segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Colisões, em consequência


Uniões de facto / Uniões de direito:  De facto, as da União Europeia, feitas por uma aparente convergência de interesses, que ajudaram a construir países, em prosperidade e embelezamento. Foi o nosso caso, mas uma prosperidade em grande parte de aparência, porque não conseguida com o esforço próprio, mas com aproveitamento visível ou invisível pelos muitos predadores de serviço, do dinheiro que jorrava e nos deixou prisioneiros de uma dívida inultrapassável. Na realidade, as estruturas económicas do país desaceleraram, com as imposições dessa União exigente de medidas certas, nas frutas e nos repolhos, sem o que eles não eram exportados. Houve decréscimo nas exportações, os produtos sujeitos às medidas exactas.
Mas não é disso que se fala nos dois artigos seguintes – o de Paulo Tunhas- AS DUAS SOGRAS DE LENINE (Observador, 28/9) - que mostra como a sujeição a uma união europeia – união de facto – provoca imposições externas sim, mas também desequilíbrios e cisões internas, da união de direito. As pretensões a novas independências são disso consequência. E daí o fenómeno dos “exits”, o retorno aos nacionalismos, de maior coesão interna, talvez.
Mas o artigo de António Barreto - A CERTEZA ALEMÃ (DN, 29/9) – historia os factos com a costumada sagacidade, e mostra quanto a união europeia nos é indispensável. Pelo menos até ressarcirmos a dívida.
Mas parece isso coisa de utopia. É preferível deliciar-nos com as análises dos articulistas citados:

UNIÃO EUROPEIA
As duas sogras de Lenine
OBSERVADOR, 28/9/2017
Um dos efeitos da perda da soberania externa é o aparecimento, no interior de cada Estado, de forças políticas radicais, de extrema-direita e de extrema-esquerda.
Parece que Lenine dizia que os bígamos têm o merecido castigo de terem duas sogras. Há alguma actualidade política no comentário. Porque, olhando para a Europa à nossa volta, é difícil evitar o sentimento que toda a gente vive numa espécie de bigamia política. Há o velho casamento com os nossos Estados e o muito mais recente casamento com a União Europeia. Não sou moralista e não quero pregar nada. Mas é difícil não reconhecer que, a par de particulares prazeres e benefícios, a bigamia política traz consigo alguns problemas. Notá-los, por mais que isso custe a entrar em algumas cabeças, não é um sinistro sintoma de “anti-europeísmo”. É só tentar ver mais claramente o que se passa à nossa volta.
O essencial prende-se com a vetusta noção de soberania. Dir-se-á que, particularmente no mundo actual, se trata em grande medida de uma pura ficção. Tudo se encontra tão ligado a tudo que nenhum país, por mais poderoso que seja, é inteiramente soberano. Perfeitamente de acordo. Até iria mais longe. Num mundo ideal imaginado, o soberanismo não apresenta virtudes transcendentes irrecusáveis e a defesa de uma “política patriótica e de esquerda” (ou de direita) não deve provocar êxtases imoderados. Há, no entanto, duas coisas a ter em conta. A totalidade das nossas instituições, de tudo o que oferece coerência à nossa sociedade, comporta uma dimensão ficcional notória. O facto de as instituições, se tudo correr bem, suscitarem em nós sentimentos de crença, indispensáveis para termos alguma confiança no funcionamento decente da sociedade, não contradita essa tal ficcionalidade: anda de mãos dadas com ela. Mas, é verdade, este ponto é puramente teórico e, no limite, pode ser saltado.
Não se passa assim com um outro aspecto, que possui uma natureza essencialmente pragmática. A soberania é tradicionalmente apresentada como possuindo duas facetas: uma externa e outra interna. A primeira significa a independência dos Estados uns em relação aos outros. A segunda, para falar sem grande rigor, a autoridade de cada Estado face ao seu próprio povo, resultando do facto de o soberano o representar. Acontece que, como vários bons e velhos espíritos notaram, a perda, ou a desagregação, da soberania externa, por mais ficcional que esta seja, acarreta tendencialmente a perda, ou a desagregação, da soberania interna. Se olharmos para a Europa à nossa volta, não é isto mesmo que se observa?
Não são apenas as relações entre os Estados no interior da União Europeia que, apesar de sucessivas e sanguíneas proclamações em sentido contrário, se degradam e sugerem um movimento centrífugo difícil de contrariar. O caso – muito particular, é verdade – do Reino Unido é apenas o exemplo mais notório e está longe de ser o único. Para utilizar os termos de um livro de uma historiadora inglesa, Linda Colley, que em mais do que uma obra se dedicou à análise da construção da identidade britânica, aos actos de união sucedem-se actos de desunião.
Mais profundamente, no interior de cada Estado, esse mesmo movimento de repulsão começa a adquirir proporções inéditas. Ficando apenas pelos exemplos mais óbvios, olhe-se para a Catalunha ou, embora seja diferente, para a Escócia. Dir-se-á que tudo isso vem de longe, de muito longe, e que é uma suma injustiça atribuir responsabilidades à União Europeia no capítulo. Não sendo de modo algum especialista da matéria, permito-me discordar. Essas coisas vêm de longe, mas a bigamia política em que vivemos acentua-as substancialmente. A perda da soberania externa, por mais ficcional que esta seja, mina de forma decisiva a soberania interna dos Estados. Atrevo-me até a pensar que o Brexit, e isso independentemente das razões dos seus mais radicais defensores, poderá ter o efeito de reforçar a relação entre as várias nações que compõem o Reino Unido (incluindo a Escócia).
Outro efeito da perda da soberania externa é o aparecimento, no interior de cada Estado, de forças políticas radicais, de extrema-direita e de extrema-esquerda. Também elas são sinal de uma desagregação da soberania interna, na medida em que agem contra os princípios fundamentais a partir dos quais pensamos a nossa relação com o Estado. Mais uma vez, certamente que o fenómeno está longe de ser recente, e nem é preciso dar exemplos. E sem dúvida que os actuais fluxos migratórios contribuem poderosamente para esta situação. Mas a questão verdadeiramente importante é que, agora, o alegre florecimento do radicalismo, que, no caso de alguns partidos socialistas, contamina a esquerda democrática, como se verifica com o Labour inglês e com parte do Partido Socialista português, pode legitimamente ser visto como resultado da perda da soberania interna resultante do actual quadro da União Europeia. Não é a primeira vez que uma construção política levada a cabo para erradicar um mal tem o efeito perverso de o estimular.
A acabar. Nesta história de bigamia, quem são as duas sogras de Lenine? A primeira, a do casamento europeu, é a da irrealidade que nos faz desatender ao concreto das coisas e nos faz perder de vista efectivos, por precários que sejam, laços de união no interior de cada Estado. A segunda, a do casamento nacional, aquela que nos obriga a procurar identidades cada vez mais fechadas e circunscritas a particularidades nacionais. Nenhuma delas nos torna a vida fácil. Mas se calhar não há vida fácil neste mundo.

A certeza alemã
António Barreto
DN, 24/8/17
É uma graça comum: as que se realizam hoje na Alemanha são as verdadeiras eleições europeias. E assim será. Depois das legislativas e presidenciais de vários países, sobretudo da Grã-Bretanha, da França e da Holanda, assim como diversas autárquicas, a União fica renovada eleitoralmente. Ainda falta a Itália, mas não parece que daí venham mudanças radicais. Os resultados da Alemanha são previsíveis. O ano de 2017 acabará sem que os processos eleitorais tenham produzido novos perigos. Não houve crise. Mas também não parece que haja resolução dos problemas que tínhamos no início do ano. Aliás, com a saída da Grã-Bretanha, com os ventos da Catalunha e da Escócia e com as ameaças da Hungria e da Polónia, terminaremos o ano em pior estado do que quando o começámos.
Há sempre quem diga que a liderança política é condição necessária e suficiente para o progresso e para a estabilidade. E que a falta de liderança é bastante para criar a incerteza, eventualmente o declínio. A Europa dos nossos dias é a negação de tais ideias simples. A liderança alemã é assumida (embora não ostensivamente), indiscutível (apesar de criticada), reconhecida (mau grado a resistência) e temida (até pelos amigos). A dimensão humana e territorial, a localização geográfica, o produto nacional e a robustez da indústria fazem da Alemanha o líder europeu sem par. A sua capacidade de organização, a dedicação ao trabalho e o seu realismo confirmam e reforçam os seus atributos. O que lhe falta, flexibilidade, cultura e força militar, constitui uma deficiência séria, mas não é obstáculo à assunção dos seus poderes e da sua força.
Só que... Esta liderança é capaz de condenar a União ao que poderá ser, a prazo, o declínio da Europa. Da Europa como continente coeso, como organização e como agrupamento de países livres. Na verdade, a liderança alemã, que já foi relutante (como disse T. Garton Ash) e agora desejada, nunca será aceite de boa vontade pelos parceiros e, se o for, é com reserva mental. Pela força excessiva, pela história e pelos hábitos, a Alemanha não será bem-vinda como líder incontestado. E poderá facilmente conduzir a rejeições antigas e a perturbações novas.
A União Europeia começou francesa. Depois, fez-se franco-alemã. A seguir, simpatizou com a Grã-Bretanha. Para logo experimentar as delícias mediterrânicas e as surpresas orientais. Depois, a França entrou em declínio. A Grã-Bretanha foi à vida. O Mediterrâneo quis aproveitar-se. De repente, a União ficou alemã, uma das razões contra as quais se fez há décadas. Sem o peso fundacional francês, sem a criatividade liberal inglesa, sem a simpatia americana e sem a ameaça soviética, mas com os velhos problemas de identidade, com as dívidas soberanas e com as perdas de produtividade, a União desaparece ou fica alemã e... desaparece!
A Europa foi... Já quase só se fala da Europa e da União no passado. É justo reconhecer que a UE ajudou Portugal. Deu um prazo e uma oportunidade à democracia. A UE reforçou o Estado e a sociedade. Ao fim de uns anos, a UE não dá mais contributos directos ou indirectos para a democracia. A UE não é ela própria democrática. Não é exemplo de democracia. Mas uma democracia vive melhor na União Europeia do que fora dela. Para Portugal, fora da União, tudo será mais difícil.
A Europa a que aderimos era um continente politicamente atraente e economicamente promissor. Além de ser uma garantia cultural e um futuro científico. Já havia, talvez, nos anos oitenta, sinais de inquietação, mas, para todos os efeitos, o horizonte europeu seduzia com razão qualquer país, a começar por Portugal, saído de uma ditadura, de uma guerra e de uma revolução. A Europa a que pertencemos hoje está politicamente em declínio, em dificuldade e na incerteza. Em qualquer caso, a perder pujança, ritmo e sentido.
Uma coisa é segura: temos uma liderança certa de uma Europa incerta!


Nenhum comentário: