terça-feira, 31 de outubro de 2017

O maior cancro


Parece-me muito lúcido o artigo seguinte, de Rui Ramos, sobre as políticas sucessivas de desprezo pelo interior do país que culminaram nos incêndios e mortes de gente e de gados, em arrepiantes demonstrações de incapacidade e impotência de um país lançado aos bichos, apesar dos discursos ocos da demagogia governativa, ou talvez antes como consequência desses.
E, todavia, não quero crer no absurdo de tanta indigência mental de uma política que abandona os terrenos da agricultura e a pesca, em vez de desenvolver o interior do país com o apelo a uma industrialização enriquecedora, acompanhando o progresso agrícola e piscícola, mau grado as estradas que se construíram para esse efeito, ou talvez antes para o comodismo das tendências turísticas da nossa preguiça nacional.
Mas os governos não têm culpa de todo o falhanço, são muitos os responsáveis pelo empobrecimento do país, pela fraudulência dos desvios desses dinheiros emprestados para engrandecer o país e que afinal o apoucaram e emporcalharam. Veremos o que se segue. Eles aí andam, os senhores que apoucaram o país de tanta impotência sempre, até na aplicação da justiça, empeçados nos nós das urdiduras que as tentativas de modernização geram sempre nos becos sem saída das nossas falcatruas.

Ninguém vai salvar o “país rural”
27/10/2017
A pretexto da floresta, o governo vai tornar a vida ainda mais difícil às populações rurais. A Idade Média foi o tempo dos povoadores. Vivemos agora no tempo dos despovoadores.

Parece que os incêndios tiveram o efeito das antigas campanhas publicitárias que prometiam “um Portugal desconhecido que espera por si”. Esse Portugal é o “país rural”, que a oligarquia se propõe agora salvar. Desculpem se não consigo ver aqui as políticas de um Estado funcional, mas apenas o palavreado leviano de um regime demagógico.
A partir dos anos 50, a tecnocracia nacional, ainda instalada na ditadura salazarista, mas já a pensar na integração europeia, convenceu-se de que a “província”, tal como o “ultramar”, só tinha desvantagens. As colónias de África eram uma fonte de guerra e isolamento diplomático, e o interior do país, um viveiro de famílias pobres, a deprimir as estatísticas. Pior: África e a província eram as âncoras do salazarismo. Desenvolver e democratizar Portugal pressupunha, portanto, trocar a África pela Europa, e a província pelas cidades do litoral. Foi o que aconteceu, no caso do interior do país por meio da emigração e do desmantelamento europeu do proteccionismo agrícola e industrial. Nos vales e montanhas da província, a população rareou e envelheceu. O território, embora atravessado por vias rápidas, foi abandonado a um matagal pomposamente designado por “floresta”. O desnível de riqueza acentuou-se: o PIB da Área Metropolitana de Lisboa representa 110% da média da UE, mas o do Norte só equivale a 64%, o do Centro, a 68% e o do Alentejo, a 73%.
Durante décadas, as rotundas do “poder autárquico” maquilharam o declínio do “Portugal profundo”. Miguel Torga foi o porta-voz literário desse país “telúrico”, oposto a “Lisboa”. Acontece que a capital, apesar da localização dos ministérios, nem por isso foi poupada. Antes dos turistas e da nova lei das rendas, largas manchas da cidade chegaram a ser uma massa suja de prédios a ruir, lojas esvaziadas pelos centros comerciais da periferia, e bairros tão desertificados e envelhecidos como as aldeias serranas. Nem faltavam os incêndios, como o do Chiado em 1988.
Porquê? Porque também os bairros de Lisboa estavam associados à pobreza e aos constrangimentos que despejavam as aldeias. O Portugal de hoje resultou de uma enorme deslocação de população à procura de melhor vida – melhor vida que não estava nas montanhas, nem, até há pouco tempo, no centro histórico da capital.
Vai agora ser diferente? Não basta mais uma “reforma da floresta”, tal como nunca bastou mais uma citação “telúrica” de Torga. O mato português é um vasto cemitério de reformas florestais. O “país rural” precisa de gente: mais gente, e gente com meios e liberdade para investir. Ora, a pretexto da prevenção dos fogos, o governo prepara-se para dificultar ainda mais a vida no sertão do país. Não é de espantar. À oligarquia repugna tudo o que signifique menos controle e menos impostos, isto é, menos lugares para a clientela. Em Lisboa, a liberalização e o turismo começaram a recuperar a cidade, mas a maioria social-comunista já só fala em congelar, taxar e dissuadir — talvez ainda chegue à proibição neo-zelandeza de vender casas a estrangeiros. Para a província, António Costa lembrou-se de restaurar o antigo regime colonial das culturas obrigatórias, privando os nativos do rendimento dos eucaliptos, e ameaçando-as de expropriação. O pretexto é a “floresta”, a alcatifa verde que o citadino vê deslizar à volta quando passa na autoestrada. Mas sabemos o que a estatização valeu ao Pinhal de Leiria. O resultado, como já tanta gente previu, será um campo com ainda menos gente e, portanto, com mais fogos. A Idade Média foi o tempo dos povoadores. Vivemos agora no tempo dos despovoadores.


domingo, 29 de outubro de 2017

Não são mais instantâneos


Institucionalizaram-se. Vivemos sob os quadros permanentes de episódios como esses que Alberto Gonçalves tão alegremente descreve na sua verve corrosiva e certeira que nos sacode momentaneamente, no prazer da leitura, do torpor criado por tal statu quo da nossa rodagem diária de apatia, indignação ou indiferença perante as sequências da nossa imutabilidade, de prevaricação, acusação, miserabilismo, fado. Vicente Jorge Silva chama-nos de sonâmbulos, e também tem razão nas observações que transmite, sobre uma não premonição de catástrofe, ao nível das outras nações e da nossa, o que não se espanta, vista a nossa moleza pasmada. Espanta-nos a nossa cegueira, e António Barreto vai mais longe ainda, ao revelar, em referência ao centenário da revolução russa, a originalidade deste nosso pequeno país, único de aliança à esquerda, sempre impregnada esta do espírito implicativo contra os mais à direita, imperturbável tal esquerda, quanto à destruição do país, por ela perpetrada na paralisação grevista, de ódio entranhado e fútil, e na sua ficção de amoroso cuidado pelo povo sofredor, indiferente à divida e ao seu pagamento ao credor. E o texto elegante e severo de A. Barreto é apoiado na foto e explicações sobre a Stasi, transformada em museu de horrores, como símbolo de tudo isto.

1º TEXTO: Instantâneos de um país exótico
28/10/2017
As reacções do PS ao ralhete de Marcelo (de chamar-lhe jumento a acusá-lo de querer uma ditadura) foram as expectáveis no partido que tem Lula, Chávez e a Gorda do Frágil como exemplos de sofisticação
1. Dada a regularidade com que se indignam, é complicado mantermo-nos actualizados com as aflições dos indignados profissionais. Nos primeiros 50 ou 60 escândalos, uma pessoa ainda tenta prestar atenção ao sucedido. Após largas centenas, a tarefa mostra-se impossível – e, dado a histeria infantil normalmente em causa, escusada. Foi por isso que, em larga medida, a indignação desta semana me passou ao lado. No máximo, percebi que um juiz invocou a Bíblia e o adultério para justificar o espancamento de uma mulher. Uma tristeza? Evidentemente. À primeira vista, e por uma vez, os indignados profissionais pareciam ter razão. À segunda vista, infelizmente, não têm nenhuma.
O problema é muitos dos e das feministas agora revoltados com a coutada do macho ibérico (cito outro magistrado) são, salvo excepções, os mesmos que respondem com acusações de racismo, xenofobia aos que hesitam em considerar o islão uma religião amiga das senhoras e propensa à tolerância em geral. E, desculpem lá, não é muito coerente atacar o juiz que decreta umas atoardas sem fundamento legal e, em simultâneo, acarinhar a cultura que legalmente recomenda a lapidação pedagógica das adúlteras.
Não é coerente nem é compreensível. A menos que, como costuma acontecer, os indignados profissionais possuam critérios de avaliação variáveis de acordo com a crença/ etnia/ideologia/naturalidade/ o que calha de vítimas e carrascos. Talvez os indignados profissionais achem que as mulheres portuguesas merecem mais consideração que as muçulmanas. Talvez achem que os homens portugueses batem mal. Talvez achem que os muçulmanos batem melhor. Certo é que os indignados profissionais não parecem bater bem.
2. O sr. Sócrates é um caso. Ou inúmeros casos. Apenas numa semana, com e sem escutas, aprendemos que: 1) a Ordem do ramo não considera o sr. Sócrates engenheiro, etiqueta a que aliás meio país só recorria por galhofa; 2) uma das diversas senhoras das relações do sr. Sócrates, que como as restantes se servia do homem para fins materiais, em matéria sentimental preferia Claudino, emigrante e trabalhador da construção civil; 3) um tal prof. Domingos, autor do primeiro livro do sr. Sócrates (esta frase é estranha em qualquer contexto excepto neste), negou que a “obra” tivesse sido escrita em francês, conforme o ex-primeiro-ministro garantiu para dar “prestígio”; 4) o sr. Sócrates assinou (aqui o termo é literal) novo livro, e embora ainda se desconheça o autor, o título (“O Mal que Deploramos”) parece autobiográfico – e não é; 5) o sr. Sócrates tinha na CGD uma gestora de conta invejável e intransmissível, que lhe dispensava quantias gordas a tempo de pagar jantares e casacos Prada; 6) o sr. Sócrates não fazia ideia do dinheiro que (não) possuía, estratégia que de resto adoptou no governo da nação. Entre esquemas toscos, mentiras pegadas e restante parafernália pirotécnica típica dos fura-vidas, o sr. Sócrates construiu uma figura pública e privada que, desculpem lá, tem a sua graça. Aos que acusam o indivíduo de prosperar à custa dos outros, e provavelmente à nossa, respondo que, se calhar, valeu a pena: o abundante divertimento que o homem regularmente proporciona não podia ser gratuito. Podia, admito, ser um pouquinho mais barato. Mas de borla ninguém consegue nada (ninguém, vírgula).
3. Sobre os fogos e as vítimas dos fogos e as causas dos fogos, ouvi as explicações de centenas de especialistas e não liguei a nenhuma. Liguei à fornecida por Catarina Martins, que sem meias palavras culpou os “preceitos neoliberais” pelas tragédias. É evidente que a tese faz tanto sentido quanto responsabilizar o sr. Trump pelo violador de Telheiras, ou a Autoeuropa pelas sobremesas no Rei dos Frangos. Mas não resisto a admirar quem passa a vida a proferir insanidades só para ser aplaudida em cursos de sociologia e alas psiquiátricas. Pode-se investigar a espécie de carreira da dona Catarina, ou pegar na senhora pelos pezinhos e agitá-la com vigor, que dali não sai, nunca saiu, o esboço de uma ideia pertinente, ou sequer discutível. São anos e anos de disparates sucessivos, sem intervalos para respirar e, sobretudo, pensar. É preciso coragem. Ou lata, consoante a perspectiva. Não há embaraço ou qualquer outra forma de comedimento que impeçam a dona Catarina de enfrentar microfones e, naquele jeito pré-apoplético que celebrizou o seu antecessor, aliviar-se da coisa mais absurda que lhe atravessa a cabecinha. Uma pessoa comum teria, por assim dizer, vergonha. A dona Catarina não é uma pessoa comum: é a pessoa certa no lugar certo, embora o curso de sociologia ou a ala psiquiátrica também não fossem errados.
4. Por falta de formação adequada e interesse, não tenciono acrescentar nada à análise das “relações” entre o governo e o presidente. Limito-me a notar que, por um lado, as reacções do PS ao ralhete do prof. Marcelo (as quais oscilaram entre chamar-lhe jumento ou acusá-lo de querer implantar uma ditadura) foram as expectáveis num partido que tem Lula, Chávez e a Gorda do Frágil como exemplos de sofisticação. Por outro lado, noto ainda que no vergonhoso período que separou Pedrógão Grande do ralhete o prof. Marcelo fez o possível e mais um bocado para proteger a “entourage” do dr. Costa. E que, mesmo depois do ralhete, o abraço apertado à ministra enxotada manchou seriamente a franqueza dos abraços que, a benefício dos fotógrafos e da popularidade, o prof. Marcelo andou a distribuir pelos sobreviventes da desgraça. Ao desprezar, por estratégia ou convicção, a incúria que causou a primeira vaga de mortos, o prof. Marcelo absteve-se de impedir o desleixo criminoso na origem da segunda. É por isso que é inútil, e algo triste, o empenho de tantos em prever o futuro da famosa “estabilidade institucional”. Útil seria compreender o passado da sociedade que permite uma estabilidade assim e, sem trocadilhos, instituições assado.

2º Texto: Opinião. Novos sonâmbulos ibéricos
Vicente Jorge Silva
Público, 8/10/17
Quer os dirigentes catalães, quer os dirigentes espanhóis, foram avançando em estado de automatismo inconsciente em direcção ao precipício.
Há precisamente três anos escrevi um texto, “Os novos sonâmbulos”, publicado no Sol, que tinha como ponto de partida um dos mais importantes ensaios sobre os motivos que conduziram à Grande Guerra de 1914-18. Christopher Clark mostrava aí até que ponto os dirigentes internacionais se tinham comportado como sonâmbulos (é, aliás, o título do livro) nessa caminhada para o abismo que culminaria na maior catástrofe da história europeia antes da Grande Guerra seguinte. Ora, essa intuição genial e absolutamente certeira do sonambulismo político acabaria por revelar-se perfeitamente ajustada à análise de outros fenómenos mais recentes.
Nesse artigo de 2014Os Sonâmbulos de Clark apareciam reencarnados na crise da Ucrânia, depois de o terem sido na invasão do Iraque ou no terramoto financeiro de 2008, sem esquecer a forma como foi gerido o problema das dívidas soberanas na Europa e, em particular, o caso grego, através de uma política cega de austeridade punitiva (a que Portugal também esteve submetido).
Ora, os sonâmbulos estão hoje de regresso — se é que o não estiveram sempre, afinal — através desse caso-limite que é Trump, do “Brexit”, das ameaças de um conflito nuclear entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos ou, ultimamente, do divórcio anunciado entre a Catalunha e Espanha. Este derradeiro exemplo é, de resto, uma ilustração acabada, embora ainda relativamente benigna, da tese de Clark sobre o sonambulismo que fez desencadear a primeira Grande Guerra. Quer os dirigentes catalães, quer os dirigentes espanhóis, foram avançando em estado de automatismo inconsciente em direcção ao precipício, não cuidando do risco irreparável dos passos que davam sem poderem voltar para trás ou perder a face. Chegou-se, assim, a ultrapassar a fronteira da racionalidade, onde a paz civil parece agora dependente da capacidade de persuasão que a mobilização popular através do território espanhol e catalão conseguir afirmar contra o irremediável.
Vizinhos ibéricos, é natural que o drama catalão nos interpele, embora seja de temer a preponderância das emoções — e do empolamento dos afectos — sobre a razão. Aliás, num registo bem mais pacífico, felizmente, os recentes resultados autárquicos já precipitaram os dois partidos perdedores das eleições numa deriva de sonambulismo.
Simultaneamente refém da “geringonça” e da hora da verdade do seu inevitável declínio histórico — a que foi conseguindo sobreviver enquanto os seus congéneres europeus desapareciam do mapa —, o PCP parece perdido na encruzilhada. É um sonâmbulo incapaz de perceber que o seu agressivo ressentimento pós-eleitoral contra socialistas e bloquistas apenas reflecte o temor de encontrar-se num beco sem saída.
Já o PSD volta a defrontar-se com uma das suas cíclicas crises de identidade que têm origem nos próprios genes do partido, dividido entre uma social-democracia mítica, nunca verdadeiramente encarnada — e estando esse espaço ocupado pelo PS —, e um liberalismo sem doutrina verdadeiramente assumida. Não é por acaso que a sigla PPD/PSD continuou a ser invocada por personagens tão diversas como Santana Lopes e Alberto João Jardim, ou ainda que no deserto das ideias que hoje impera no partido já se sinta crescer, como alternativa de sobrevivência, a tentação populista. Sonâmbulo, ainda em busca de si mesmo, o PPD/PSD nunca resolveu o seu drama original de que, aliás, Sá Carneiro foi o emblemático protagonista. E as sucessivas (e calculistas) desistências na corrida à sucessão de Passos Coelho são também um reflexo desse drama original. 

3º Texto: A Revolução de Outubro em Lisboa
António Barreto
DN, 29/10/17
Não se pode dizer que tenha sido deliberado, mas a greve geral da função pública desta semana, convocada pela CGTP, com o distraído apoio do Bloco, é uma maneira de comemorar o centenário da Revolução de Outubro que agora se celebra, entre o Outubro gregoriano e o Novembro ortodoxo. É um dos mais importantes acontecimentos da história contemporânea, um dos mais sanguinários episódios do século XX e uma das mais negras páginas da história da liberdade!
Os centenários costumam ser gloriosos! Este não é o caso. Na Rússia, na China, em Cuba ou na Coreia, a passar-se alguma coisa, serão demonstrações melancólicas e pífias. Em Portugal, há uns filmes de Eisenstein na televisão, uns livros reeditados de Álvaro Cunhal e uns breves escritos de políticos portugueses ligados ao Bloco. É pouco, mas é o que há. Mais importantes são as traduções de autores de renome, Pipes, Service, Conquest, Carrère D"Encausse, Furet, Sebag Montefiore, Figes e Fitzpatrick, entre outros.
A maneira portuguesa de comemorar a grande revolução consiste bem mais na existência de um governo socialista apoiado pelo PCP e pelo Bloco. É um dos raros exemplos, talvez mesmo o único, em que colaboram três das mais antigas variedades de comunistas, trotskistas, estalinistas e maoistas. Não directamente, pois não se sentam à mesma mesa, mas através do mediador PS. As relações entre os três foram sempre venenosas e violentas. Da Catalunha a Pequim, de Coyoacán a Havana, de Hanoi à Manchúria, as relações entre estas três tendências do marxismo-leninismo foram pautadas pela extrema violência e pelo assassínio puro e simples. O facto de se encontrarem associadas ao governo socialista, ele próprio com uma tradição de hostilidade por parte daquelas espécies comunistas, é digno de atenção. O que torna este caso ainda mais curioso é a sua insignificância na política internacional. Na verdade, já quase não há estalinistas. Maoistas ainda existem em quantidade, mas na China, pois claro. E trotskistas encontram-se em extinção rápida. Na verdade, as três liturgias são quase inexistentes.
Portugal é caso único na Europa e raro no mundo. Os resultados eleitorais são fascinantes. Um pouco mais de 8% para os estalinistas do PCP; mais de 10% para os trotskistas e maoistas do Bloco; e uma coligação de ambos, separadamente, com os socialistas, constitui uma singularidade tão especial quanto um último exemplar do dodô. Como naqueles filmes do parque jurássico em que animais extintos são trazidos à vida contemporânea. A centenária revolução legou à humanidade uma formidável obra política, cultural, social e ideológica: o comunismo real. Este teve uma enorme influência nas vidas dos povos e dos Estados. Ao fim de cem anos, essa incontornável realidade do século XX jaz no "caixote do lixo da história". Desapareceram o "homem novo" e o "futuro radioso", com custos e perdas que se elevam a dezenas de milhões de mortos pela força bruta, pela fome deliberada e pela doença! E dezenas de milhões de prisões, de deportados, de execuções e de assassínios.
Portugal é um dos raros sítios do mundo onde há comunistas (estalinistas, maoistas e trotskistas) activos, reconhecidos e a exercer funções em regime democrático. Minoritários, mas, ao que dizem, com esperanças de aumentar a sua influência no governo socialista. Há dois anos que se iniciou um ensaio de participação no poder. Se esta experiência trouxesse uma verdadeira conversão dos comunistas à democracia, à Europa, aos direitos individuais, à liberdade e à iniciativa privada, Portugal assistiria a um fenómeno interessante para o nosso futuro. Se acontecesse o contrário, isto é, a conversão dos socialistas às crenças dos seus aliados e à complacência com as liberdades reduzidas, a democracia vigiada e o primado do Estado, então sim, estaríamos em presença de um acontecimento único na história dos povos e da Europa.

Visita guiada ao Museu da STASI, em Berlim
ANTÓNIO BARRETO
A Stasi (Ministério da Segurança do Estado) era, até ao derrube do Muro de Berlim, a polícia política, de informações e de espionagem da República Democrática Alemã, ou antes, da Alemanha comunista. Eram cerca de 92 mil agentes e 170 mil informadores. O seu chefe durante 35 anos foi o famigerado torcionário Erich Mielke. Hoje, a antiga sede alberga um museu onde se podem ver milhares de objectos, fotografias, fichas, equipamentos, gravações e registos da que foi uma das piores polícias do mundo moderno. Os seus requintes de malvadez incluíam uns milhões de frascos com algodão em rama que tinha sido embebido com suor dos presos (que transpiravam de medo durante os interrogatórios...). Os frascos estavam identificados e selados. Quando a polícia procurava alguém, abria o frasco, dava a cheirar aos cães especializados e lá iam buscar os pobres diabos... Nesta imagem, no átrio da entrada, à volta de uma maqueta dos edifícios, um grupo de jovens estudantes ouve as explicações dadas pela professora. 
1 
0 
0 
0


sábado, 28 de outubro de 2017

Também me lembro


Não gosto de livros “pesados”.  “O Processo” foi um desses, que li por dever de ofício, quando me encantava com a prosa amena da Simone de Beauvoir e com as peças de teatro do Sartre, cuja superioridade intelectual e liberdade de espírito me deixavam atónita e encantada por me proporcionarem vivências em que eu me revia e crescia, a admirar essa França esplendorosa de tantos escritores do meu prazer e alegria, pois, tirante um ou outro mais “charmoso” nosso, achava os nossos escritores sombrios e enfadonhos, sem a imaginação e a graça crítica de tantos escritores  franceses, quer nas peças dramáticas ou nas suas narrativas, que até mesmo um “roman fleuve” como “Les Thibault” ou o “Jean Christophe” consegui ler, na adolescência, como lia e relia os livros de Júlio Dinis, do meu afecto. Mas “O Processo” de Kafka” aterrou-me, tal como o “Big Brother” do «1984» de George Orwell, que enredava os pobres mortais numa manipulação sem tréguas, em simbologia esmagadora de um mundo absurdo, estupidamente totalitarista e vigilante, de permanente e assustadora repressão. “1984” foi um livro de predição, escrito mais de quarenta anos antes, sabemos bem como o olho assustador dos chefes e da tecnologia agarram hoje o homem e já não é só ao nível dos que comandam, a Internet desflorando a nossa reserva ou intimidade, até ao nível das nossas perturbações físicas ou psicológicas ou da medicação receitada pelos médicos, os media dando conta do resto, sobretudo nos desgraçados eleitos sociais que o jornalismo enreda para a recreação e curiosidade do público, “big” qualquer coisa, em permanente alerta coscuvilheira, não tão assustadora, todavia, e proporcionando até bem-estar espiritual, porque acompanhada de fotos esplendorosas.
Paulo Tunhas não trata, porém, do “1984” nem do “Triunfo dos Porcos”, únicos que li de George Orwell, mas das suas “Notas sobre o nacionalismo”, cuja definição, exposta por Paulo Tunhas, reduz os homens a “insectos humanos” em rixa partidária, para ironizar sobre o “nacionalismo” catalão, na ordem do dia, e todos os outros nacionalismos, apesar de ser, quanto a mim, sem preocupações filosóficas, apenas um produto de amor por um território a que tantas coisas e pessoas nos ligam, do passado e do presente.  Já José Milhazes, em «Putin não esconde ingerência na Catalunha» expõe sobre um tema de que mais articulistas trataram, no OBSERVADOR, a Catalunha estando na ordem do dia, numa independência aparentemente gorada, por agora.
São artigos de leitura enriquecida pela perspectiva filosófica, especialmente o primeiro, mas, para terminar numa perspectiva optimista, de sentimento compartilhado, transcrevo um parágrafo saudável e corajoso de um jovem estudante de Direito, que teve o desassombro de dizer o seguinte, de Passos Coelho, sem receio de represálias de nenhum Big Brother repressivo:

«A saída de cena de Pedro Passos Coelho é um enorme terramoto político. Passos é o homem que derrotou Sócrates, venceu o resgate e liderou a oposição, após chefiar dois governos. É difícil escrever-lhe um elogio que não pareça uma despedida. A verdade é que sempre me descobri na posição embaraçosa de admirar nele o que toda a gente detestava: a gravidade institucional, que sempre me pareceu mais respeitável que a política de afectos; o discurso pedagógico, feito para instruir e não para vender; a persistência teimosa, que sobrepunha a ética ao cálculo de ocasião. (in A direita do futuro, por António Pedro Barreiro. OBSERVADOR, 7/10/2017.

Nacionalismos
12/10/2017
Sem originalidade alguma, pus-me, por causa do que se passa na Catalunha, a ler e a reler George Orwell. Por causa da Catalunha e, mais ainda, por causa do nacionalismo em geral. Tinha lido há muito tempo as “Notas sobre o nacionalismo”, de 1945, que recuperam, sob a forma de ensaio, várias coisas que se encontram já nos seus escritos jornalísticos. Reler o texto Orwell, que é, para além do resto, um grande ensaísta, foi um prazer e, sob um aspecto ou outro, uma surpresa.
A surpresa vem do facto de a definição de nacionalismo que Orwell desenvolve ser declaradamente idiossincrática. Para ele, o nacionalismo significa, antes de tudo o mais, “o hábito de assumir que os seres humanos podem ser classificados como insectos” e a adesão a um grupo particular de seres humanos em oposição aos outros. O que é curioso é que tais grupos, aos olhos de Orwell, não são forçosamente as nações. Dito de outra maneira: o nacionalismo não se limita a ser, embora obviamente o possa ser, uma versão degradada do patriotismo. O nacionalismo pode ter por objecto o proletariado, o anti-semitismo, as várias religiões, e por aí adiante. A descrição dos hábitos mentais nacionalistas, governados pela obsessão do “prestígio competitivo” e pelo desejo do poder, ocupa um lugar central no ensaio. E, dada a latitude do conceito tal como Orwell o emprega, há muita coisa que o ensaio nos ajuda a pensar, para além dos fenómenos nacionalistas na sua acepção mais comum.
Claro que o motivo do prestígio competitivo tem muito a ver com o nacionalismo catalão, por exemplo. Como tem a ver com o nacionalismo catalão a obsessão de espalhar a sua própria língua em oposição às outras línguas. Ou ainda o facto de, segundo Orwell, os nacionalistas mais extremistas terem muitas vezes origens distintas das do país que se torna o objecto da sua fixação (Hitler, é claro, vem imediatamente ao espírito, tal como Estaline). Orwell chama a isto “nacionalismo transferido”. Na mesma linha, os movimentos fascistas receberam no seu seio muita gente vinda do comunismo. A necessidade absoluta de fixação permite uma deslocação de objecto, que não implica de forma alguma uma transformação dos hábitos mentais e das emoções.
Mas outros aspectos do nacionalismo, tal como Orwell o entende, aplicam-se também a casos que nada têm a ver com o nacionalismo tal como habitualmente entendido. Tomemos o exemplo da “indiferença à realidade”. Central para o nacionalismo é a convicção que o passado pode ser alterado (um tema central, como se sabe, em 1984) e que a versão que se adopta deste pode não coincidir com a informação disponível a todos mas corresponde à maneira como o passado se apresenta aos olhos de Deus. Deste modo, o mais indisputável facto pode ser negado e a indiferença para com a verdade objectiva goza do privilégio de ser total. Por exemplo: o pacto germano-soviético de 1939 não existiu, ou a defunta URSS encontrava-se virgem de qualquer campo de concentração.
Há factos que são, para o nacionalista, literalmente insuportáveis e que se trata de negar da forma mais radical possível. Pensemos no Portugal dos nossos dias, mais concretamente na vinda da troika. No discurso dos nacionalistas do PS, é como se ela não tivesse existido e não tivesse sido chamada pelo governo de Sócrates. Sócrates, de resto, apesar de toda a aparência em contrário, particularmente gritante desde ontem, parece também nunca ter existido. Seus ex-ministros e actuais ministros de Costa (e o próprio Costa, seu ex-número dois), quando obrigados a falar dele evitam pronunciar-lhe sequer o nome. A quase bancarrota socrática não teve lugar. A troika foi uma invenção de Passos Coelho, uma sua criação ex nihilo. Muito do ódio (digo bem: ódio) a Passos Coelho resulta do facto de ele, que liderou o combate à catástrofe, ser uma testemunha viva da sua existência. Para o pensamento mágico socialista, a sua substituição por outro líder do PSD era um imperativo nacionalista. Um pouco como se, queimando a efígie dele, o passado pudesse ser modificado.
Para além da descrição dos hábitos mentais nacionalistas, Orwell oferece uma sua tipologia: nacionalismo positivo, nacionalismo transferido e nacionalismo negativo. Não faria sentido estar aqui a comentá-la e por isso limito-me a mencionar um aspecto que Orwell refere e com que lida em vários outros lugares também, sobretudo em conexão com o anti-semitismo, sobre o qual muito escreveu: o facto de o nacionalismo ser uma tendência ou uma atitude mental “que existe em todas as nossas mentes e que perverte o nosso pensamento sem necessariamente ocorrer no estado puro ou operar continuamente”. O nacionalismo pode ser “intermitente e limitado”.
É interessante que o que Orwell diz coincide em larga medida com aquilo que Sartre (cujo livro sobre o anti-semitismo Orwell, noutro lugar, critica) escreve sobre a má-fé em O ser e o nada. Também a má-fé corresponde a uma disposição original do espírito que podemos observar em nós mesmos. E, tal como o nacionalismo segundo Orwell, ela é, no comum das pessoas, intermitente e limitada. Também ela visa a exclusão do outro. Em Sartre, a transformação do outro numa coisa, a sua petrificação. Também ela transforma o outro num ente que, o que quer que faça, só pode manifestar uma natureza negativa. Nos tempos do Presidente George W. Bush, contava-se uma anedota óptima. O Presidente Bush recebe o Papa e com ele dá um passeio de barco. Súbito, um golpe de vento faz voar o chapéu do Papa para a água. Bush sai do barco, caminha sobre a água, pega no chapéu e volta para o barco, caminhando de novo sobre a água. Título dos jornais do dia seguinte: “O Presidente Bush não sabe nadar”.
Muito do que Orwell diz sobre os vários nacionalismos ajuda-nos a perceber o que se passa no mundo e em Portugal, mesmo em relação aos mais recentes acontecimentos. Certamente mais do que ouvimos, por exemplo, nos programas televisivos de Marques Mendes, cada vez mais o Rui Santos do comentário político, sem as curiosas qualidades do original. Agora que o leninismo do Outubro catalão parece ter chegado a um impasse (o estudo das doutrinas do mestre e a sua aplicação cuidadosa não garantem a posse do génio dele) e, embora o perigo continue bem real, o ridículo tenha tomado conta da cena (independência fumada, mas não inalada), vale mesmo a pena ler Orwell. Porque os profissionais do costume e os idiotas eventualmente úteis continuam activos e é preciso compreender os seus hábitos mentais. Tanto mais que a propaganda não pára. É ver, por exemplo, o que a Economist, que, é verdade, tem o hábito de ser cega a muitos aspectos da realidade política, diz sobre a situação espanhola e particularmente sobre a violência policial a 1 de Outubro. Dá a impressão que nem uma só linha de Lenine lhes passou alguma vez sob os olhos. Quando nada daquilo, planeado ao milímetro, se percebe sem referência a ele. Orwell, nisto como noutras coisas, ajuda imenso.

Putin não esconde ingerência na Catalunha
OBSERVADOR, 27/10/2017
Não obstante todas as declarações em sentido contrário, é evidente que o Presidente russo tudo faz para acabar com a União Europeia ou para paralisar a sua já ineficaz política interna e externa. A ingerência da Catalunha é disso mais uma prova.
Nas palavras, a diplomacia russa defende a integridade da Espanha e a solução do estatuto da Catalunha através do diálogo, mas Vladimir Putin não recorre a “paninhos quentes” e exerce ingerência de forma ostensiva nos destinos da Península Ibérica.
“Uno de los políticos afines a Vladímir Putin, fundamental en la estrategia rusa de anexionarse territorios de antiguas repúblicas soviéticas, ha visitado Barcelona esta semana con la intención de establecer lazos entre la órbita del Kremlin y una posible Cataluña independiente, según fuentes de la inteligencia española. Dimitri Medóev, funcionario osetio afín a Moscú y ministro de facto de Exteriores de la república irredenta de Osetia del Sur estuvo de visita oficial en Cataluña lunes y martes y abrió una oficina para establecer relaciones bilaterales”, escreve o diário El País.
Embora se considere um Estado independente, a Ossétia do Sul, território georgiano ocupado pelas tropas russas em 2008, depende completamente do Kremlin e Medóev jamais tomaria uma iniciativa dessas sem ordens de Vladimir Putin. A política externa da Rússia e dos seus vassalos é prerrogativa exclusiva do dirigente russo.
Além disso, é sabido que os independentistas catalães participaram, no ano passado, num encontro de povos sem país, realizado em Moscovo.
Como já bem sendo hábito, o autocrata russo vai à história recente buscar justificações, mas utiliza meias-verdades. Vladimir Putin, numa intervenção pública recente, acusa a União Europeia de ser a principal responsável do separatismo depois de criar o antecedente do Kosovo. Porém, o líder russo ignorou ou esqueceu-se de recordar que o Governo de Madrid não reconhece a separação dessa antiga região da Jugoslávia.
O El Pais chama também a atenção para a propaganda agressiva do regime de Putin com vista a fomentar as divisões no mundo ocidental, não olhando a meios:
“En años recientes, Rusia ha invertido una gran cantidad de recursos en medios propagandísticos como RT y Sputnik y en una verdadera guerra digital en redes sociales con la que ha fomentado divisiones en las elecciones de Estados Unidos el año pasado y Francia y Alemania en este. Según publicó EL PAÍS, perfiles prorrusos con gran seguimiento en las redes sociales han compartido informaciones a favor de la independencia de Cataluña en semanas pasadas, en algunos casos haciéndose eco de noticias falsas o manipuladas”.
A necessidade da criação de meios de informação concentrados no desmascaramento de notícias falsas vindas do Kremlin é urgente, devendo a União Europeia agir nesse sentido.
Ouço alguns analistas elogiarem as grandes capacidades diplomáticas de Serguei Lavrov à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas, na realidade, não passa de uma correia de transmissão de Putin, que realiza uma política externa cada vez mais agressiva e musculada.
Tendo em conta as dimensões da Federação da Rússia, a sua diversidade étnica e os problemas internos provocados pela estagnação da economia, corrupção, etc., a política externa de Putin é verdadeiramente suicida para o seu país. Mas o dirigente russo começa a ficar com os tiques comuns a todos os ditadores, julgando-se eterno e senhor do mundo.
A Espanha é a nossa vizinha e a forma como irá ser resolvido o problema da Catalunha terá grande importância para o futuro de Portugal. Por isso, é necessário estarmos atentos aos jogos sujos de Vladimir Putin no espaço europeu.
E deixo aqui um recado aos separatistas catalães e seus apoiantes: se levarem a vossa causa avante, não se esqueçam que não ficarão sozinhos, pois a Catalunha poderá aderir à organização económica eurasiática que reúne a Rússia, a Bielorrússia e o Cazaquistão, e à qual a Ossétia do Sul também quer juntar-se.





sexta-feira, 27 de outubro de 2017

“Eu cá é a soco»


Bem longe estamos, nas responsabilidades políticas que nos cercam, de democratas assumidos, conscientes do nosso papel receptador de ideologias impondo diálogo, da visão alegremente destrutiva sobre o brio nacional, configurada na personagem Dâmaso Salcede, profundamente entalado, no desforço que Ega, o grande amigo de Carlos da Maia, vai junto dele fazer, como castigo da sua perversão, maculadora, na sombra da denúncia oculta, da honra de quem se considerara amigo, frequentador da sua sociedade, que o elevava, na penúria social que nos distinguia e Eça alegremente descreve. E transcrevo esse excerto do nosso riso perene:
«- Desdizer-me? tartamudeou o outro, empertigando-se, num penoso esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá homem que me desdiga!
- Perfeitamente, então bate-se...
Dâmaso cambaleou para traz, desvairado: - Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a soco. Que venha para cá, não tenho medo dele, arrombo-o...
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados e em riste. E queria Carlos ali para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se... E então duelos em Portugal, que acabavam sempre por troça!»
Vem o introito a propósito da tomada de posição de muitos de nós sobre as ideias independentistas que grassam na Catalunha, protagonizadas pelo seu chefe de governo, Carlos Puigdemont, e que Rui Tavares, no seu artigo de 11/10, “A nossa península já foi sábia”, pretende resolver, democraticamente, com apelo ao diálogo:
«Admiramos Espanha, embora dela não tenhamos querido fazer parte. Não somos parte interessada em que haja (ou não) independência da Catalunha. Mas somos parte interessada, como portugueses e europeus, em que a nossa península saiba ser sábia nestes momentos decisivos. Por isso temos de saber ser contidos e portadores de boa vontade. E que é ser sábio nestas circunstâncias em que há duas vontades inamovíveis e contrárias? Trata-se, é claro, de saber aproveitar todas as oportunidades para o diálogo.»
Não é esse o ponto de vista de Francisco Assis, que retrata os acontecimentos com a ponderação e o saber que lhe reconhecemos, no artigo que segue, educado, justo e sábio, que tanto nos transmite, na sua seriedade - apesar de tudo, ambígua.
Mas nestas questões de amor pátrio, que cuido que a Espanha de todos os seus merece, eu diria, como o Damasozinho Salcede, mas em desforço irado contra a impertinência independentista - apesar dos ditames condenatórios de Francisco Assis - como puro acto de má-fé: “Eu cá é a soco”.
Opinião.                Confiemos na democracia espanhola
                Francisco Assis                                                                                   Público, 12/10/17
A Espanha de hoje nada tem que ver com o período franquista, época em que predominou esse nacionalismo espanholista de má memória. Não o reconhecer constitui um acto de pura má-fé política e intelectual.
Na semana passada, numa sessão do Parlamento Europeu, vi-me obrigado a fazer uma defesa enfática da democracia espanhola. Não estava nas minhas mais longínquas cogitações proferir qualquer consideração acerca da chamada “questão catalã” enquanto parlamentar europeu - se o fiz foi por um imperativo de consciência face aos inusitados ataques que a extrema-direita e a extrema-esquerda europeias se empenhavam em desferir contra o Estado espanhol. É óbvio que há um problema na Catalunha. É um problema sério, com uma vasta ressonância histórica que expede para as peculiares circunstâncias em que se processou e consolidou a formação do moderno Estado espanhol. Se é verdade que a Catalunha nunca foi independente  - ou o foi em minúsculos lapsos temporais - também é certo que um olhar para a história de Espanha nos relembra imediatamente a importância da permanente tensão entre a vocação centralista castelhana e a vontade oposta dos aragoneses em geral e dos catalães em particular. Nós próprios, portugueses, conhecemos bem quão vasto e perigoso é o ímpeto hegemónico castelhano. É por isso natural que haja até na sociedade portuguesa uma certa simpatia pela reivindicação catalã, muito reforçada, de resto, pela ideia de que em 1640 a revolta desse povo mediterrânico acabou por ajudar à restauração da independência nacional. Essa ligação à Catalunha reforçou-se do ponto de vista dos contactos culturais no início do século XX, quando se chegou a manifestar a ideia delirante da identidade entre os dois povos, o português e o catalão. Tão excêntrico ponto de vista alicerçou-se na convicção de que só na língua catalã existiria uma palavra capaz de traduzir em toda a sua plenitude a palavra portuguesa saudade. Teixeira de Pascoaes, em polémica com António Sérgio (e não só), invocou na altura o catalão Ignasi Ribera i Rovira, grande conhecedor e amigo de Portugal, o qual afirmava peremptoriamente que a palavra catalã enyorança constituía a única tradução perfeita do nosso vocábulo “saudade”, e que este sentimento só era próprio de catalães e portugueses. Pascoaes não excluía os galegos desse conjunto, os quais considerava, porém, pertencentes ao universo cultural português. Nessa mesma época, um dos principais nomes da cultura catalã, o poeta Joan Maragall, preconizava o conceito de iberismo assente na ideia de três grandes nações peninsulares: uma atlântica, correspondente à Galiza e a Portugal, outra Castelhana e uma outra, mediterrânica, constituída pelos países catalães. Maragall preocupou-se ainda em salientar as similitudes entre os portugueses e os catalães, perspectivando-os como os dois povos dotados de uma verdadeira inclinação marítima no contexto peninsular. O já citado Ribera i Rovira foi ainda mais longe, concebendo um novo movimento cultural catalão, o enyorantism, que constituiria a versão local do saudosismo português criado por Pascoaes. Toda esta efervescência cultural ocorreu no contexto da afirmação de dois movimentos intelectuais semelhantes: a Renascença Portuguesa e a Renaixença Catalana.
É evidente que há uma grande diferença entre um país que foi consolidando a sua independência ao longo de quase nove séculos e uma região que verdadeiramente nunca garantiu essa mesma independência. Ao longo da história, em particular nos últimos dois séculos, os catalães beneficiaram das políticas proteccionistas adoptadas pelas autoridades centrais de Madrid e, mau grado algumas momentâneas exasperações nacionalistas, conviveram razoavelmente com a sua condição de parte integrante do estado espanhol. A tentativa de estabelecer no plano político qualquer paralelismo entre Portugal e a Catalunha é hoje profundamente ridícula. Abstendo-me da formulação de qualquer juízo peremptório sobre a pretensão catalã, sempre lembrarei que a mesma se tem vindo a alicerçar num discurso nacionalista construído nas últimas décadas à boleia de um autonomismo consagrado na Constituição democrático-liberal aprovada pelos espanhóis em referendo, em 1978. Esse nacionalismo não está infelizmente isento de alguma contaminação xenófoba, exclusivista e nalguns casos extremos imbuída de um discurso que apelando à genética se aproxima perigosamente das teorias racistas.
Uma vez mais não deixa de ser curioso verificar a convergência de opiniões em relação à questão catalã entre Joana Mortágua, Nigel Farage e um deputado açoriano do PPM que propôs a aprovação de uma resolução recomendando ao governo português o reconhecimento do direito da autodeterminação da Catalunha. No fundo, os três ignoram um dado elementar: o carácter profundamente democrático do Estado espanhol que resultou da Constituição de 1978. Não deixa de ser curioso verificar como a nossa festiva extrema-esquerda se extasia irrefletidamente com a mais pequena perspectiva de insubordinação civil. No seu delírio púbere e pueril projecta na reivindicação catalã a utopia de uma revolução eternamente falhada.

Estou certo de que os espanhóis acabarão por resolver pacificamente o problema catalão, para grande frustração de algumas hordas extremistas que tudo querem confundir. Foi este regime democrático saído da transição pacífica e da constituição de 78 que permitiu à Catalunha e às demais nacionalidades e regiões espanholas uma afirmação autonómica sem precedentes históricos e sem paralelo na Europa. A Espanha democrática, liberal e profundamente empenhada no projecto europeu saberá encontrar a resposta adequada a uma questão que não pode nem deve ser ignorada. O consenso alcançado entre o PP, o PSOE e os Ciudadanos aponta claramente nesse sentido. A perspectiva de uma reforma constitucional agora aberta pelo entendimento alcançado entre os dois maiores partidos espanhóis augura o surgimento de um novo modelo de organização político-territorial capaz de atender às legítimas expectativas dos próprios catalães. Confiamos na democracia espanhola, que já deu provas de saber resistir a ameaças tão sinistras como aquelas que se consubstanciaram no movimento golpista de 1981 e no hediondo terrorismo protagonizado pelos extremistas nacionalistas marxistas da ETA.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Conflitos geracionais


Agora chama-se millenial, informa Maria João Avillez, a esta geração que nasceu no milénio e que comanda o mundo na sua distracção da vida, confinada a selfies e a captação instantânea do mundo em gotas, transportado na mão e abstraído da reflexão e do contacto humano, na profusão das imagens que bastam à novel cultura de concentração isolacionista e galhofeira.  Responsável também pela investigação entrevistadora do jornalismo de praia – ou da floresta a arder – como nos traz Bagão Félix, obscena de tão destituída de valores que ultrapassem os balbucios de uma curiosidade comezinha. Mas os livros da nossa educação escolar são responsáveis também por essa penúria, ao instigarem os adolescentes a fazerem pesquisas na sua área de residência, sobre condições de vida ou outras informações condizentes com os seus programas, crianças que mal saberão ler e escrever, e que carregam nas suas mochilas montanhas de sugestões de trabalhos extra que lhes tirarão o tempo para gozarem a sua infância ou aprofundarem nos livros uma formação de seriedade e abertura mais nobre, feita, por vezes, de autêntica poluição mental – caso das doenças ou das condições de vida dos povos, dos livros de Ciências e de Geografia – profusa e insistente, em anos consecutivos, pelo apelo constante a uma reflexão moralizante, que poderá redundar, na idade adulta, em indiferença pelo outro, na concentração exclusiva do mundo próprio ou na banalidade do puro mexerico. Como o demonstram os dois excelentes exemplares de escrita - de António Bagão Félix e de Maria João Avillez, na impecabilidade da sua ponderação crítica.
I TEXTO:   Penúria televisiva em maioria absoluta
António Bagão Félix                        Público11/8/17
Porque é que veio à praia?” pergunta a jornalista – entusiasmada com tão excitante pergunta, que se lhe assaltou brilhantemente – a um banhista a atoalhar-se depois de um banho no oceano. “Acha que está calor?” questiona o jornalista pressuroso diante de duas veraneantes a apanhar banhos de sol prenhes de ultravioletas. “Está calor, sim”. E, de seguida, remata “e usa protector solar?“ ao que uma delas responde com o grau do dito, adequado para a hora da canícula em pleno Agosto, só faltando mencionar a marca respectiva. “A água está melhor do que no ano passado?” interpela a jovem estagiária com inusitada veemência, recebendo uma resposta algures entre a certeira banalidade e a banal certeza. “Costuma vir todos os anos para esta praia? é mais uma pergunta-relatório que me faz, por momentos, cortar a respiração, de tão interessante que antevejo a resposta da família Bartolomeu. “As crianças gostam de estar na praia? é a demanda que ouço a seguir, com a resposta repartida entre a mãe orgulhosa e o pai frenético e acompanhada de sonoras gargalhadas: adoram!”.Gosta de ler na praia?” a modos que querendo-se subir o nível da pergunta ao sujeito que folheava o “best-seller” acabadinho de comprar no supermercado. Entretanto, olho para o oráculo, que é como quem diz para uma de várias faixas encavalitadas na parte de baixo do ecrã, e qual é o meu espanto quando leio “a solução para o calor é um mergulho!” Por momentos, fiquei aturdido com tão sábia descoberta. No fim, fica-me a amargura de o país televisivo só ter praia…
Não, não estou a efabular. É mesmo isto que, mais palavra, menos palavra, pude ver e ouvir em alguns canais televisivos. Assim se vão fazendo os “chouriços noticiosos” de hora e meia, entressachados hora sim, hora quase sim, nos canais informativos. É um fartote, convenhamos.
Se a isto juntarmos, um alinhamento de notícias errático e indigente onde se manipula o interessamento do telespectador (aqui até me apetece escrever sem o c, conforme o AO), o futebol ad nauseam de cá e de lá, entre o que há-de ser e o que já foi, com a suprema dádiva de longas peças sobre o futebol espanhol, sem que os ingratos “hermanos” nos retribuam com um segundinho sequer do de cá, a namorada e os filhos de Cristiano Ronaldo, as imagens mil vezes repetidas de fogos para que os pirómanos se excitem quanto baste, a actualidade repetida já sem ser actualidade, e até a publicidade encapotada a telenovelas a estrear e outras coisas do género como se fossem notícias, há de tudo. Um bom filme? Um bom documentário? Sim, mas a horas não recomendáveis, alta noite ou de madrugada…
Assim se vai consolidando a estupidificação da bitola das audiências, neste triângulo de programação – salsichas noticiosas, futebol a rodos e telenovelas a todas as horas – a que se junta aos fins-de-semana o delírio da música pimba e cachopas anafadas pelo Portugal de lés-a-lés. Tudo polvilhado com o uso de um português maltratado.
O problema é que, pouco a pouco, os canais (ditos informativos) vão convergindo nesta massa informe, nivelada pelo “benchmarking” dos piores. Com a pobreza confrangedora de, à mesma hora e em todos os canais, vermos uma conferência de imprensa completamente banal de um jogador ou treinador ou mais uma discursata de um político em viagem de circum-transumância eleitoral.
Ressalvo aqui os canais da televisão pública, que, apesar desta voragem pela qual se deve obedecer acriticamente às audiências, têm vindo a melhorar. Nota-se isso na RTP 1 e 3, mas aqui destaco, sobretudo, a excelente programação da RTP 2, o único canal onde se podem ver – a horas decentes – programas de nível e de entretenimento com qualidade.»
II TEXTO: REDES SOCIAIS     -       Os conectados
Maria João Avillez                    OBSERVADOR, 24/10/2017
1. Primeiro foi uma curiosidade, hoje é um embaraço. Já me acontece hesitar quando ouço o telemóvel cor de morango: respondo? Atendo num canto onde não me vejam? O caso é que o tal aparelho remonta, mais ano menos ano, à descoberta do Brasil. Ou é como se remontasse. É antigo, conflitua gritantemente com qualquer modelo, não faz habilidades, não fala comigo, não toca música, não tira fotografias, não recebe “imagens”, não manda mails, não lê os que me mandam. O céu, em suma. “Então para que serve? “ouço continuamente. “Serve para o que eu quero que ele sirva, fazer chamadas e ouvir as que recebo”. É evidente que a preguiça, a não vontade de comprar um aparelho telefónico multiusos capaz de me ligar instantaneamente às “notícias” e num ápice a qualquer parte do mundo, ou o meu fastio face a um objecto enfeitado de factos&fotos e outras fantasias avulsas a que os seus felizes portadores chamam de “gadgets”, é em si um sinal de desfasamento com o ar do tempo. Uma dessintonia com a marca dos dias. Sucede que reconhecendo embora (e como não?) as inumeráveis vantagens do progresso tecnológico e o útil galope informático, acho que há mais vida além de estar conectado.
2. Quando entro no metro, seja manhã cedo, meio dia ou quatro da tarde, oito em cada dez pessoas estão numa relação íntima com o seu telemóvel. Íntima, ansiosa e dependente. As outras duas lêem (quase sempre um livro, raramente um jornal).
Toda a viagem, breve ou longa, se passa num misto de enlevo e exaltação (é conforme) com o que se passa dentro dos respectivos telemóveis. Estão conectadas, logo respiram. Há quem fale mil oitavas acima do seu tom normal, como se o gesto de atender um telefone catapultasse automaticamente a voz humana para descontrolados decibéis. Há quem sussurre, quem se enleve, quem se zangue, quem faça mímica sem se dar conta, quem tome a decisão da sua vida, quem comece um grande amor ou faça uma ruptura abrupta. Há quase tudo. Ou tudo, melhor dizendo. O que estranho — estranho mesmo – é a necessidade desta brutal exposição. Que irrompe como um mecânico impulso. Vemo-lo em acção (ao impulso) na rua, no autocarro, num jardim público, numa loja, no emprego, num restaurante, numa praia, na missa, na escola.
Omnipresente e convulsivo. A mera utilidade de um telefone — como um aspirador ou um frigorífico – virou um vício. Dá que pensar.
3. Deixei de poder contar o que quer que fosse, a quem quer que fosse: “já sabiam”. Tinham visto no “youtube”. Eram “amigos” ou eram eles próprios os amigos dos “amigos” (nem sequer percebo bem o que eu própria estou a escrever, tão alheio me é este mundo). Os meus netos falam-me de youtubers, bloguers, instagramers ou influencers como eu poderia falar de alguém muito próximo que fizesse parte do meu mundo privado: falam-me com intimidade e indispensabilidade. Há dias, em Londres (onde vive essa prole), uma jovem celebridade desse novo mundo atravessou uma rua ao mesmo tempo que eles. O trânsito quase parou, a celebridade tinha para cima de uma multidão de “seguidores”. Se eu já entrevira que estava fora de jogo, fiquei com a certeza.
Não caibo nessa animadíssima, poderosíssima, perigosíssima sub-cave que parece reger o mundo. As emoções rege, certamente, para não dizer as próprias vidas. Não gostaria que a minha fosse determinada, manipulada ou capturada pela sub cave. Não digo a expressão com desprezo, longe disso, ela apenas manifesta a tal estranheza face a um mundo que circula, muitas vezes anonimamente mas sempre com estarrecedora agilidade e igual avidez, por de baixo, ao lado, á roda, daquele onde me movo. E entre um — o conectado — que parece derreter de exuberante felicidade os demais seres humanos e o outro, desconectado, comedido e solitário, a distância leva-me a concluir que o erro é meu, embora eu preferisse dizer relutância. Ou seja: o “erro” chamemos-lhe assim, provém de minha (inultrapassável?) relutância em expor-me numa montra. Em ter lá lugar, ocupação,”amigos” e vida.
Deve ser isso estar fora de jogo. Deste jogo, cujos circuitos são aliás por vezes tóxicos.
4. Não faltam (taxativos) argumentos sobre as infinitas bondades e insubstituíveis vantagens da montra – para a profissão que se têm, para o negócio em mãos, para conhecer gente, fazer amigos, passar a cozinhar melhor ou aprender a dançar. Não duvido. Ainda bem. Por qualquer razão porém, nunca senti a falta da conexão non stop nem das vantagem que o estar na montra supostamente traz. Deveria interrogar-me, escrutinar-me, procurar um psicólogo? Estes desabafos serão, concedo, o cúmulo do reacionarismo. Paciência. As coisas são o que são. O meu fastio informático/tecnológico também é o que é.
5. E se cada vez mais tudo se passa vertiginosamente através dessa coisa glacial que é a superfície branca de um écran de computador ou do pequeno visor de um telemóvel, que resta do contar? Do conversar com alguém, face a face, lado a lado? Dessa coisa absolutamente formidável que é o comunicar físico, concreto? Que resta do gesto e do sorriso? Do verbo falado e não clicado? Dir-me-ão que a tecnologia não impede o “ao vivo” e eu direi que não impede porque já quase o substituiu. A vertigem de um aniquila a necessidade do outro.
Não se pode contar uma boa história, os ouvidos caíram em desuso; é quase esquisito perguntar por alguém, a resposta está no Facebook. Não se pode dar uma boa noticia — ou sequer uma noticia – contar uma história, avisar de um filme, recomendar um livro, relatar um episódio prosaico ou maravilhoso: já estão na montra. Até o prazer alegre de um reencontro com alguém que não víamos há muito é logo curto-circuitado: “não sabias? Mas pus no meu Facebook”.
6. E a “partilha”? Outro imperativo e também compulsivo. Não se chega a quase nenhum lugar hoje — seja ele de que natureza for, publico ou privado, institucional ou reservado — que não haja alguém a tirar selfies(outro tique) quase sempre com aparato e sempre com velocidade: é preciso tirá-las mas logo a seguir é imperiosamente preciso “partilhá-las”.
Uma colega espanhola que aprecio dava conta, em recente crónica, da estranheza que lhe provocara um almoço com uma jovem “millenial” (geração que nasceu com o século e acha que manda no mundo). Com desarmante franqueza a sua interlocutora garantia-lhe que de nada lhe interessava um belo pôr de sol, uma boa noticia, uma feliz viagem, uma descoberta, ou a bem dizer fosse o que fosse, se de imediato não pudesse tirar uma selfie, clicar e “partilhar” esse momento. A substância não era o momento vivido mas a sua instantânea partiha com uma plateia sem rosto e com “seguidores” sem nomes. Tudo menos guardar esse instante para si, saboreando interiormente a sua beleza ou singulariedade ou sequer comunicando-as com palavras e gestos a um qualquer alguém. Nada a fazer, está aí uma cartilha universal feita de (estupidificantes) sinais ou abreviaturas que pulverizam qualquer escrita. Mas que importância desaprender de escrever (e de pensar) ao pé de um”click”, poderoso e instantâneo? Não estamos nós conectados?
Alguns lugares públicos, hotéis, restaurantes, lojas, escaparates, montras, ateliers são hoje cuidadosamente tratados como um cenário, antes do mais. Encenados para ficar bem nas selfies. Tendo-se a sua prática tornado compulsiva e a sua necessidade visceral, há que jogar na antecipação, bolar o melhor enquadramento, apostar no melhor efeito.
Tem sido um êxito, segundo me contam.

7. Resta-me a consolação de não estar fora de jogo da cabeça. (Mesmo que possa parecer).

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O politicamente correcto da nossa subserviência


Sempre os panos quentes das designações elitistas! Sociopatas? Porque não apenas “ladrões”, e por consequência incluídos no grupo dos assaltantes vulgares, embora escondidos sob a rede dos muitos laços e volteios propícios ao esconderijo da maralha? Cá como lá, em Moçambique, cuja governação se faz no cadinho do enchimento pessoal das elites governamentais, tal como, de resto, em Angola, salvo as respectivas disparidades económicas, já que nesta, a exploração de matérias primas se iniciou mais cedo, o que teve efeitos imediatos sobre as bolsas dos seus governantes sucedâneos à descolonização. Moçambique, mais afastado e por isso mais votado ao abandono no tempo da colonização, não deixou hipóteses aos seus governantes sucessores, em termos de enchimento da própria bolsa, a não ser a partir das ajudas monetárias alheias, não das explorações de bens que os povos estrangeiros se propõem fazer por lá agora, afinal também no seu próprio proveito, que para isso serviram as descolonizações também, para o desenvolvimento económico dos povos ricos do mundo, que se apressam a pegar no que os portugueses  deixaram por fazer, mais virados então para a “Angola é nossa” da nossa proximidade.
Por cá, sem matérias primas, voltados para os dinheiros emprestados de uma União Europeia propícia, construímos, sim, e desenvolvemos, mas as construções esconderam os cambalachos da nossa “sociopatia” elitista. Daí que associe os dois textos acusadores, do “Público de 13 / 10,  pela identidade de comportamentos das respectivas chefias – o de Bárbara Reis - «O silêncio de Moçambique tem outro nome»e o de Rui Tavares - «Podemos passar pelo “caso Sócrates” sem tirar lições?».
Cá, como lá, só que lá o povo, que se pretendia desenvolver de facto, após a expulsão do branco, nada pode fazer, na humildade da sua condição, em face dos ditadores esquecidos das suas promessas da altura.

OPINIÃO
O silêncio de Moçambique tem outro nome
Este ano, até Portugal suspendeu a sua contribuição anual para o Orçamento do Estado moçambicano, uma rotina com quase 15 anos.
Bárcara Reis
Coffee break
Público13 de Outubro de 2017
No Índice da Democracia da Intelligence Unit da Economist, Timor-Leste está muito bem classificado: com apenas 15 anos de independência, é a 7ª “melhor” democracia da Ásia e 1ª no sudeste asiático. Espanta se pensarmos na corrupção, nos escândalos do sistema judicial e nas intrincadas histórias de ex-ministros acusados de fugirem à justiça, refugiando-se em Portugal. Mas ao contrário de muitos dos seus vizinhos, em Timor as campanhas eleitorais são pacíficas e os rivais políticos não se matam uns aos outros.
A fasquia é baixa, mas é o que é.
Numa lista que tem a Noruega em 1º lugar e, no fim, a Coreia do Norte em 167º, Timor está em 43º. Os critérios são discutíveis e este índice é apenas uma ferramenta, entre muitas, para olhar o mundo. Avalia os processos eleitorais e o pluralismo; o funcionamento dos governos; a participação política; a cultura política, e as liberdades cívicas — com tudo o que isso tem de subjectivo. Cabo Verde, o menino bonito da CPLP nos índices internacionais, está um degrau acima da França (é 23º). E Portugal (28º) entra no grande grupo das “flawed democracy” (democracia com falhas), tal como os EUA, e não no pequeno clube dos que têm uma “full democracy” (são 19).
Abaixo destes estão os “regimes híbridos” e os “regimes autoritários” — são 91. É aqui que está Moçambique, quase pousado na linha que separa o amarelo do vermelho.
Neste caso, não surpreende. Moçambique é um país em stand-by, onde os esquadrões da morte fazem parte do dia-a-dia e os políticos temem pela sua vida. Mahamudo Amurane, presidente do município de Nampula, o terceiro maior do país, e membro da Comissão Política Nacional do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), acaba de ser assassinado a tiro. Tinha fama de incorruptível e, dias antes do assassinato, fez um longo discurso público no qual acusou o seu próprio partido de corrupção. Em Moçambique, há deputados da Assembleia da República que têm medo de ser envenenados e que, em cerimónias públicas, não bebem nem comem nada que não seja servido a todos. Poderá ser excesso de zelo ou paranóia, mas é assim que está a democracia moçambicana.
Há um ano, a directora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, encontrou-se com o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, para discutir os “desafios económicos” do país. Isso aconteceu três meses depois de terem desaparecido dos cofres do Estado dois mil milhões de euros num complexo esquema de empréstimos escondidos. Não é gralha. Foram dois mil milhões. Na altura, Lagarde disse que Maputo tinha de fazer “esforços mais decisivos para melhorar a transparência” e exigiu que o governo colaborasse numa auditoria internacional e independente às empresas que foram financiadas por dois bancos europeus, um suíço e um russo.
Há anos que os doadores que apoiam Moçambique se queixam de nada mudar no país e, sobretudo, de não verem o mínimo esforço para tentar que algo mude. O descontentamento é tal que chegou a falar-se da “greve dos doadores”. Agora é diferente. O escândalo dos “dois bis” atirou Moçambique para um patamar nunca visto. Até Portugal suspendeu a sua contribuição anual para o Orçamento do Estado moçambicano (entre 2004 e 2015, Lisboa doou 13,28 milhões de euros nesta linha de apoio — que não inclui os apoios sectoriais na educação e saúde), em linha com o G14, que suspendeu o pagamento para 2016.
Ainda só se conhece o sumário executivo do relatório da auditoria internacional (da Kroll), mas o que lá está não é bonito de se ler. Logo na página 15, a Kroll diz que há "gaps" que impedem compreender "exactamente como é que os dois mil milhões de dólares foram gastos", mas que a diferença de preços entre os bens e serviços descritos nas facturas e os seus valores de mercado é de 713 milhões de dólares.
Moçambique está a fazer um jogo arriscado. A sua riqueza natural (petróleo, gás, carvão) precisa de investimento estrangeiro e as grandes empresas querem investir. Estão aliás com o pé na porta a marcar posição. Mas o tempo passa e Maputo parece paralisado e incapaz de agir. E, no meio de tudo isto, entre o desespero e o desnorte, não responde sequer às démarches diplomáticas de Portugal sobre o empresário português desaparecido na Beira há mais de um ano. Em 2013, dizia-se que o sol ia brilhar em Moçambique em 2017. Agora, diz-se que será em 2020. Quando lá chegarmos, falamos.


Opinião.
Podemos passar pelo “caso Sócrates” sem tirar lições?
Rui Tavares, Historiador, Fundador do Livre
Público, 13/10/17
Se o que sabemos das quatro mil páginas for verdade, não estamos num quadro de patifaria sistémica mas estaríamos sem dúvida perante um caso de banditismo de elite.
Que valem quatro mil páginas de uma acusação por corrupção e vários outros crimes ao ex-primeiro ministro José Sócrates, Ricardo Salgado do BES, vários administradores da PT e uma vintena de outros arguidos? A resposta não é a mesma consoante o ponto de vista social, jurídico ou político. Socialmente, as quatro mil páginas sedimentam uma percepção de culpa. Do ponto de vista jurídico elas só passam a valer se vier a haver uma condenação, algures na próxima década.
Do ponto de vista político, elas marcam o momento em que temos de começar a tirar lições, não sobre a culpabilidade ou não de José Sócrates, mas sobre “o caso Sócrates”. Com uma precaução: que fique muito claro que quando digo “do ponto de vista político” não me refiro à atividade político-partidária quotidiana. Refiro-me às lições de política para a nossa democracia e para a integridade do nosso sistema político.
Só vamos saber se o que está nas quatro mil páginas é verdade daqui a muitos anos. Mas se aquilo que a imprensa séria resumiu a partir das quatro mil páginas é plausível e possível, temos de deliberar e decidir sobre como proteger a sociedade — e a própria República — contra um tipo de crimes que terão lesado milhões de vítimas. Sim, milhões de vítimas. Se a acusação for verdadeira, a linha de vítimas é tão longa que vai desde os cidadãos que foram manipulados por um chefe de governo, aos contribuintes que pagaram para sanear os atos de má gestão de administradores de topo do BES, ao país que perdeu uma empresa como a PT, aos trabalhadores que estão a ser mandados para casa por uma Altice que comprou por uma ninharia o património económico que os alegados criminosos terão destruído.
Se o que sabemos das quatro mil páginas for verdade, não estamos num quadro de patifaria sistémica (para o qual teríamos de ter milhares de nomes e não uma vintena deles) mas estaríamos sem dúvida perante um caso de banditismo de elite. Levado a cabo por gente que acreditaria que as regras das pessoas normais não se aplicavam a eles, num quadro mental que não sei descrever de outra forma senão como equivalente ao de verdadeiros sociopatas, capazes de compartimentar as suas atitudes, comportamentos e círculos de informação para, basicamente, pilhar os cidadãos comuns. Nesse caso, precisamos de saber como proteger a democracia de comportamentos criminosos como estes. Porque o dano que eles podem causar não se mede só em muitíssimo dinheiro, mas em algo de ainda mais grave que é a violação do próprio pacto de convivência republicano.
De facto, mesmo que o que sabemos das quatro mil páginas não tenha sido verdade, mas seja apenas plausível, demasiadas coisas estão por fazer, porque demasiadas coisas terão possivelmente falhado. Os nossos governantes não foram suficientes escrutinados nem fiscalizados. Os conselhos de administração de empresas públicas não foram suficientes independentes nem transparentes. As pessoas que poderiam ter identificado irregularidades ou comportamentos suspeitos não estavam suficientemente protegidas para poderem denunciar em segurança. E a nossa democracia — na qual, lembre-se, alguns dos nossos concidadãos reelegeram há menos de duas semanas um autarca condenado — não está suficientemente protegida para que o dinheiro obtido criminosamente não venha no futuro a comprar poder político, mesmo no topo da hierarquia.
Sobre Sócrates e os outros acusados, só devemos querer o que é justo: que seja condenado, se for culpado; que seja absolvido, se for inocente ou não se conseguir provar a sua culpa. Sobre o caso Sócrates e aquilo que a acusação da “Operação Marquês” nos mostra ser possível ou até plausível, temos obrigação de tirar lições mais rápido.


Uno, nessuno…


Uma “História” saracoteada, a deste artigo de José Pacheco Pereira, trinta items de abordagem exemplificativa da vaidade e pequenez humanas, que o Tempo se encarregará de minimizar nos termos das contingências próprias de todas as evoluções, até mesmo as do tempo sazonal apagador de fogos ou aplainador de ventos e de inundações catastróficos.  E o “Come chocolates, pequena suja” repõe no nosso espírito a “Tabacaria” de Álvaro de Campos, na justificação de todas as relatividades.
Todavia, apesar de tudo o que exemplificou com a sua ironia, Pacheco Pereira ignorou a força avassaladora de um porvir chinês, ao que consta e já se demonstra, na invasão e assentamento das lojas chinesas de fancaria a cada esquina, uma China eficiente, profusa, blandiciosa, sorridente, disciplinada mas distante, o vendedor da loja imóvel no seu lugar, ou falando ao telefone, indiferente, seguro de que ali não será assaltado, o visor abrangendo os espaços da sua loja arrumada e a abarrotar, cada comprador trazendo reverentemente as compras ao seu balcão de que se pagará sem erros de multibanco ou de dinheiro em caixa, mudo, sereno, desprezador, superior, dono do mundo, sem fazer ondas.
É algo, isto da China avassaladora do mundo ocidental, que assenta como pesadelo no meu pensamento adorador do rincão pátrio, onde tantos nomes vão passando que o glorificaram ou não, e volto a ler o segundo texto – de João Miguel Tavares – que repõe o meu sentimento de bem-estar, no retrato – com direito a foto – de uma personalidade que nos transmite confiança ainda, no bicho-homem: o de Pedro Passos Coelho, que, todavia, nunca foi do agrado de José Pacheco Pereira, que tudo fez para o derrubar. Talvez por não ser tão culto como ele, Pacheco Pereira, Homo Sapiens este, e Passos Coelho apenas o Homo Faber prático, ou Homo apenas, nome de que deriva a Hombridade, seu apanágio.

OPINIÃO
Por que é que a história é sempre surpresa
Daqui a 20 anos nada disto estará de pé, umas vezes para melhor, mas mais provavelmente para pior.
14 de Outubro de 2017
Coloquem-se a 20 anos de distância, por volta do início do século, um átomo no curso da história, e vejam bem se era possível imaginar alguma destas coisas:
1. José Sócrates, antigo primeiro-ministro português, está acusado de mais de 30 crimes. Mesmo que sejam provados dez dos 30, irá passar muitos anos na cadeia. O que é que pensava a Pátria dele? Elegeu-o para primeiro-ministro duas vezes e condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
2. Ricardo Salgado, anteriormente conhecido como o “dono disto tudo”, está acusado de mais de 20 crimes. Mesmo que só sejam provados dez dos 20, irá passar muitos anos na cadeia. O que pensava a Pátria e o mundo dele? Tem um doutoramento honoris causa e várias condecorações nacionais e estrangeiras, muita gente tinha medo dele e ainda mais gente devia-lhe favores. Ele sabe disso.
3. Zeinal Bava, o gestor modelo, premiado com todos os prémios, apontado como exemplo à juventude tecnologicamente afoita, está acusado de cinco crimes. Mesmo que apenas metade seja provada, poderá passar vários anos na cadeia. O que pensava a Pátria dele? Tem um doutoramento honoris causa, e a Pátria condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Empresarial.
4. Henrique Granadeiro, considerado um dos grandes gestores portugueses e com uma longa carreira cívica e política, está acusado de oito crimes. Mesmo que apenas metade seja dada como provada, pode passar alguns anos na cadeia. O que pensava a Pátria dele? Bebia-lhe os vinhos e condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.
5. De Carlos Manuel Santos Silva, a Pátria não pensava nada, porque não sabia quem era. Surpresa! O homem ganhava milhões e era muito amigo de José Sócrates e nós não sabíamos.
6. Armando Vara não é exemplo para aqui chamado, porque a Pátria pensava dele o mesmo que pensa agora, mas não deixou entretanto de lhe atribuir a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
7. Portugal é governado por um governo de maioria de esquerda. Não interessa muito a fórmula, mas é uma variante de Frente Popular.
8.O PCP perdeu Almada.
9. Depois de Jerónimo de Sousa ter estabilizado o partido pós-Cunhal e pós-URSS, o PCP conhece pela primeira vez uma crise estrutural, de influência, votos, linguagem e organização. A crise não resulta da “geringonça”, bem pelo contrário. A “geringonça” adiou a crise.
10. O PSD tem menos votos em Lisboa do que o CDS.
11. Os dois maiores partidos, o PS e o PSD, são os mesmos. À sua frente estão (ou virão a estar) pessoas que era previsível terem esse futuro político já em 2000. Mas esta continuidade de forças e pessoas é mais surpreendente do que parece. Quer o que muda, quer o que não muda pode ser surpresa.
12. Existe pela primeira vez depois de 1974 uma direita extrema que não é uma extrema-direita. Os temas não são os mesmos, a linguagem não é a mesma, é elitista e, felizmente, não sabe ser populista. Pelo menos até agora. Recruta nos jovens educados, de boas famílias e maus costumes sociais.
13. O Parlamento português perdeu os seus poderes principais sem ninguém dar por ela, nem existir qualquer arremedo de protesto.
14. Portugal não tem nem política financeira própria, nem política de defesa, nem política externa. É um protectorado da União Europeia, numa altura em que a União Europeia não sabe como se proteger a si própria quanto mais os seus Estados vassalos.
15. No papel há CPLP, na realidade não há.
16. Nos suplementos culturais que ainda sobram nos jornais, há imensa cultura portuguesa. Na realidade, não há quase nada, para não dizer que não há nada. Há uma ou outra excepção nas artes de execução e performance, que dependem de personalidades, mas a criação original escasseia, para não dizer que não existe.
17. O português mais conhecido no mundo continua a ser um jogador de futebol.
18. Há cada vez mais portugueses a estudar mandarim e espanhol. Não há muitos a estudar alemão. A Pátria continua a ter apenas um olho aberto.
19. Nos EUA, o Presidente é Trump, uma personagem única. Podia encher-se esta página com qualificativos pouco amáveis, mas, até por isso, é uma boa ilustração da história como surpresa.
20. O mundo é hoje mais perigoso do que era, não porque exista um agravamento objectivo das tensões internacionais, muitas das quais já existiam há 20 anos. É muito mais perigoso porque a qualidade dos que mandam baixou significativamente. Kim Jong-un não é Kim Il-sung, nem muito menos Trump é George Bush, nem pai nem filho.
21. O Irão não é a Coreia do Norte. A Coreia do Norte é simples, difícil de lidar, mas simples. O Irão tem milhares de anos de civilização, é um país muito mais sofisticado do que se pensa, tecnologicamente mais desenvolvido, e é uma potência regional e religiosa. A Arábia Saudita sabe disso, Trump não.
22. A União Europeia não tem nenhuma direcção política. Já não há eixo franco-alemão, o Reino Unido vai sair e ninguém sabe muito bem como, e existe um caos miudinho um pouco por todo o lado.
23. Putin sabe muito bem o que quer. Isso faz uma diferença abissal de Trump, que quer apenas um espelho que nunca lhe diga que há alguém melhor do que ele.
24. A faca e o automóvel (ou o camião) são as armas preferidas do terrorismo apocalíptico.
25. O uso pelos russos da manipulação da opinião através das redes sociais e da ciberguerra é um desenvolvimento da velha técnica soviética da desinformatzia, e nesse sentido não é nem novidade nem surpresa. O que é surpresa é a dimensão do seu sucesso, como se viu nas últimas eleições nos EUA.
26. O principal reservatório do populismo moderno nos países industrializados e democráticos são as redes sociais.
27. O telefone inteligente é o device com maior capacidade de mudança na sociabilidade comum. Mudou quase tudo no espaço social das pessoas que têm dinheiro para os comprar e usar. Há uns anos pensava-se que seriam os computadores, certos aspectos da Internet, ou os robôs.
28. Há muito mais gente convencida que tem poder, quando não o tem. Esta ilusão permite formas muito eficazes de manipulação social, cultural e política.
29. Há muito mais gente ignorante, convencida que não o é, porque sabe mexer numa pequena parte das funcionalidades dos devices que usa. Aqueles que nem nessa pequena parte sabem mexer embasbacam-se com a capacidade dos outros e ajudam-nos a convencer que apenas “substituíram saberes”. Esta fractura tende a ser geracional e solidifica o crescimento da ignorância. Esta ilusão permite formas muito eficazes de manipulação social, cultural e política.
30. A História com H grande acabou, a história sem H grande está, como desde que há homens, de boa saúde e cheia de surpresas. Daqui a 20 anos nada disto estará de pé, umas vezes para melhor, mas mais provavelmente para pior. Sempre foi assim. Aproveitem enquanto dura.
OPINIÃO
2011-2015 ≠ 2005-2011
Passos Coelho fez três coisas extraordinárias como primeiro-ministro, que basicamente consistiram em não fazer coisa alguma.
14 de Outubro de 2017
Na passada segunda-feira, Fernanda Câncio escreveu um texto intitulado “Obrigada, Pedro Passos Coelho” que me provocou curiosas sensações. O texto começava assim: “Tenho lido nos últimos dias vários elogios a Passos Coelho. É normal. Compreensível que os adeptos e amigos lamentem a sua saída da liderança do PSD e mais compreensível ainda que queiram consolá-lo na derrota. Já mais difícil é aceitar o conteúdo de tais odes.” E vai daí, sustentada na sua excelente memória e na solidez da sua pesquisa, ela elencou uma longa série de erros políticos, promessas incumpridas e falhas de carácter, deixando Passos Coelho reduzido a pó. No último parágrafo, um lamento: “Lamento: não tenho prazer em zurzir em quem está de saída, mas o que é demais é demais.”
Como eu concordo que o que é demais é demais, fiquei a olhar para aquela longa lista de maldades e asneiras passistas e não encontrei forma de negá-las: a maior parte delas era, de facto, verdadeira. Passos fez tudo aquilo e cometeu todos aqueles erros. Como se justifica, então, que eu seja um dos que gostaria de o consolar na hora da derrota? Cheguei à conclusão que cada um de nós tende a valorizar em excesso as qualidades das pessoas que nos agradam, e a desvalorizar em excesso as qualidades das pessoas que nos desagradam. Desta vez, a Fernanda só viu os defeitos. Defeitos justos, com certeza, mas que não pintam o quadro todo. Por isso, faço hoje questão de sublinhar aqui as principais qualidades de Passos Coelho, não só porque elas ajudam a compreender o presente, mas também porque explicam as enormes diferenças em relação ao passado.
Passos Coelho fez três coisas extraordinárias como primeiro-ministro, que basicamente consistiram em não fazer coisa alguma. Foram três simples, mas magníficos, “nãos”. 1) Passos Coelho não se intrometeu na comunicação social. 2) Passos Coelho não se intrometeu na justiça. 3) Passos Coelho não ajudou Ricardo Salgado. Pode parecer pouca coisa a Fernanda Câncio, mas é muitíssimo. Reparem: não há aqui troika, nem liberalismo. Apenas respeito pela decência num regime democrático. Nesse campo tão importante, Passos merece os mais rasgados elogios, numa ruptura abençoada com o tenebroso arco 2005-2011.
Claro que esses “não” foram um pouco mais complexos. Enquanto Miguel Relvas esteve no governo houve intromissões na comunicação social. Mas Relvas caiu em virtude de uma falsa licenciatura, assumida numa auditoria promovida por Nuno Crato — logo aqui há um mundo de diferenças. E Miguel Poiares Maduro, que o substituiu, teve um papel fundamental na transformação da RTP, resgatando-a das mãos do governo.
No campo da justiça, Passos Coelho escolheu para procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, que merece a nossa eterna gratidão. Mais um “não” magnífico: ela não se intrometeu nas investigações. Note-se que o Ministério Público não andou atrás de socialistas — andou atrás de todos os que fossem justificadamente suspeitos. Miguel Macedo demitiu-se por causa de um processo judicial e não se ouviu um pio no PSD. Respeito total pela separação de poderes.
Finalmente, a queda de Ricardo Salgado. Duvido muito que ele não fosse amparado pelo socialista de plantão em São Bento. E isso jamais esquecerei. A longa lista de críticas que Fernanda Câncio faz a Passos Coelho é justíssima. No entanto, ela comete o erro de se focar excessivamente no acessório, ignorando tudo o que de mais importante aconteceu à sua volta