Dois artigos de Diogo Queiroz Andrade, que me
chegam sublinhados pela minha irmã, a que eu aponho a minha chancela,
naturalmente: dois textos provenientes de um pensamento claro, lúcido e isento –
sobre um lírico disforme, o tal da Coreia do Norte, sobre os líricos catalães,
movidos pelas suas alminhas protestantes, desligadas de sentimentos e de
valores outros que não sejam os que uma esquerda ecuménica preconiza com muita
bênção de santidade pelo meio.
Como comentário, como ando a
ler, sempre que posso, “Mémoires d’Hadrien”, lembrei-me dos versos do grande
imperador Adriano, do 1º século da era cristã, que também foi requintado
artista e escreveu versos, entre os quais os com que o livro de Marguerite
Yourcenar introduz a sua obra, sobre um comentarista da vida, à beira da morte:
Animula vagula, blandula,
Hospes comesque corporis,
Quae nunc bibis in loca
Pallidula, rigida, nudula,
Nec, ut soles, dabis iocos.
(P. AElius Hadrianus, Imp.)
E a sua tradução, julgo que
por mim copiada:
Pequena alma terna,
flutuante
Companheira e hóspede do
corpo
Agora se prepara para
descer a lugares
Pálidos, árduos, nus,
Onde não terás mais os
devaneios costumeiros.
Tanto o terno Kim Jong-Un – a nossa
amiga chama-lhe ping-pong, termo mais acessível, mas a mim parece-me mais só
pong, dada a sua fixação nos mísseis, sem olhar ao “ping” de outros factores de
relevância – como os estridentes donzéis e donzelas reivindicativos de uma
Catalunha só para eles, me parecem, de facto, almazinhas imponderáveis,
flutuantes, pequeninas, abstractas… Amen.
EDITORIAL
Não há sanções que nos valham
Diogo Queiroz de Andrade
Público, 5/9/17
Donald Trump tem dois
problemas estratégicos, que estão aliás a ser jogados com mestria por
Pyongyang. O primeiro é geográfico: não existe qualquer cenário em
que um ataque debilitante contra a Coreia do Norte possa ser executado antes
que alguém carregue num botão que implique a morte dos dez milhões de
habitantes de Seul. O segundo chama-se China, cuja constante
protecção ao pequeno aliado de matriz comunista parece inabalável. A
isto alia-se uma questão estrutural, que é a absoluta indiferença de Kim Jong-un
à imposição de sanções. Desde logo porque o país é praticamente
impermeável ao comércio externo, funcionando numa redoma que só é trespassada
pela China. Mas, mais do que isso, porque a liderança norte-coreana é
indiferente às provações que o país possa sofrer, mantendo um controlo apertado
sobre as finanças do país e garantindo que nada falta ao grande líder e ao seu
séquito.
Neste momento, todas as
opções são más. Um ataque militar americano está fora de questão, as
sanções não vão afectar quem deviam, as negociações parecem impossíveis e
não parece haver um James Bond capaz de assassinar o líder norte-coreano e
assegurar uma transição de regime. Nem a China parece capaz de controlar um
líder que só quer afirmar cada vez mais o poder que tem. Como sempre
acontece nestes momentos, a primeira consequência é a aceleração da corrida
às armas. É o que Seul está a fazer, lançando um programa de
capacidade balística mal visto pela China e com novas consequências na gestão
de forças naquela região. Em Tóquio já nem se disfarça uma corrida às armas,
com o objectivo semi-declarado de restaurar a grandiosidade do exército do
império japonês. Os nipónicos vão voltar a ter uma capacidade ofensiva
relevante, contrariando o espírito pacifista da própria constituição, graças ao
apoio declarado do próprio primeiro-ministro Abe a este reavivar de espírito
nacionalista.
Tudo isto representa uma
derrota da China, que gosta de achar que controla a região – mas
onde a corrida bélica tem contornos que escapam aos seus objectivos declarados.
A China será sempre a potência de referência na Ásia, mas a incapacidade em
conter o aliado norte-coreano revela uma incompetência inesperada de Pequim.
Nada do que está a acontecer, exceptuando talvez o novo embaraço da Casa
Branca, é do interesse directo de Pequim. A escalada militar na região
aumenta o potencial de conflitos regionais que podem pôr em causa interesses
estratégicos dos chineses ou dos seus aliados, para além das inevitáveis
perturbações nos mercados – que são as maiores preocupações de uma Pequim que
por enquanto apenas quer ganhar a guerra comercial e financeira.
Um referendo travesti
Diogo Queiroz de Andrade
Público, 8/9/17
A legítima ambição de
independência de sectores da sociedade catalã exigia um processo transparente,
profundo, pensado e delineado como sendo algo histórico.
É
certo que a Catalunha cumpre os pressupostos tradicionais que definem uma
nação: tem uma cultura, uma identidade e uma história próprias – e tem até uma
língua. Mais importante ainda, em termos económicos tem viabilidade – bastante
maior do que as independências que nasceram este século. Sempre se soube que a
manutenção da Catalunha em Espanha só se manteria enquanto os catalães assim o
desejassem e se revissem na nação descentralizada, e é admissível que o cenário
esteja a mudar.
Mas nada
disto justifica a forma abstrusa como este referendo travestido está a ser
conduzido. É aliás o inverso: a legítima ambição de independência de sectores
da sociedade catalã exigia um processo transparente, profundo, pensado e
delineado como sendo algo histórico. Este processo de vão de escada, feito com urnas
clandestinas e boletins de voto escondidos, é uma vergonha que ficará para
sempre marcada na ideologia independentista, tenha ela sucesso junto do povo ou
não. Nada está a ser discutido como devia e nada está a ser feito como seria
suposto.
Sendo
certo que nunca um processo de independência será feito com a anuência de
Madrid, pode ao menos ser conseguido com uma relativa unanimidade dos catalães. E esse não só não foi conseguido como
se chegou ao pólo oposto: as manobras anti-democráticas que forçaram a passagem
deste referendo garantiram a divisão do parlamento, e consequentemente da
sociedade. A Catalunha não está unida na realização da consulta popular,
quanto mais do resultado que de lá sair. O melhor que os independentistas
conseguiram foi garantir a divisão da nação catalã antes mesmo de garantir a
sua existência – o que, convenhamos, não é a melhor base para uma construção
nacional.
O
resultado é um beco sem saída. Nem catalães independentistas nem madridistas
integristas têm margem para recuo num processo extremado. E quando o primeiro-ministro Rajoy
ameaça com a revogação da autonomia catalã, sabe que está a brincar com o fogo
e a atiçar paixões muito pouco racionais. Mas é óbvio que não
pode valer tudo, como parecem achar as personagens menores que querem forçar
uma revolução encapotada num povo que não se tem mostrado interessado em
responder à questão independentista.
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