Segundo Vicente Jorge Silva, no seu artigo “Europa: o fim das ilusões”, o fim da União
Europeia não tarda, tudo se vai encaminhando nesse sentido, os resultados das
eleições na Alemanha o revelam, Angela MerKel tendo que se aliar, para
governar, a dois partidos de orientação oposta entre si. Angela Merkel não tem
o estômago, talvez, do nosso António Costa, contornador por excelência de
situações espinhosas, a hipocrisia espelhada no sorriso impante, acima de tudo
conquistando com cada vez mais denodo os postes – ou as postas - do seu poder.
Mas segundo o que Teresa de Sousa quer que seja, no seu artigo “A chanceler
começou bem”, é uma União de fraternidade necessária, mesmo numa Europa a soçobrar,
continuamente invadida pelas hordas dos que procuram uma sobrevivência longe dos
seus terrenos de luta e fome que os países nortenhos e do centro europeu vão repelindo,
a retomar o seu posicionamento isolacionista e bem fornido.
Não sei se Teresa de Sousa e
os seus apoiantes benfeitores alcançarão as suas pretensões a uma Europa eficientemente
e cristãmente aberta, sem considerar as desvantagens de tais propostas.
Para já, os dois textos são
síntese clara desse problema-mor, enquanto outro mais grave ainda não
despoletar no horizonte, tornando irrisórios esses eventos eleitorais e o que
se lhes poderá seguir.
OPINIÃO
Europa: o fim das
ilusões?
A Europa corre o risco de se enclausurar cada vez mais nos seus espaços
nacionais e recusar uma soberania transnacional.
Vicente Jorge Silva
1 de Outubro de 2017
Hoje é dia de votar em
Portugal e o chamado período de reflexão obriga-me ao silêncio. A verdade,
porém, é que há coisas mais importantes e decisivas em jogo, neste
momento, para os europeus que também somos, depois da tempestade política
provocada pelas eleições alemãs de domingo passado ou da incerteza altamente
preocupante sobre o desfecho do referendo deste domingo na Catalunha (quer se
realize, quer não). Este cruzamento de situações, cada qual com a sua
expressão própria, faz pesar nuvens sombrias sobre a estabilidade social e
política da Europa. Além disso, pode dizer-se que seria difícil prever um
resultado pior para a Europa – e para a refundação necessária do projecto
europeu – do que aquele que saiu das urnas na Alemanha.
Os verdadeiros vencedores
das eleições, os antigos liberais-europeístas, hoje eurocépticos, do FDP e os
extremistas xenófobos da AfD, representam precisamente a negação dessa nova
esperança europeia que, ainda esta semana, Emmanuel Macron voltou a defender,
com vibrante convicção, no seu discurso da Sorbonne. Mas o
voluntarismo francês aparece cruelmente desfasado da nova realidade política
alemã e o sonho de Macron estará porventura condenado a não passar disso mesmo,
apesar de ser uma última alternativa credível para o renascimento europeu.
Acossada à direita –
fora e dentro do seu partido –, Angela Merkel terá, por outro lado, de se
coligar com o FDP e com os Verdes, único cenário maioritário possível para
formar governo (o que ainda está em suspenso devido às declaradas incompatibilidades
entre estes dois partidos). Para além da conhecida ambiguidade das suas
posições no terreno europeu, Merkel encontra-se hoje extremamente fragilizada
para poder escolher um rumo convergente com aquele proposto por Macron.
Mas se o resultado das
eleições alemães constituiu uma surpresa e um choque, tendo até em conta os
resultados das sondagens (quem se lembra da antevisão de uma provável vitória
do SPD de Martin Schulz, que acabou por sofrer o pior desaire da sua
história?), a verdade é que não diverge da tendência estrutural observada
recentemente em vários países europeus. A erosão (ou até implosão) dos
partidos de governo, devido à diluição da sua identidade ideológica e
programática, como aconteceu com os socialistas e sociais-democratas, teve como
contraponto a emergência das forças eurocépticas, nacionalistas e populistas.
E mesmo quando elas não conseguiram impor-se nas urnas, essa tendência
manteve-se activa, tendo como pano de fundo a insegurança económica e a crise
migratória. A reacção ao trumpismo ou ao Brexit suscitou fenómenos
contraditórios, mas não apagou a persistência desse movimento. Entre a
abertura e o fechamento, este tem vindo a prosperar e o seu efeito mais
dramático pôde ser constatado, precisamente, nas eleições alemãs.
Quer isto dizer que a
Europa corre o risco de se enclausurar cada vez mais nos seus espaços nacionais
e recusar uma soberania transnacional, única via de posicionar-se face a um
mundo de superpotências isolacionistas, belicistas e economicamente agressivas?
Mesmo para quem recuse os cenários fatalistas, essa hipótese parece hoje
perigosamente próxima – e começa a faltar espaço e vigor para remar contra a
maré das correntes chauvinistas que atraem o ressentimento de populações com
medo do futuro, como foi agora patente na expressão eleitoral vitoriosa dos
extremistas da AfD nos territórios da antiga Alemanha de Leste (uma espécie de
réplica da Polónia e Hungria). Enfrentamos tempos em que o optimismo da vontade
talvez não seja suficiente para se contrapor ao pessimismo da razão.
OPINIÃO
A chanceler começou bem
Por mais críticos que sejam os seus parceiros da CDU e
da CSU, em Talin a chanceler alemã conseguiu manter-se ela própria.
Teresa de Sousa
Público, 1 de Outubro de 2017,
1. Não é num jantar informal que os líderes
europeus vão entender-se, ou desentender-se, sobre o que deve ser a Europa no
pós-crise e num mundo em crescente desordem, que desafia os seus valores e os
seus interesses. Mesmo assim, a cimeira informal de Talin era, digamos assim,
um primeiro retrato da Europa depois das eleições alemãs e depois de o
Presidente francês ter apresentado a sua visão do futuro da Europa (não foi o
único mas foi certamente o que atraiu mais atenção). O debate terá de continuar
nas cimeiras que se aproximam, em Outubro, em Novembro (informal) e em
Dezembro, onde essa agenda vai começar a ser testada. O facto de os líderes
terem encarregado Donald Tusk de apresentar um guião com os próximos passos não
é muito promissor. A experiência mostra que, de cada vez que a chanceler
incumbiu Tusk de preparar um “roadmap”, foi apenas para ganhar tempo e
remetê-lo para a gaveta. Além disso, a Comissão tem o seu próprio
calendário de medidas já prontas para apresentar ao Conselho Europeu,
dispensando esta aparente duplicação. Mesmo assim, a chanceler não se
colocou numa posição defensiva, tendo em vista os resultados das eleições
alemãs, que não lhe prometem uma vida fácil. Deu o sinal político que era
preciso: considerou o discurso do Presidente francês como uma boa base de
trabalho. “France is back”, disse ela em inglês. Normalmente, a chanceler não
diz as coisas por acaso. Talvez preciso ainda mais hoje de um parceiro francês
ambicioso e determinado, porque isso pode ajudá-la a colocar o debate sobre a
Europa onde ela quer, e não nos termos em que o FDP, seu eventual parceiro de
coligação, gostaria. O eixo Paris-Berlim, foi, é e continuará a ser a
base da integração europeia em todas as suas dimensões. A crise vivida nos
últimos oito anos trouxe à luz um enorme desequilíbrio de poder entre os dois
países. A elite alemã, ou parte dela, chegou a ter o sonho de uma Europa
“unipolar”, com a Alemanha no centro. Teria sido um enorme factor de
perturbação.
As coisas entre ela e
Macron começaram bem. A perspectiva de ambos era encontrarem-se a meio do
caminho, em torno de um compromisso no qual uma maioria de países se poderia
também rever. As eleições baralharam o jogo, mas não vale a pena subestimar
a chanceler. O Presidente francês virou a mesa, com um discurso
profundamente europeísta, contra a corrente da timidez e da falta de coragem
dos líderes europeus para defender a Europa diante de eleitores cada vez mais
cépticos. Quis virar a direcção do debate. Merkel saudou-o por causa disso. Não
será fácil.
2. Alguns países de Leste, e não
apenas a Polónia e a Hungria, atravessam uma fase de ressaca europeia, que os
torna alérgicos a qualquer sinal de mais integração. Mas a ideia de uma
Europa a várias velocidades vai ganhando terreno. A Europa é hoje uma
realidade muito mais diversificada e heterogénea, obrigando a maior
flexibilidade, mesmo que exista o risco de deixar esses países à deriva,
tornando-os presas fáceis de outras esferas de influência. O problema
maior talvez seja a oposição dos países mais ricos do Norte, que mantêm um
olhar céptico e preconceituoso sobre os do Sul ou até sobre a própria França,
como se pertencessem a mundos diferentes, cujos governos cederam muito
facilmente à vaga contra os imigrantes e os refugiados, tentando estancar a
perda de votos para os partidos populistas. Na Holanda é isto que se passa, na
Dinamarca também. Na Áustria, que vai às urnas ainda este ano, os partidos
centrais, incluindo o social-democrata, não têm o menor pejo de se apresentar
com um discurso a roçar a xenofobia.
3. “Num dos
países mais prósperos do mundo, com o mais forte tabu face à xenofobia e ao
nacionalismo, e com um compromisso existencial com a integração europeia, um em
cada oito eleitores votaram num partido xenófobo, eurocéptico, populista de
direita”, escreve no Guardian Timothy
Garton-Ash. Não é apenas uma questão económica, é uma questão cultural, que não
pode ser menosprezada. As sondagens indicam que os eleitores que escolheram a
AfD justificaram os seus votos com a ameaça “à língua e à cultura” alemãs. “Já
não reconheço o meu país” é uma das queixas que mais se ouvem em alguns grupos
sociais que se sentem ignorados pelos poderes públicos. O historiador
britânico também lembra que, “ao contrário de alguns líderes de centro-direita,
que viraram ainda mais à direita para atrair os votos populistas, Angela Merkel
manteve-se com os pés bem assentes num centro liberal, genuíno, moderado e
civilizado.” É isso que ela ainda traz à Europa. Por mais críticos que
sejam os seus parceiros da CDU e da CSU, em Talin a chanceler conseguiu
manter-se ela própria.
Vale a pena olhar para a
evolução da direita alemã desde a fundação da República Federal, em 1949.
A democracia, que os americanos ajudaram a construir, não nasceu logo
perfeita, nem podia. O peso dos sectores mais conservadores da sociedade
(alguns que conviveram relativamente bem com o nazismo) foi inicialmente mais
forte do que hoje conseguimos imaginar. Willy Brandt, o líder histórico do SPD,
chegou a ser acusado de “trair a pátria” por ter envergado a farda do exército
norueguês, onde se refugiou, para libertar a Alemanha. A contestação estudantil
de 1968 (tal como o Maio de 68 em França) foi um grito de revolta contra uma
sociedade hierarquizada e profundamente conservadora onde era difícil respirar.
Ajudou a mudar muita coisa. Deu origem a uma facção violenta que tinha como
alvos os grandes patrões. Foi a excepção. A regra foi o crescimento dos
movimentos pacifistas, sempre prontos a ocupar as ruas contra a presença
militar americana, quando a fronteira da Guerra Fria passava por Berlim. Tudo
acabou bem, quando um dos líderes da revolta estudantil, Joschka Fisher, chefe
do partido Os Verdes, tomou posse do cargo de vice-chanceler da Alemanha, em
1998. A entrada da AfD no Bundestag trava, de algum modo, este longo caminho
que os alemães percorreram nas últimas décadas e que começou a mudar de
direcção quando a Alemanha se reunificou.
4. É preciso também olhar para onde
vieram os votos. A maior parte veio dos Lander do Leste, onde, por sinal, não
há refugiados, mas onde a história dos anos da guerra e do pós-guerra foi
escrita pelos comunistas. Outros vieram dos sectores mais conservadores do lado
ocidental, por razões porventura diferentes. Mas as sondagens mostram também
uma fuga muito significativa de eleitores do SPD para a extrema-direita, maior
dos que fugiram para o Die Linke ou o próprio FDP. O que isto quer dizer é que
a crise do SPD é ainda mais profunda do que a da CDU. A tentação de virar à
esquerda é quase irresistível. Mas os sociais-democratas, com o seu europeísmo
e os seus valores, terão de perceber quando e como têm de apoiar a chanceler.
Nos respectivos discursos, Macron, Juncker ou António Costa deram um espaço
fora do comum à questão dos valores europeus. Colocaram esses valores no centro
de um projecto que, sem eles, não tem qualquer razão de ser. Merkel diz a mesma
coisa. É bom sinal.
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