más asegurados que nosotros la libertad y el orden; y no olvidará nunca que precisamente cuando lo mandaron los Felipes entró en su período de decadencia.
1   Ultrapassado o episódio da oferta do trono espanhol, não escasseiam, no último quartel do século XIX, fenómenos de iberismo e anti-iberismo sob a forma de escritos e de associações. O iberismo revela-se, muitas vezes, uma explosão de desencanto e protesto face à inépcia da classe dirigente. Constitui, também, uma via conspícua de contestação da aliança britânica, contestação essa que encontra o seu fundamento no modo como a Grã-Bretanha defende os seus interesses à custa de Portugal – casos das negociações da Conferência de Berlim, do Mapa cor-de-rosa e do ultimato de Janeiro de 1890. Na sequência da humilhação sofrida às mãos do velho aliado, o iberismo experimenta um novo impulso. Guilherme Moniz Barreto lança para a opinião pública, em 1892, um notável convite à meditação. Depois de recordar o encontro de interesses entre os dois reinos no período abrangido pelos reinados de D. João II, D. Manuel I, D. João III e D. Sebastião, Moniz Barreto sublinha: Durante esse período, que é o da maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares, a consciência da força própria suprime desconfianças e temores, e a identidade de aspirações e sentimentos cimenta as bases de uma aliança em que compartilhamos com a Espanha a hegemonia no Mediterrâneo ocidental e nos dois oceanos. [...] E é um facto que se presta a reflexões que o período da aliança espanhola coincida com a época de maior prosperidade e de plena expansão do génio português.
2 Fruto dos sentimentos da época, declaram-se iberistas muitos republicanos portugueses. Vêem estes, no regime republicano, a fórmula ideal para um tipo de união federalista. E são-no, também, alguns vultos renomados do republicanismo espanhol. Esse sentimento de inspiração antibritânica vai desvanecer-se com o tempo. Ao chegar ao poder, a República de 1910 tem já, a esse respeito, uma posição de conciliação e entendimento com o governo de Londres. Mas a polémica atravessa mais a elite nacional do que o povo, o qual, no essencial, segue o duvidoso princípio de que de Espanha nem bom vento, nem bom casamento. E como em Espanha o assunto é também motivo de reflexões públicas, nem sempre a contento dos interesses portugueses, alguns iberistas de ontem recuam para posições mais prudentes. Nos meios monárquicos espanhóis, a crise que se segue ao ultimato britânico merece-lhes um cuidado extremo. Têm a noção do desprestígio que se abateu sobre a casa real portuguesa e do crescente poder do Partido Republicano. Um regime republicano em Portugal pode encerrar uma séria ameaça para a sua monarquia. Assim, há que manter uma atitude que em nada possa exacerbar os sentimentos nacionalistas dos republicanos. Após 1910, a situação inflecte. É de Espanha que vêm os apoios às tentativas de restauração da monarquia, logo, os republicanos afastam em definitivo o ideário do iberismo. É, então, a vez de assumirem a aliança preferencial com a Espanha os monárquicos nacionalistas partidários do Integralismo Lusitano, de que é figura de proa António Sardinha. Segundo ele, «a fórmula de amanhã em política exterior há-de ser, sem dúvida, não união ibérica, mas aliança peninsular
3 Do ponto de vista da postura política tradicional, trata-se de um momento verdadeiramente insólito, como o próprio Sardinha haveria de reconhecer ao afirmar: «Pois são em Portugal os que se consideram integrados na dupla tradição católica e monárquica do nosso país quem mais braveja e se insurge contra uma maior aproximação com a Espanha».
4 Na vizinha Espanha, entretanto, considera-se que o que se passa em Portugal tem reflexos directos na sua política interna e Afonso XIII permite-se sonhar com o «passeio militar a Lisboa»
5 Este cenário desvanece-se, a partir de 1923, com a chegada ao poder do general Primo de Rivera, indubitavelmente determinado a respeitar a independência e a identidade próprias de Portugal. Mas não se extingue, então, o sentimento iberista. Entre os espanhóis destacam-se as figuras de Cláudio Sánchez-Albornoz, embaixador em Lisboa do governo republicano espanhol (1936), que, no seu Mi Testamento, registava: Respeito o orgulho nacionalista dos Portugueses e volto a tornar notório o meu enamoramento pela sua pátria, mas mentiria se ocultasse a minha esperança de um futuro regresso de Portugal à matriz da Hispânia de onde saiu.
6 Noutra ocasião, procurando demonstrar a sem-razão de certos argumentos étnicos, acrescentaria: En verdad no separan hoy a portugueses de castellanos diferencias psíquicas y temperamentales ni mayores ni menores que a aragoneses y andaluces, por ejemplo. Nuestro apartamiento será un día superado, aunque ello parezca hoy imposible. Y lo será amistosa y fraternalmente por mutua convicción y por recíproco interés.
7 O regime português saído da revolta militar de 28 de Maio de 1926 encara com sérias reservas a orientação da nova República Espanhola no tocante aos seus objectivos de federalismo ibérico. Segundo Hipólito de la Torre, «foi esse iberismo das esquerdas, e não só os “perigos subversivos” para o Estado Novo, que motivará a aposta de Lisboa nos militares rebeldes, quando, em 1936, se inicia em Espanha uma sangrenta guerra civil».
8   Talvez por isso, Salazar, por ocasião do 10.º aniversário da revolução de 28 de Maio – poucos meses antes, portanto, do início da guerra –, julgasse oportuno sublinhar: Não discutimos a Pátria, quer dizer, a Nação na sua integridade territorial e moral, na sua plena independência, na sua vocação histórica. Há-as mais poderosas, mais ricas, porventura mais belas; mas esta é a nossa, e nunca filho algum de coração bem formado teve o desejo de ser filho de outra mãe. Deixemos aos filósofos e aos historiadores o entretenimento de alguns devaneios acerca da possibilidade de diferente aglomeração de povos e até das vantagens materiais de outras combinações que a História não criou ou desfez; no terreno político e social, para nós portugueses que somos de hoje e velhos de oito séculos, já não há processo que possa ser revisto, debate que possa ser aberto, pedaço de soberania ou de terra que nos pese e estejamos dispostos a alijar de cansados ou de cépticos.
9 O movimento franquista, por seu turno, não está isento do pecado do iberismo. A sua ala mais radical patenteia uma clara ideologia iberista-anexionista, embora jamais tenha usufruído de condições políticas internacionais para a sua concretização. O jornal da Falange, Unidad, publicava na primeira página o mapa da península ibérica, como se fosse um único país, com a legenda: España una, grande e libre. Deste modo, a aproximação entre os regimes franquista e salazarista deve ver-se como uma superação desta visão diversa do destino comum, a favor da luta conjunta contra o comunismo internacional. O período que se segue até à queda dos dois regimes ditatoriais mantém em alerta os dois pequenos blocos radicaisanti-iberistas portugueses e pró-anexionistas espanhóis. Do lado português destacam-se os monárquicos, grande parte do clero conservador e algumas figuras salientes do regime deposto. Franco Nogueira, embaixador e ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar e Caetano, é verdadeiramente arrasador na defesa dos seus pontos de vista: Os tempos não são novos, nem são outros: e os fantasmas do passado estão bem vivos no presente – porque não são fantasmas.
10   No país vizinho, como quem faz psicanálise conjunta aos temores e aos abalos emocionais dos dois povos, há quem acompanhe com lúcida serenidade os sintomas mais visíveis deste nacionalismo impenitente... …aunque paradójicamente fuera una construcción radicalmente idéntica a la de ese nacionalismo español, conservador y unitario, que sirve como objeto de repulsa. Sobre todo, en dos puntos esenciales: Ambos utilizan los mismos parámetros de construcción de sus respectivas identidades: catolicidad, misión civilizadora, la nación identificada con la corona en una síntesis conceptual que remite a una sociedad orgánica, temporalmente perturbada por los factores de ruptura introducidos por la sociedad contemporánea. • Los dos sostienen una visión lineal de la historia, en la que la decadencia ibérica se vuelve, hasta la obsesión, elemento central del discurso. Desde esta óptica, la decadencia se introduce por la imposibilidad de eliminar los factores externos de disolución de las identidades portuguesa y española: el renacimiento y sus tendencias laicas y liberadoras del pensamiento; la disidencia religiosa; la competencia económica de ingleses, franceses u holandeses. En síntesis, la Europa del Quinientos y del Seiscientos habría asistido a la ruptura definitiva de la unidad cristiana, de la que Portugal y España, según los respectivos nacionalismos, constituirían los primeros y auténticos protectores. En este terreno, los dos nacionalismos buscarán convencerse hasta una fecha tan tardía como es el final de las dos últimas dictaduras que se asientan en la Península Ibérica, en 1974-1975, de que el resto de Europa había errado en su trayectoria histórica, mientras que sólo ellos habían constituido esa “reserva moral de Occidente” de la que siempre se sintieron los verdaderos depositarios.
11 A situação política internacional criada pela vitória dos Aliados na 2.ª Guerra Mundial, afastando por completo a possibilidade de uma união ibérica por imposição militar, vem recolocar a questão das uniões políticas de forma inovadora, prenunciando grandes alterações no conceito tradicional de soberania dos Estados. No caso de Portugal, a adesão à EFTA, em 1960, e os acordos comerciais estabelecidos em 1972 com a CEE materializam, no plano económico, a primazia da opção europeia relativamente à opção ultramarina. A breve trecho se constata que o apelo da Geografia – a Europa das Comunidades – é, de longe, mais atraente do que o apelo da História – a África da guerra sem fim. É na Europa que, cada vez mais, se situa a maior parte dos portugueses que um dia saíram da metrópole para ganhar a vida. A presença de emigrantes portugueses nos países da CEE suplanta, em muito, a dos que se encontram radicados nos territórios africanos. No plano comercial, as estatísticas da época são elucidativas: enquanto em 1960 ascendia a 25% o valor das exportações portuguesas para o ultramar, em 1973 já não representa mais do que 15%.
12 Não surpreende, portanto, que, após a revolução de 25 de Abril de 1974, com a emancipação das parcelas ultramarinas portuguesas, a grande justificação para a aliança com a potência naval dominante perca a sua principal razão de ser. Quase ao mesmo tempo, caem nos dois países os regimes ditatoriais que os afastavam da convivência europeia. De imediato, as vicissitudes próprias das grandes mudanças impedem os dois povos de viver em comunhão a reconquista da liberdade, mantendo-se, à superfície, sinais iniludíveis de uma acrimónia de tipo familiar, fomentada, ao longo de séculos, pelos detentores do poder político. O historiador espanhol Rafael Valladares resumiu, assim, essa absurda atitude: El balance se tradujo en un distanciamiento emocional entre los pueblos español y portugués que, sin demasiadas razones que lo justificaran, fue impuesto por los respectivos gobiernos para ayudarles a legitimar sus, también, respectivos fracasos. [...] En Portugal, el anti-españolismo cultural derivó en político, mientras que en España la mirada hacia Lisboa se tiñó de la típica arrogancia que todo país débil desarrolla frente a un vecino que aún se lo parece más.
13    Virada a página ultramarina da nossa história, Portugal volve o olhar para leste. Mas não apenas para Castela. Os modernos meios de comunicação permitem aos portugueses, agora, estender os seus horizontes bem para além da cadeia pirenaica. A adesão à CEE (depois União Europeia), em Janeiro de 1986, juntamente com a Espanha, tira todo o sentido à disputa sobre o iberismo – pelo menos na sua forma tradicional. O certo é que um sentimento nacionalista e conservador se mantém vivo em Portugal, numa postura vigilante que sempre dá acordo de si quando as oportunidades surgem. Na tradição do antifrancesismo do início do século XIX e do anticomunismo do Estado Novo, o anti-espanholismo é a prescrição conservadora dos nossos dias. A integração dos dois países ibéricos na Comunidade Económica Europeia/União Europeia, se, de certa forma, afasta a possibilidade da anexação, sem dúvida que favorece uma certa absorção, resultante do maior poderio espanhol. Trata-se, agora – afirmam os mais alarmados –, de dominação económica, mais do que de dominação política sentido restrito. Aproveitando este cenário, os alertas contra o “perigo espanhol” não se fazem esperar. Esta espécie de cruzada – que não corresponde exactamente ao típico anti-espanholismo popular, mas que o alimenta – é, como fora a sua contrária, marcadamente elitista, e tem vindo a ligar-se, nos últimos anos, a sectores importantes do mundo empresarial português. Em Espanha, a patriótica movimentação não passa despercebida: La reciente llegada de la derecha al poder en Portugal ha desatado el resurgimiento del nacionalismo más tradicional y patriotero resucitando los anacrónicos fantasmas de la invasión castellana y un rebrote del antiespañolismo. Dirigentes políticos, empresarios, banqueros y columnistas han lanzado en los últimos días diversos ataques contra empresas e intereses españoles ante la supuesta amenaza de la pérdida de soberanía e independencia de Portugal.
14    Paradoxalmente – ou talvez não –, vamos encontrar entre esses notáveis patriotas quem tenha vendido a empresas e bancos espanhóis as suas posições em instituições congéneres portuguesas. Aspiram, agora, a um favorecimento do governo português nos processos de privatização que se seguem, para, alegadamente, manter em mãos portuguesas o que designam por “centros de decisão económica”. «Ora, se há centros de decisão que seria perigoso passarem para mãos estrangeiras» replica Francisco Sarsfield Cabral, «a solução é nacionalizar, ou manter nacionalizadas, as empresas em causa».
15    Embora se não possa estabelecer uma regra, os portugueses anti-iberistas são, hoje-por-hoje, maioritariamente atlantistas. Os iberistas – se é que ainda os há, no sentido idealista do final do século XIX – são, sobretudo, os partidários mais ardentes da integração europeia, onde tendem a ver a Espanha como uma aliada do grupo dos países do sul. É, a nosso ver, inelutável que uma certa forma de integração ibérica, menos formal e mais económica do que política, seja o preço natural da integração europeia. E importa recordar, uma vez mais, que uma política de cooperação com Espanha foi praticável no passado (séculos XV e XVI), correspondendo a períodos de grandeza e prosperidade. Nessa óptica, há que saudar as posições oficiais do Estado espanhol relativamente às relações com Portugal, de que relevamos a seguinte passagem do discurso do Rei Juan Carlos, na ocorrência da sua visita a Portugal, em Maio de 1989: Nuestros dos países se encuentran situados en la periferia geográfica de Europa y por ello obligados a aprovechar las oportunidades que ambos tenemos “cerca de casa”, si se me permite la expresión. Tenemos, pues, necesidad el uno del otro. España desea un Portugal próspero y fuerte, de la misma manera que a Portugal debe convenirle la existencia de una España vecina, dinámica y desarrollada económicamente. Por incoherencias de nuestra historia pasada, las regiones españolas y portuguesas situadas a ambos lados de la frontera se han contado durante mucho tiempo entre las más atrasadas de Europa. El responder a las aspiraciones seculares de las regiones fronterizas, es quizás el desafío mayor a que deben hacer frente ambos países en esta nueva etapa: aspiraciones legítimas a una vida mejor, a una participación mayor en la riqueza nacional, y de manera inmediata a mejores y más rápidas comunicaciones.
16   De realçar, comovidamente, o simbolismo de que se revestiu a homenagem que o Rei Juan Carlos fez questão de prestar, na mesma solene ocasião, ao Soldado Desconhecido, deslocando-se, para o efeito, ao Mosteiro da Batalha. Nesse retorno de um monarca espanhol ao local onde se travou a emblemática batalha de Aljubarrota, brilhou, sobremaneira, um inspirado gesto de reconciliação e um hábil contributo para o exorcizar dos fantasmas de antanho. Os vínculos afectivos e culturais que ligam o soberano à nossa terra foram, seguramente, os dinamizadores de tão prudente atitude. Rei carismático, com o coração genuinamente dividido entre as duas pátrias, seria a figura ideal para corporizar uma desejável mentalidade renovadora, onde a palavra cooperação possa superar todos os chavões geradores de medos e ressentimentos.

1 FRANCISCO PI Y MARGALL, Las nacionalidades, p. 74.
2 GUILHERME MONIZ BARRETO, A Situação Geral da Europa, In Revista de Portugal, Vol. IV, p. 95.
3 ANTÓNIO SARDINHA, A Aliança Peninsular, p. XLV.
4 Ibidem, p. XXXI. 5 HIPÓLITO DE LA TORRE GÓMEZ, Do “Perigo Espanhol” à Amizade Peninsular, p. 11.
6  Citado por JOÃO MEDINA, História de Portugal, vol. XII, p. 330.
7 CLAUDIO SÁNCHEZ-ALBORNOZ, España, Un enigma histórico, p. 1143. 3
8 HIPÓLITO DE LA TORRE GÓMEZ, Do “Perigo Espanhol” à Amizade Peninsular, p. 12.
9 OLIVEIRA SALAZAR, Discursos e Notas Políticas, Vol. II, pp. 131-132. Sublinhado nosso.
10 FRANCO NOGUEIRA, Juízo final, p. 157. 4
11 JUAN CARLOS JIMÉNEZ – MANUEL LOFF, Problemas históricos de la relación luso-española, In HIPÓLITO DE LA TORRE GÓMEZ, España y Portugal – Siglos IX-XX – Vivencias históricas, p. 369.
 12 SILVA LOPES, A Economia Portuguesa desde 1960, p. 20.
13 RAFAEL VALLADARES, Ibidem, p. 59
14 El País, 26-05-2002.
15 Diário de Notícias, 29-10-2002.
16 Proferido, no Palácio da Ajuda, em 15 de Maio de 1989.

Texto gentilmente cedido pela Embaixada de Espanha.

David Martelo – 2003

Como as abóboras


Autênticos fenómenos, de que se falava dantes, como coisas descomunais em dimensão, sobretudo, foi um mito criado por uma figura pública do Entroncamento desejosa de promover a sua terra. Houve abóboras e couves e outros legumes com fotos adequadas, que nos punham de boca aberta. João Miguel Tavares recupera o mito, mas em termos de grandeza abstracta – um avolumar de afirmações provavelmente falsas para eliminar responsabilidades, como essa do caso de Tancos transformada pelos interessados, e veiculada por um jornal responsável, em algo que nunca existiu: «Tancos é o novo fenómeno do Entroncamento».
Mas o seu segundo texto «Receita para pôr a extrema-direita a crescer» pode alinhar na mesma designação, como fenómeno de grandeza hiperbólica, porque se trata igualmente de acusações veiculadas pela opinião pública sobre o encaixe de enquadramentos toscos, à direita ou à esquerda, conforme os pontos de vista dos veiculadores. Ambos os textos são bem denunciadores de uma extremamente desenvolta capacidade reflexiva de João Miguel Tavares, que não alinha, contudo, na sua designação de “fenómeno do Entroncamento”, porque é efectiva e de se admirar e ler com prazer, pela agudeza de observação e ironia severa:
1- Tancos é o novo fenómeno do Entroncamento
O caso de Tancos deixa assim os campos político e militar para entrar nos domínios da parapsicologia.
26 de Setembro de 2017
Por favor, substituam o hino nacional pela banda sonora da série Twilight Zone: Portugal entrou na Quinta Dimensão. O Expresso divulgou um misterioso relatório dos “serviços de informações militares” sobre Tancos que tece violentas críticas ao ministro da Defesa e onde se alinham dez cenários sobre os possíveis responsáveis pelo roubo. Ou melhor: nove cenários sobre assaltantes e um sobre a inexistência de assalto, atribuindo-o (e cito) a uma “encenação de militares descontentes por não terem passado à reserva”. Como se não bastasse mais esta subida de degrau no patamar da irrealidade, eis que no dia em que a notícia é publicada o próprio António Costa vem afirmar desconhecer em “absoluto” tal relatório, e que ele não foi produzido por “nenhum organismo oficial do Estado português”.
O caso de Tancos deixa assim os campos político e militar para entrar nos domínios da parapsicologia. Há quinze dias, o ministro da Defesa disse que se calhar o assalto não existiu. Há dois dias, o primeiro-ministro disse que o relatório não existe. O Exército garantiu que o seu Centro de Informações e Segurança Militar (CISMIL) nunca produziu tal relatório. O Expresso afirmou que nunca disse que o relatório era do CISMIL. E, de repente, eis Tancos reeditado – basta substituir os foguetes anti-tanque por um relatório secreto e estamos no mesmo nível de ignorância e de absurdo. Desta vez – triste originalidade – com a cumplicidade do mais prestigiado semanário português, que tem culpas no cartório. Não porque o relatório não seja notícia. Mas porque a notícia é outra.
Expliquemo-nos. Que o Exército está num estado lastimável, já percebemos. Que o ministro da Defesa é o cúmulo da incompetência, estamos carecas de saber. Que o primeiro-ministro anda a empurrar as conclusões sobre Tancos para as calendas, parece bastante óbvio. Mas, até por tudo isto, dava jeito que o jornalismo não enveredasse pelo mesmo caminho de silêncios e de histórias mal contadas, e fosse mais eficaz a dar explicações. O Expresso apresentou o relatório como “um documento secreto elaborado pelos serviços de informações militares”, que “teve como destinatários a Unidade Nacional de Contra-terrorismo da Polícia Judiciária e os Serviços de Informação e Segurança (SIS)”. Se o relatório não é do CISMIL, convinha que o Expresso, ao ser desmentido, dissesse claramente de onde provém – coisa que não fez na sua alegada clarificação. Claro que o governo também sabe e não diz, mas neste caso não é sua obrigação dizer. Se o relatório não é do CISMIL, nem do SIS, sobra o SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa), mas que não pode ser classificado como um “serviço de informação militar”. Em que é que ficamos, então? Há por aí secretas desconhecidas?
O jornalismo português abusa, e muito, das fontes anónimas. Convém não inventar agora o “relatório anónimo”. Não há relatórios anónimos. Uma coisa é um jornalista não divulgar a fonte que dá os documentos. Outra coisa é não dizer claramente que documentos são esses, quem os fez e quem os encomendou. A verdadeira notícia do Expresso não é, pois, a existência de um relatório bizarro que concorre com Marques Mendes ao nível do comentário político. É o facto de entre os militares haver, como bem se vê, quem ande a conspirar fervorosamente para demitir Azeredo Lopes. Deus sabe como é nobre essa missão. Só que não compete aos jornalistas alimentarem-na com base em notícias obscuras.
2- Receita para pôr a extrema-direita a crescer
Um dia destes, só se uma pessoa for de extrema-esquerda é que não é de extrema-direita.
28 de Setembro de 2017,
Sabem qual é a melhor forma de pôr a extrema-direita a crescer? É alargar tanto o conceito de extrema-direita que cada vez mais pessoas cabem lá dentro. A receita está disponível em qualquer jornal. Todos os que acabaram de votar AfD, na Alemanha, são de extrema-direita. Todos os que votaram UKIP, no Reino Unido, são de extrema-direita – e os que votaram "Brexit" andam lá perto. Votar em Donald Trump? Só mesmo se alguém for doido ou de extrema-direita – palavras, aliás, sinónimas. Votar André Ventura em Loures? Naturalmente, um eleitor de extrema-direita. Achar que há problemas com a integração da comunidade cigana em Portugal? Extrema-direita. Excesso de islamização na Europa? Extrema-direita. Controlo apertado das fronteiras? Extrema-direita. Falhanço do multiculturalismo? Extrema-direita.
Um dia destes, só se uma pessoa for de extrema-esquerda é que não é de extrema-direita. Se acham que exagero, atentem neste texto publicado no DN de segunda-feira, após as eleições alemãs. O artigo chamava-se “Como a AfD (Alternative for Germany : German: Alternative für Deutschland, AfD)  passou de partido de universitários a partido populista” e procurava explicar esse verdadeiro saco de gatos que é a Aliança para a Alemanha (AfD), grande vencedora das legislativas de domingo. A certa altura, lia-se isto: “o essencial do seu programa, mantendo os temas iniciais, assenta em tópicos clássicos entre os partidos de extrema-direita, como a negação às alterações climáticas, a oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por aquelas”. Como podem verificar, se a minha lista inicial pecou por alguma coisa não foi por excesso, mas por defeito. Segundo o DN, negar o aquecimento global já é um “tópico clássico de extrema-direita”, e ser contra o casamento gay e a adopção por casais homossexuais também – o que basicamente inclui toda a gente que siga o Catecismo da Igreja Católica. Quem pode admirar-se que a extrema-direita esteja a crescer por esse mundo fora?
A frase do DN é absurda, claro, mas extraordinariamente clarificadora: ela demonstra que todos aqueles que hoje em dia não partilham da agenda progressista deixaram de ser classificados como conservadores, para passarem a ser militantes de extrema-direita. Também não parece mais possível ser-se nacionalista sem se ser xenófobo. As consequências desta postura são trágicas: ao empurrar tanta gente para o campo da extrema-direita, aquilo que se está a fazer é criar um muro – afinal, “não se dialoga com fascistas” – que impede qualquer tentativa séria de compreender os sentimentos e as preocupações de milhões de pessoas. Quem vota "Brexit", ou Donald Trump, ou AfD só pode estar mal informado ou ser malformado.

Sendo eu liberal e europeísta, não tenho qualquer simpatia pela AfD. Contudo, num país que recebeu 1,3 milhões de refugiados desde 2015, não me parece que um discurso anti-imigração seja necessariamente xenófobo. A AfD cresceu graças aos votos da CDU, sim, mas também do SPD e da esquerda do Die Linke. E uma das suas líderes mais destacadas, Alice Weidel, é uma lésbica de 38 anos que vive na Suíça com uma mulher que nasceu no Sri Lanka – um curto-circuito simultâneo na homofobia, na xenofobia e no isolacionismo. Mas será que isso nos faz parar dois minutos para tentar compreender coisa tão estranha? Claro que não. Com os depósitos de empatia no zero, saca-se do carimbo da extrema-direita e vai tudo a eito. A Afd, tal como Trump, não se recomenda – mas demonizar os seus eleitores é uma completa patetice.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A redacção do Bruno

Retomo o tema do Fox. Porque o último dia de vida do Fox foi vivido muito intensamente cá em casa, com o Fox prostrado, mas ladrando, não em ampla voz de dor, mas em percucientes sons talvez de um mimo antigo. Passara a noite a chamar a atenção para ele, para as suas dores de um ser a desfazer-se, a querer a companhia de quem tinha a obrigação de lhe proporcionar a vida calma de antes. A pena por ele e o receio de incomodar os vizinhos mantinha-nos alerta em torno dele, mudando as roupas que a incontinência por várias vezes sujara. Pôs-se, pela primeira vez, o problema da eutanásia, como a mãe do Bruno lhe explicou que disso se tratara, quando à noite criou o seu texto. Acompanhei os estudos do Bruno, como sempre, à tarde, mas assim que soube que a médica viria cá a casa às seis horas, acobardei-me e fugi, para onde a Ângela pouco depois me encontrou, para a bica das nossas ficções de bem-estar.
Mas o Bruno quis assistir, como conta no seu texto, apesar do pedido insistente para vir comigo.  O Bruno é, de facto, um bom menino, embora teimoso. Fraco estudante, mas sedutor no seu sorriso e no seu discurso um pouco infantil, de quem não se sabe ainda defender das cruezas que a vida lhe poderá reservar – o nosso medo. 
O ter-se apercebido de que o Fox estava no fim da sua vida, pô-lo em estado de choque, falando na sua tristeza e querendo assistir à sua morte, contra o nosso desejo. Falou numa redacção que iria fazer nessa noite ao Fox, para ler aos colegas na aula de Português e achou que eu devia escrever um livro sobre o Fox, ou uns versos apenas. Quando hoje me leu a sua redacção, a Mafalda, que estava cá em casa, ouviu e chorou. Parece que o Bruno lhe tinha telefonado, e também à Beatriz, na véspera, pondo-as a chorar com pena do Fox.
Mas hoje não houve tempo para ler na aula, parece que vai ler amanhã a sua redacção, acompanhada duma fotografia do Fox que me pediu, para mostrar aos colegas e à sua professora. Eu também fiz ontem a minha redacção, de homenagem ao Fox. Mas ao ler a do Bruno senti quanto ele era esse bom menino, de sentimentos generosos e de coração amplo e simples, que os dois parágrafos finais do seu texto retratam, e senti-me feliz: «O Fox há de estar sempre no meu coração como no da minha grande família. Que ele esteja sempre em paz, em descanso, e que pense sempre em nós
Parabéns, Bruno, pela tua linda redacção! Eu penso do Fox o mesmo que tu. Que ele pense sempre em nós e sobretudo seja, para ti e os teus primos, uma fada benfazeja que vos proteja.

O FOX
O Fox era um cão muito dócil, muito calmo, esperto e manso.
Quando ele era bebé eu estava na barriga da minha mãe. Quando eu nasci ele estava na casa dos meus avós, eu comecei a brincar com ele, a fazer-lhe festas e a atirar a bola.
Acompanhei-o a passear com ele todos os dias quando eu era pequeno, quando eu entrei na primária não o via sempre, só aos domingos é que eu o via.
O Fox no ano passado fez 15 anos, o que equivale a 105 anos.
As pernas de trás do Fox nestes últimos dias paralisaram, ou seja, morreram e ele sofria muito.
Hoje, 27/9/2017, ele teve de levar 4 injeções, até perder todos os sentidos. Morreu à minha frente e eu chorei imenso.
O Fox há de estar sempre no meu coração como no da minha grande família.
Que ele esteja sempre em paz, em descanso, e que pense sempre em nós.

Bruno Salvador.


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Fox



Quando o Bruno nasceu, o Fox já tinha cinco meses e onze dias, podia considerar-se um cãozinho mimado, que fora oferecido ao Luís e à Ângela, logo adaptado ao colo meigo do dono, que nele escondia as próprias fragilidades de sonhador, num mundo que o não compreendia. Mas o Bruno nasceu e o Fox passou a ocupar um espaço incompatível com as exigências requeridas por um bebé. O Fox veio para nossa casa, cãozinho livre de trela, habituado a ir logo de manhã com o meu marido, à papelaria comprar o jornal, e ao café, esperar que o novo dono o lesse. Foi um cão vivo e feliz, habituado aos espaços e correrias da casa antiga, mas facilmente se adaptando aos espaços mais exíguos desta, a idade ganhando em discrição e sossego. Julgo que nunca se esqueceu de que o Luís fora o primeiro a dar-lhe mimo, mas com o meu marido ia várias vezes lá fora, satisfazer os seus desejos de ar e movimento. Fazia dezasseis anos em Outubro, mas não chegou lá, ultimamente tendo de tomar os remédios para um corpo velho e umas pernas frágeis. Não é fácil assistir ao envelhecimento de um companheiro da nossa vida, sempre meigo e inteligente, correspondendo ao aforismo tantas vezes ouvido, de que aos animais “só lhes falta falar”. Do Fox bom e meigo que respondia também ao assobio do Bruno, ficam só recordações de companheirismo e dedicação. O final, de sofrimento e aflição, é para esquecer. Morreu ontem, 27/9, fazia 16 anos em 19 de Outubro.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Um texto de marca

Um texto de marca
Inútil comentar.
Leio os comentários de professores seus admiradores e transcrevo o de Carlos Silva:
Carlos Silva
Óbidos 20.09.2017
«Cada professor devia ser reconhecido não pelo seu trabalho burocrático, quantas vezes sem saber conduzir reuniões de trabalho, alimentando a burocracia, a rotina, o veicular da informação, o desvio em relação aos assuntos da competência dos órgãos, que tornam essas reuniões enfadonhas e pouco inovadoras, criativas e interessantes. Os professores burocráticos foram promovidos a "titulares" ao contrário dos "professores-pirilampos" (que os outros não suportam ver "brilhar"), mais criativos e inovadores sobrevivem nas "zonas-sombra" da periferia. Por isso, os "critérios de promoção" e a "avaliação entre pares" deviam ser revistos em nome de maior equidade, justiça, bem-estar e de uma verdadeira autonomia (e convicção que dela emana) valorizando (pela confiança) a experiência e idade.»

À consideração dos professores do meu país
 Público, 20 de Setembro de 2017
 Santana Castilho*

Quando eu tinha cinco anos, a minha mãe dizia-me que a felicidade era a chave da vida. Quando fui para a escola, perguntaram-me o que queria ser quando fosse grande. Escrevi feliz. Então eles disseram-me que eu não tinha entendido o exercício. E eu disse-lhes que eles não entendiam a vida.” John Lennon.

Como qualquer humano explicado por Freud, somos o resultado da disputa entre o nosso “id”, vertente primária subjugada pelo instinto, o nosso “ego”, bússola de navegação pela realidade externa, e o nosso “superego”, o árbitro implacável que vigia e obriga os outros dois estádios a permanecerem entre os limites da moral vigente e a considerar os seus dilemas.

Poderemos falar de um “superego pedagógico”, que obrigue os que têm por missão orientar os seres em crescimento a não lhes dar o que não lhes deve ser dado, mesmo que imposto pelos normativos modernistas dos que mandam, prolongando a abulia e subjugando as vontades? Deverá esse “superego” atípico impedir que os professores empurrem as crianças pelos corredores da pressa e do utilitarismo, quando as deviam guiar pelos trilhos calmos do personalismo e dar-lhes tempo para terem tempo? Trilhos onde os livros tradicionais ganhem aos meios electrónicos, a memória seja uma qualidade intelectual respeitada e o silêncio cultivado como meio para nos encontrarmos connosco próprios, aprendendo que até um cabelo projecta a sua sombra.

A missão de um professor é também impulsionar e acelerar a evolução da humanidade dos seus alunos, tornando-os mais sensíveis, ensinando-os a distinguir a verdade da mentira, a justiça da injustiça, a humildade da vaidade, a bondade da inveja. O desiderato de um professor é também ter alunos que prefiram uma derrota com honra a uma vitória com trapaça, que escolham a gentileza à brutalidade, que prefiram ouvir a gritar, que saibam que chorar é próprio de quem sofre, não diminui e, quando acontece, só engrandece. A obrigação de um professor é também ensinar aos seus alunos que só aquece aquilo que se consome, que a falta de uma só trave pode tombar todo um sistema, que é mais difícil fazer o que o coração dita que o que os outros esperam, que é impossível tocar uma nuvem mantendo os pés no chão, que são os erros e as esperanças desfeitas que ajudam a crescer e que, citando Confúcio, “não poderão mudar o vento mas poderão ajustar as velas do barco para chegarem onde quiserem”.

Na Escola não vivemos ao Deus-dará. Vivemos ao Governo-dará, em situação de permanente experiência, conforme o lado donde sopra o vento, sem ponderar impactos, sem avaliar as políticas ou com avaliações pré-ordenadas para que os resultados sejam os pré-decididos. Na Escola permitimos que as teorias sobre a formação de “capital humano” capturem as teorias sobre o funcionamento da educação integral, expulsando as artes e as humanidades. Na Escola vivemos obrigados por leis verga-carácter, constantemente alteradas e interpretadas segundo a conveniência do legislador, esquecendo o dever que nos assiste: não calar! E calamos. E desistimos. E pactuamos. Pactuamos com insanos que se julgam profetas e tomam decisões em nosso nome.
Eu sei que a complacência produz amigos e a franqueza pode gerar ódios. Mas exponho-me, com o que sinto. Se queremos resolver e não apenas discutir os problemas da nossa profissão, temos que começar por tomar consciência de que fomos convertidos em proletários mal pagos, ao serviço de senhores que não têm que fazer prova nem de saber, nem de coerência, muito menos de ética, para mandar. Quando a nossa indignação for maior que o nosso medo, então sim, discutiremos razões em vezes de colocações. E viveremos, como os outros portugueses, sem pânico de nos desmembrarem a família em cada ano que começa.
Aldous Huxley escreveu algures que a ditadura perfeita teria a aparência da democracia. Que seria um sistema de escravatura onde os escravos teriam amor à sua escravidão. No início deste ano escolar, abraço os professores do meu país e ouso sugerir-lhes que pensem no que acabo de escrever.
Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)


terça-feira, 26 de setembro de 2017

Um caso gritante silenciado q.b.


Não assim tanto, afinal. Falou-se até largamente no comandante da protecção nacional que se demitiu do cargo depois de um desastre para todos os efeitos descomandado em tão larga escala que incrimina todo um país de preconceito – da doutorice custe o que custar, com ou sem repercussão nas capacidades exigidas para o cargo a ocupar. O artigo de João Miguel Tavares o denuncia com firmeza, como um grito de alerta e de vergonha nacional, trazendo à baila as extraordinárias “Novas Oportunidades” de ascensão em grau académico sem os necessários estudos, implantadas nos tempos de Sócrates e as exigências de licenciatura, qualquer que fosse, para ocupar determinados cargos. Repito todo o seu final que tanto nos incrimina – como, aliás, todo o meritório artigo de João Miguel Tavares de 16/9, que tem por título «As licenciaturas honoris causa e a obsessão do sotôr»:
«Vale a pena citar o primeiro ponto do Artigo 22 do Decreto-lei 73/2013 (sucessor de uma lei mais antiga, que estabelecia uma transição de dez anos nesta área), acerca das regras de recrutamento para a Protecção Civil: “O recrutamento do comandante operacional nacional e do segundo comandante operacional nacional, dos adjuntos operacionais nacionais, dos comandantes operacionais de agrupamento distrital, dos comandantes operacionais distritais, dos segundos comandantes operacionais distritais é feito de entre indivíduos que possuam licenciatura e experiência funcional adequadas ao exercício daquelas funções.” Mesmo com “experiência funcional”, o resultado é óbvio: um licenciado em Estudos Asiáticos com três meses a segurar uma mangueira pode ser comandante da Protecção Civil; um não-licenciado com décadas de experiência não pode. A aplicação da lei ainda foi atrasada três anos, por obrigar ao afastamento de muitos operacionais experientes. Mas entrou finalmente em vigor em Janeiro, com a substituição de 19 comandantes distritais e os resultados que se conhecem. O licenciado Rui Esteves — nova ironia — foi um dos principais responsáveis por esse trabalho. Tal como no totobola, a culpa merece uma tripla: é de Rui Esteves; é do Politécnico de Castelo Branco, que lhe concedeu a licenciatura; e é também de um Estado que estimula a falcatrua através de leis insensatas.»

As licenciaturas honoris causa e a obsessão do sotôr
Chegou a vez de o comandante nacional da Protecção Civil ser apanhado com uma licenciatura de abrir o pacote e juntar água.
João Miguel Tavares
Púlico,16 de Setembro de 2017
Os doutoramentos honoris causa existem em todo o mundo. As licenciaturas honoris causa só existem em Portugal. Depois de José Sócrates, depois de Armando Vara, depois de Miguel Relvas, eis que chegou a vez de o comandante nacional da Protecção Civil ser apanhado na posse de uma licenciatura de abrir o pacote e juntar água. Rui Esteves já se demitiu, para infelicidade do próprio e felicidade do Governo, que queria correr com ele depois do desastre de Pedrógão. É uma ironia muito portuguesa: em vez de ter sido demitido pelos erros cometidos a fazer o seu trabalho, demitiu-se por causa dos erros cometidos a fazer a licenciatura de que precisava para trabalhar.
Há duas dimensões diferentes neste problema, ambas lamentáveis. A primeira é a trafulhice académica. Durante muitos anos, o espírito Novas Oportunidades andou à solta pelo país, e tirar uma licenciatura tornou-se mais fácil do que tirar a carta de condução. Desde que o aluno tivesse “conhecimentos”, bastava-lhe assistir a duas aulas, pedir três dúzias de equivalências com base na “experiência profissional”, fazer uma oral distendida com um professor amigo, entregar um par de “projectos”, e já estava. O trabalho intelectual era substituído pelo trabalho administrativo. Foi assim que estabelecimentos manhosos andaram a ganhar a vida durante anos a fio, aproveitando a expansão do ensino superior para expandir as fronteiras da cunha, essa grandiosa especialidade nacional.
Só que há uma outra especialidade nacional, e não menos grandiosaa parolice do canudo e a necessidade de todos sermos doutores, mesmo em áreas em que a experiência no terreno é infinitamente mais importante do que o cálculo integral ou as curvas de titulação. Esta é a segunda dimensão do problema. Tristemente, a lei portuguesa passou a exigir, no domínio da protecção civil, que as dezenas de comandantes operacionais do país possuíssem uma licenciatura. Notem: não uma licenciatura em Protecção Civil, que garantisse o profissionalismo de uma área fundamental de intervenção do Estadouma licenciatura qualquer.
Vale a pena citar o primeiro ponto do Artigo 22 do Decreto-lei 73/2013 (sucessor de uma lei mais antiga, que estabelecia uma transição de dez anos nesta área), acerca das regras de recrutamento para a Protecção Civil: “O recrutamento do comandante operacional nacional e do segundo comandante operacional nacional, dos adjuntos operacionais nacionais, dos comandantes operacionais de agrupamento distrital, dos comandantes operacionais distritais, dos segundos comandantes operacionais distritais é feito de entre indivíduos que possuam licenciatura e experiência funcional adequadas ao exercício daquelas funções.” Mesmo com “experiência funcional”, o resultado é óbvio: um licenciado em Estudos Asiáticos com três meses a segurar uma mangueira pode ser comandante da Protecção Civil; um não-licenciado com décadas de experiência não pode. A aplicação da lei ainda foi atrasada três anos, por obrigar ao afastamento de muitos operacionais experientes. Mas entrou finalmente em vigor em Janeiro, com a substituição de 19 comandantes distritais e os resultados que se conhecem. O licenciado Rui Esteves — nova ironia — foi um dos principais responsáveis por esse trabalho. Tal como no totobola, a culpa merece uma tripla: é de Rui Esteves; é do Politécnico de Castelo Branco, que lhe concedeu a licenciatura; e é também de um Estado que estimula a falcatrua através de leis insensatas.


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Porquê a Catalunha?


Mais um artigo de um jovem bem formado, com os pés assentes no chão, e conhecedor do pretenso direito dos povos à autodeterminação, para isso, segundo ele, lhes bastando agarrar na caneta e votar.
Eu já ouvira isso em tempos, quando se berrava sobre os direitos dos povos colonizados, e sempre vira na questão um poderoso e eficaz esquema de malandrice e cinismo, dado que a autodeterminação, na minha tímida opinião, só poderia ser atribuível a pessoas com algum esclarecimento e luzes de entendimento no aparo da caneta, sem o que seriam presa fácil de governantes ambiciosos e sem escrúpulos como se veria, no nosso caso de colonizadores de longa data, com Moçambique, após a autodeterminação, ou antes, a independência, porque aquela outra não existiu, ficando Moçambique, à la longue, reduzido à condição de um dos mais pobres países do mundo e o povo de Angola sujeito a um governante megalómano, esquecido do seu povo, etc, etc, e apenas entregue ao seu próprio proveito, esquecido da efemeridade deste mundo.
 Nunca imaginara que a “nobre Espanha, como cabeça ali de Europa toda” fosse tão pouco coesa e tão pouco patriótica – apesar do separatismo basco e talvez também do galego – e gerasse em si povos tão indiscretamente antipatriotas. É como se, por aqui, o Alentejo da minha’alma, ou qualquer dos nossos outros compartimentos territoriais, decidisse erguer a sua própria bandeira em luta contra a das quinas, a pretexto de não lhe interessar mais ser celeiro da nação, com os seus trigos ou com as suas rolhas. Sempre acreditei no sentimento que une cada nação, chamado patriotismo, mesmo que este se revele apenas pelo fervor de vitória em termos futebolísticos, sendo a ausência dele, hoje, substituída pelo de amor pela humanidade, como coisa de jovens megalómanos, incapazes, contudo de amar seja o que for, tirante os prazeres do corpo.
Não, não entendo as ânsias separatistas numa nação coesa que me habituei a respeitar no seu todo, e essas ambições do povo catalão à independência parecem-me pura traição a um ideal nacionalista, válido como outro qualquer.
A nossa independência portuguesa é de raiz, dos tempos em que começámos como condado e tivemos um condezinho ambicioso a lutar por um reino, além de outras lutas posteriores, com gente corajosa metida ao barulho e ao amor pela sua pátria. Não se trata de um país como Espanha, de união forjada ao longo dos tempos, que numa altura de uniões e coesões, como esta europeia, decide esfrangalhar-se sem decoro.
Por isso discordo de João Miguel Tavares, que aqui se me afigura apenas estouvado e pretensiosamente buscador de uma aura progressista, desejoso de, em função do seu ideal democrático, de afirmação indispensável hoje em dia para quem se preze, aparentar liberdade em relação ao preconceito, e, na realidade, estando preso a outros valores de um conhecimento recente, que fazem que despreze essa coisa da bandeira, trocando-a por uma caneta, possibilitando a alternativa de ser ou não rasgada essa bandeira.
Por amor dos seus filhos – de J. M. T - e de todos os filhos nossos, ou netos ou bisnetos, eu desejaria que a bandeira nacional espanhola não fosse rasgada. Discordo, pois, do povo catalão que quer rasgar a bandeira dando um pontapé na sua pátria, pátria do mio Cid, de Don Quixote ou de Sancho Pança, de tão risonha ou sensível expressão artística, com o flamenco e o salero da mulher sevilhana, mais o Museu do Prado e os Goyas e Dalis, e o Concerto de Aranjuez que nos penetra a alma de suavidade e profundeza, mais o museu do Prado e o Escorial, nomes que enchem a boca e o coração, de sonoridade e orgulho…
Como se pode deixar de amar um todo que nos definiu no mundo, e propor um referendo idiota de consulta ao povo sobre se quer ser independente ou não?! O povo não é sereno, deixa-se levar pelas palavras sonoras de gente ambiciosa que quer dividir para poder reinar também e lamber da gamela. Sem escrúpulos.

Deixem a Catalunha decidir o seu destino
Nenhuma democracia deve impedir os seus cidadãos de exercerem o mais básico dos direitos: pegar numa caneta e votar.
João Miguel Tavares
Público, 23 de setembro de 2017
Todas as críticas em relação à forma como o referendo sobre a independência da Catalunha foi convocado são justas, tal como é justo considerar que os partidos pró-independência estão a apostar na violência das autoridades espanholas para conseguirem nas ruas aquilo que possivelmente não conseguiriam nas urnas. Ainda assim, apesar de todos os abusos e de todo o radicalismo, a intransigência de Madrid tem como consequência uma acusação difícil de refutar: os catalães estão a ser impedidos de votar e decidir o seu próprio destino.
Todos conhecemos a objecção jurídica a um referendo: não é Madrid que o impede, mas a Constituição espanhola. Certo. Só que essa foi a justificação utilizada para proibir e combater todos os movimentos independentistas durante os séculos XIX e XX. Hoje em dia, a utilidade política desse argumento é nula, e só convence quem já está convencido. É próprio de qualquer Constituição defender a integridade territorial do país. Mas se nenhuma parte de um território puder algum dia sonhar em ser independente, dado esse desejo ser invariavelmente inconstitucional, a única alternativa que resta é o recurso à violência — porque só através da violência a independência poderá algum dia ser alcançada. É isso que os espanhóis desejam que venha a acontecer na Catalunha?
De um lado, está a Constituição espanhola. Do outro, o direito — que é suposto ser universal — à autodeterminação. O que temos na Catalunha são dois direitos fundamentais em conflito. Para evitar o recurso à força, eles só podem ser geridos politicamente, e não através de acórdãos do Tribunal Constitucional, que está naturalmente obrigado a defender uma Constituição que impede a independência da Catalunha. Se a Constituição espanhola não autoriza as comunidades autónomas a referendarem questões relacionadas com a soberania nacional, a única solução constitucionalmente aceitável seria mudar a Constituição, ou então convocar todo o povo espanhol para decidir se os catalães têm ou não direito à sua independência. O que significa que a única solução é uma não-solução — seria como referendar se o tio milionário deve continuar a fazer parte da família.
Embora o governo espanhol tenha a força da lei do seu lado, não há como extirpar de um habitante do século XXI a convicção do seu direito à autodeterminação. As leis são bonitas e muito úteis, mas não resolvem todos os problemas da existência humana. Juridicamente, Olivença é portuguesa. Só que existe esta chatice: os seus habitantes preferem ser espanhóis. Estará alguém interessado em invadir Olivença com uma G3 na mão direita e a acta do Congresso de Viena de 1815 na mão esquerda? Não é nos cartapácios de Direito que se encontram soluções mágicas para os impasses políticos.
Tenho perfeita consciência de todos os problemas que uma hipotética separação da Catalunha iria provocar, desde a proliferação do separatismo pela Europa fora à afirmação de um perigosíssimo egoísmo regional, típico das regiões ricas que querem dizer adeus às regiões pobres. Contudo, previamente a todas estas considerações, é minha convicção profunda que um país consiste num conjunto de pessoas que deseja permanecer junta, seja por razões sentimentais, históricas, sociais ou culturais. Espanha não pode reter a Catalunha contra a sua vontade. E, sobretudo, nenhuma democracia deve impedir os seus cidadãos de exercerem o mais básico dos direitos: pegar numa caneta e votar.


domingo, 24 de setembro de 2017

Um tema inverosímil


Alberto Gonçalves faz dele humor, Pedro Vaz Patto explica. Parece que podemos sossegar, mas com um Bloco de Esquerda tão ansioso de notoriedade, baseada não na reflexão e estudo mas no vistoso da sensibilite feita de chavões mundanos, que tanto atraem o populacho afeito ao alarido da fofoquice social, nunca se sabe até quando estes piolhos ficarão passeando-se pelas nossas costuras, a atirar, teimosamente, as suas propostas abstrusas, para o desequilíbrio e a idiotia do povo que nele vota. Só mesmo nós, mansos de riso alvar, para os considerarmos, como o Vaqueiro da peça de Gil Vicente elogiando o palácio do rei, onde o futuro D. João III acabara de nascer, mas aí até se compreendia, num Portugal de esplendor comercial, por passageiro que fosse. O mal foi que o riso alvar apenso ao “olhar como um boi para o palácio” se manteve, mudando embora de dimensão, a causa dele, reduzida ao exibicionismo de uma modernidade tendenciosa, se, não, criminosa.

Já não existe Natureza, abre-se o reino do desejo
22/9/2017
Para a “ideologia do género” este será uma escolha independente do sexo de nascença e não haverá modelos de família (homossexual ou heterossexual) de referência, antes, uma indistinta parentalidade.
Quando se estudava o regime político do Reino Unido e se queria acentuar o parlamentarismo que o caracteriza, era habitual dizer: «O Parlamento pode fazer tudo, exceto transformar um homem numa mulher». Para além do exagero da afirmação, quanto à extensão dos poderes de qualquer legislador, o exemplo já não serve hoje, desde que a “ideologia do género” foi penetrando na ordem jurídica de vários países. Entre nós, desde a entrada em vigor da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, pode ser registado como homem ou mulher quem não tenha as características biológicas respetivas, mas que como tal se identifique pela sua auto-perceção subjetiva.
Para a “ideologia do género”, que o Papa emérito Bento XVI designou como “revolução antropológica” contrária ao legado judaico-cristão e de outras culturas tradicionais, o género será uma escolha independente do sexo de nascença e não haverá modelos de família (homossexual ou heterossexual) de referência, como não serão modelos de referência a paternidade e a maternidade (antes, uma indistinta parentalidade). Para qualquer destes âmbitos, os dados biológicos relativos à diferença e complementaridade dos sexos serão irrelevantes.
Agora, pretende-se dar mais uns passos no sentido da penetração dessa ideologia na ordem jurídica portuguesa, através dos projetos em discussão na Assembleia da República (uma proposta de lei do Governo e projectos de lei do Bloco de Esquerda e do P.A.N.), relativos ao «direito de auto-determinação da identidade de género». Todos eles dispensam, para a mudança de identificação de género no registo civil, a apresentação, exigida pela lei vigente, de um diagnóstico médico de transexualidade, bastando a vontade do próprio. A proposta do Governo reduz para dezasseis anos a idade mínima para requerer essa mudança. O projeto do Bloco de Esquerda prevê a possibilidade de um menor (sem fixar qualquer idade mínima) requerer essa mudança contra a vontade dos representantes legais (que são quase sempre os pais) e com autorização judicial. O projeto do P.A.N. permite que esse requerimento seja formulado por um menor (também sem fixar idade mínima) através dos seus representantes legais ou do Ministério Público. A proposta do Governo prevê, por outro lado, a possibilidade de cirurgias de reatribuição de sexo em menores, em caso de diagnóstico de transexualidade, com autorização dos representantes legais.
O projeto do Bloco de Esquerda segue a tendência norte-americana que tem dado origem à chamada WC War, fonte de polémicas que inundam os tribunais. Determina que serão «adotadas as medidas necessárias que permitam, em qualquer situação que implique o alojamento ou a utilização de instalações públicas destinadas a um determinado género, o acesso ao equipamento que corresponda ao género autodeterminado da pessoa». As polémicas norte-americanas surgem porque tal política pretende sobrepor um desejo de afirmação da “identidade de género” à salvaguarda de privacidade e segurança que justifica a separação por sexos de casas de banho, balneários e dormitórios.
O projeto do Bloco de Esquerda consagra o direito de qualquer pessoa ser tratada pelas outras, em qualquer contexto, de acordo com o género com que se identifica, para além do que conste do registo civil. E impõe (tal como a proposta do Governo) diretrizes nesse sentido especialmente destinadas às instituições de ensino, públicas e privadas. O que significa impor a todos os ditames próprios da “ideologia do género”, com as consequentes limitações da liberdade de expressão de um pensamento que possa ser contrário a tais ditames.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida emitiu três pareceres sobre estes projetos. Com uma unanimidade pouco frequente neste tipo de questões, este órgão de composição pluralista pronunciou-se pela reprovação ética dos mesmos.
Afirma o parecer relativo à proposta do Governo que esta (o que também se verifica em relação aos restantes projetos), por dispensar qualquer atestado médico para a mudança de identificação no registo civil, «ignora a existência de pessoas afetadas por perturbações mentais, que se manifestam por convicções delirantes de transformação sexual, nas quais a autodeterminação está coartada ou mais ou menos comprometida. A questão suscitada é tão-somente esta: quem distingue, quando e como, os transexuais primários, detentores da plena convicção de pertencerem ao sexo oposto, daqueles outros, reféns de uma crença delirante ou de uma outra condição patológica (transexuais secundários), que procuram alcançar o mesmo desiderato, ou seja, mudar de sexo e nome? Ora, afigura-se inaceitável que esta questão, pelos riscos que envolve, possa ser resolvida mediante a simples apreciação do Conservador do Registo Civil (…). Tornar o registo civil um ato de natureza privada em que cada um, no exercício de uma liberdade absoluta, registasse a sua identidade de género quando entendesse, tornaria este registo como algo da esfera privada de cada pessoa, afastado da natural vivência pública onde todos estamos inseridos. Do mesmo modo, o estabelecimento de uma liberdade absoluta do registo de género de cada pessoa tornaria impossível um reconhecimento público da identidade de cada cidadão. Em diversos setores da nossa sociedade, como no sistema de saúde, na educação, nos sistemas da segurança e da defesa do Estado, a simples e imprescindível identificação de uma pessoa poderia ficar comprometida.(…)»
Quanto à questão dos menores, afirma esse parecer que «o adolescente de 16 anos não está ainda em situação de exercer o direito de autodeterminação mas tão-só no patamar da elaboração cognitiva e sensitiva que o levará a essa compreensão, para posterior e oportuna decisão.»
A oposição ao projeto do Bloco de Esquerda é sintetizada, no parecer a ele relativo, nestes termos (nalguma medida também aplicáveis aos restantes projetos): « a) interpreta o “reconhecimento da identidade e/ou expressão de género” como “livre autodeterminação do género”, autonomizando esse conceito do conceito de sexo, e a essa interpretação atribui, sem sustentação jurídico-constitucional suficiente, valor de “direito humano fundamental”; b) remete para um exercício simples de vontade individual o ato de identificação pessoal no registo civil, desconsiderando a sua natureza pública, com todas as consequências daí advenientes, em termos de certeza e de segurança jurídicas; c) confere aos menores de 16 anos o acesso universal à autodeterminação de género, como expressão de vontade autónoma, sem acautelar ponderadamente questões associadas ao seu próprio processo de maturação e desenvolvimento neuro-psíquico e advogando a possibilidade de litígio judicial contra os progenitores, no exercício das responsabilidades parentais; d) garante o direito ao livre acesso ao SNS para efeitos de tratamentos farmacológicos e para realização de procedimentos cirúrgicos que têm efeitos irreversíveis, sem a existência de um quadro clínico que configure apropriadamente as condições da intervenção terapêutica a realizar.»
As alterações propostas inserem-se, assim, numa agenda de afirmação ideológica. Uma ideologia que se afirma contra a realidade mais evidente, como se o legislador, na sua arbitrária omnipotência, pudesse contrariar essa realidade (se os factos contrariam a ideologia, «tanto pior para os factos»). Afirma o filósofo francês François-Xavier Bellamy a propósito de questão análoga: «Já não existe natureza, abre-se o reino do desejo».
Sobre a “ideologia do género” afirma a carta pastoral da Conferência Episcopal portuguesa de 14 de março de 2013:
«Reflete um subjetivismo relativista levado ao extremo, negando o significado da realidade objetiva. Nega a verdade como algo que não pode ser construído, mas nos é dado e por nós descoberto e recebido. Recusa a moral como uma ordem objetiva de que não podemos dispor. Rejeita o significado do corpo: a pessoa não seria uma unidade incindível, espiritual e corpórea, mas um espírito que tem um corpo a ela extrínseco, disponível e manipulável. Contradiz a natureza como dado a acolher e respeitar. Contraria uma certa forma de ecologia humana, chocante numa época em que tanto se exalta a necessidade de respeito pela harmonia pré-estabelecida subjacente ao equilíbrio ecológico ambiental. Dissocia a procriação da união entre um homem e uma mulher e, portanto, da relacionalidade pessoal, em que o filho é acolhido como um dom, tornando-a objeto de um direito de afirmação individual: o “direito” à parentalidade. (…) É certo que a pessoa humana não é só natureza, mas é também cultura. E também é certo que a lei natural não se confunde com a lei biológica. Mas os dados biológicos objetivos contêm um sentido e apontam para um desígnio da criação que a inteligência pode descobrir como algo que a antecede e se lhe impõe e não como algo que se pode manipular arbitrariamente. A pessoa humana é um espírito encarnado numa unidade bio-psico-social. Não é só corpo, mas é também corpo. As dimensões corporal e espiritual devem harmonizar-se, sem oposição. Do mesmo modo, também as dimensões natural e cultural. A cultura vai para além da natureza, mas não se lhe deve opor, como se dela tivesse que se libertar.»
Dir-se-á que todas estas considerações revelam insensibilidade perante o sofrimento das pessoas que se sentem de um género diferente do sexo de nascença e que poderão ver minorado esse seu sofrimento se forem reconhecidas pelo género com que se identificam. Mas não é frutuoso o amor que sacrifica a verdade, mascarando ilusoriamente a realidade. São muitos os casos de pessoas que se arrependem de cirurgias de reatribuição do sexo (veja-se o sítio www.sexchangeregret.com), uma mudança com consequências irreversíveis e que acaba por ser ilusória, dada a dimensão genética do sexo, que é obviamente inalterável. O psiquiatra Paul Mc Hugh afirma que essas práticas mascaram e exacerbam o problema da “disforia de género”, sem o resolver, e que delas resultam apenas homens efeminados e mulheres masculinizadas, e não quaisquer verdadeiras mudanças de sexo. Via mais sensata será a da psicoterapia que conduza à harmonia entre a perceção subjetiva e as características biológicas (porque a pessoa nunca deixará de ser uma unidade que integra um corpo na sua integridade). Uma via que, também por razões ideológicas, se pretende proibir, como se proíbem terapias tendentes à mudança de orientação sexual não desejada.
Quanto às crianças e adolescentes, o American College of Pediatricians(ver www.acpeds.org) considera que práticas como cirurgias de reatribuição de sexo, ou o bloqueio da evolução pubertária (que também se advoga em nome do respeito pela “identidade de género”) constituem uma «perigosa experiência de engenharia social», «baseada na ideologia e não na ciência», salientando que a grande maioria de casos de “disforia de género” em menores são superados com o normal crescimento, sendo que o bloqueio da evolução pubertária acarreta graves e irreversíveis danos.
O amor na verdade (caritas in veritate) – é o que se deve exigir para enfrentar estas situações.    Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

2 - AUTÁRQUICAS 2017 É por estas e por outras que nunca votei nas “autárquicas”
OBSERVADOR, 23/9/2017
De Norte a Sul, larguíssimas centenas de criaturas decidem publicitar na berma da estrada os seus inestimáveis préstimos em prol do bem colectivo. Como potencial usufrutuário dessas benesses, eu passo.
Há dias, durante conversa enfadonha, descobri não saber quem é o presidente da câmara do município onde vivo desde que nasci. Suspeito tratar-se de um homem e, talvez, de um socialista. Porém, sinceramente ignoro se é novo ou velho, não o identificaria num alinhamento da polícia e não conseguiria acertar em qualquer dos seus nomes mesmo que me oferecessem cinco milhões de euros (não ofereceram).
E isto nada tem a ver com Matosinhos, o município em causa: de seguida reflecti dois minutos e concluí, com certa surpresa, que o meu desconhecimento do “star system” autárquico se estende a Portugal inteiro. Tenho ideia de que Rui Moreira preside ao Porto e de que um misterioso sujeito chamado Medina, anda, ao que me dizem, a cavar buracos em Lisboa. E só. No resto do país, o universo do dito “poder local” é para mim um nevoeiro de figuras indistintas, que penduram péssimas gravatas para aparecer a sorrir atrás de governantes igualmente baços ou do prof. Marcelo. E que, de quatro em quatro anos, penduram cartazes extraordinários a enaltecer as próprias virtudes.
Os cartazes, e o portentoso aroma a Terceiro Mundo que a maioria dos ditos exala, são, no que me diz respeito, quase o único aviso de que as eleições autárquicas se aproximam. De Norte a Sul, larguíssimas centenas de criaturas decidem publicitar na berma da estrada os seus inestimáveis (ou seja, que nenhum indivíduo são é capaz de estimar) préstimos em prol do bem colectivo. Enquanto potencial usufrutuário de tais benesses, eu passo. Passo pelos cartazes e passo, com maior rapidez, pelos abundantes debates televisivos, nos quais bandos de anónimos (para mim, insisto) discutem bicicletas, “inclusão” e “progresso sustentável”. Julgo que até os antigos maias exibiam métodos de tortura menos cruéis.
Aqui chegado, é se calhar redundante confessar que não voto nas “autárquicas”. Nunca votei. Nunca estive sequer indeciso quanto ao exercício do dever cívico, que no meu particular entendimento implica cívica e obviamente em ficar em casa. De que me valeria optar por A em detrimento de B, C, D, E e F se A, B, C, D e E tentam convencer o povo através de promessas de aeroportos, estações de TGV a cada porta ou 600 km de ciclovias? E se F se dedica a alucinações ainda mais destrambelhadas? Antigamente, as aldeias possuíam o seu maluquinho oficial. Hoje, as campanhas das “autárquicas” indiciam que os maluquinhos são inúmeros e concorrem todos a cargos políticos.
Em abono da verdade, convém notar que, após as eleições, esses transtornos emocionais cedem lugar à realidade. Infelizmente, a realidade não é muito melhor. Para A, B, C, D e E (F, entretanto, foi internado), consiste na edificação de pavilhões inúteis, no patrocínio de “certames” (inevitavelmente “patentes” nos pavilhões), na “implantação” de rotundas, em encomendas de obras “artísticas” (entulho para enfeitar as rotundas) e nas gerais maravilhas do serviço público, consubstanciadas nos trinta e sete meses que a junta demora a remendar um canteiro. Sobretudo as autarquias existem para providenciar um salário aos autarcas, uns favores aos compinchas que ajudaram a eleger os autarcas e uns empregos à quantidade de munícipes suficiente para, em teoria, assegurar a reeleição dos autarcas.
A fim de sustentar estas vitais manigâncias, as autarquias cobram impostos, de que não consigo fugir excepto para a cadeia ou as Caraíbas. Em suma, pago os impostos, necessários à sobrevivência das instituições necessárias à cobrança dos impostos. Mas imaginar-se que, de brinde, legitimaria o saque com o meu Domingo e o meu voto já é forçar a nota. Por regra, esqueço-me simplesmente de que é dia de eleições e faço o que me apetece. Por sorte, este ano a CNE e o governo resolveram condicionar os horários do futebol e, de modo inadvertido, sugerir-me um programa de ocupação dos tempos livres. É aproveitar, que o tempo começa a ser pouco. E a liberdade também.
Nota de rodapé:
Uma destas noites, sonhei que levava a Natalie Portman a jantar fora. Guardo os pormenores comigo. Na noite seguinte, sonhei que, por insondáveis processos, assistia a uma reunião do comité central do Bloco de Esquerda, onde um@ dúzi@ de sujeit@s pessimamente lavad@s escolhia a medida mais “fracturante” e demente a impor ao parlamento, perdão, ao governo, perdão, ao país. Partilho os pormenores convosco.
— E se, dizia um@, criminalizássemos o uso de bikini na praia, por discriminação das muçulmanas que, no usufruto da sua liberdade, desejam banhar-se tapadas até ao cocuruto?
— Acho pouco, dizia outr@. E se, além disso, obrigássemos toda a gente a vestir “burkini”, a fim de prevenir a desigualdade de género?
— Nem pensar, já que essa atitude pressupõe o género apenas binário, claramente um constrangimento fascista.
— Exacto! Temos de inserir a não-binaridade no debate!
— Claro que sim. Até o Facebook, que é americano, logo fascista, inventariou 56 géneros.
— Significa então que precisamos de estipular 56 vestuários de praia?
— E 56 lavabos nos cafés das imediações?
— No mínimo!
— E com multas pesadas para os recalcitrantes!
— O que quer dizer recalcitrantes?
— Depois vês, mas pergunto-me se fará sentido discutir um tema tão pertinente fora da época balnear.
— Pois, é quase Outubro… Mas então vamos discutir o quê?
— Talvez a mudança de sexo das crianças ou assim…
— Isso, isso. Vamos obrigá-las todas a mudar para o oposto!
— E qual é o oposto de cada um dos 56 géneros?
— É pá, não compliques…
— E se algumas crianças não aceitarem mudar coisa nenhuma?
— É porque são vítimas de uma socialização retrógrada.
— E fascista, não te esqueças.
— Desculpem: e fascista.
— Não levem a mal, mas não há hipóteses de as crianças não quererem mudar de sexo?
— Criança não tem querer!
— E se apenas permitíssemos que as crianças decidissem?
— Só permitir não tem piada…
— E se proibíssemos os pais de opinar a propósito?
— Isso sim, é falar!
— E se os pais que discordarem forem processados?
— Pelos próprios filhos? Espectacular!
— Ficamos então por aqui: os putos transformam-se na Guida Scarlatty aos 16 anos e os paizinhos calam-se.
— E os outros 54 géneros?
— Agora não chateies, pá… Já viste as horas?
— Desculpem. Fui um bocado fascista.
— Pois foste, mas já passou. Não se esqueçam que para a semana vamos debater a legalização
do casamento com moluscos.
— Excelente. Quantos géneros têm os moluscos?
— Vai chatear o Camões… Tenho de me despachar para apanhar o miúdo na escola.
— O miúdo não quer mudar de sexo?
— Levava um estaladão…
— Um fascista, é o que tu és.