Agora chama-se millenial, informa Maria João Avillez, a esta geração
que nasceu no milénio e que comanda o mundo na sua distracção da vida,
confinada a selfies e a captação instantânea do mundo em gotas, transportado na
mão e abstraído da reflexão e do contacto humano, na profusão das imagens que
bastam à novel cultura de concentração isolacionista e galhofeira. Responsável também pela investigação
entrevistadora do jornalismo de praia – ou da floresta a arder – como nos traz Bagão
Félix, obscena de tão destituída de valores que ultrapassem os balbucios de
uma curiosidade comezinha. Mas os livros da nossa educação escolar são
responsáveis também por essa penúria, ao instigarem os adolescentes a fazerem pesquisas
na sua área de residência, sobre condições de vida ou outras informações
condizentes com os seus programas, crianças que mal saberão ler e escrever, e
que carregam nas suas mochilas montanhas de sugestões de trabalhos extra que
lhes tirarão o tempo para gozarem a sua infância ou aprofundarem nos livros uma
formação de seriedade e abertura mais nobre, feita, por vezes, de autêntica
poluição mental – caso das doenças ou das condições de vida dos povos, dos
livros de Ciências e de Geografia – profusa e insistente, em anos consecutivos,
pelo apelo constante a uma reflexão moralizante, que poderá redundar, na idade
adulta, em indiferença pelo outro, na concentração exclusiva do mundo próprio
ou na banalidade do puro mexerico. Como o demonstram os dois excelentes
exemplares de escrita - de António Bagão Félix e de
Maria João Avillez, na impecabilidade da sua ponderação crítica.
I TEXTO:
Penúria televisiva em maioria absoluta
António Bagão Félix Público11/8/17
Porque é que veio à praia?” pergunta a jornalista –
entusiasmada com tão excitante pergunta, que se lhe assaltou brilhantemente – a
um banhista a atoalhar-se depois de um banho no oceano. “Acha que está
calor?” questiona o jornalista pressuroso diante de duas
veraneantes a apanhar banhos de sol prenhes de ultravioletas. “Está
calor, sim”. E, de seguida, remata “e usa protector
solar?“ ao que uma delas responde com o grau do dito,
adequado para a hora da canícula em pleno Agosto, só faltando mencionar a marca
respectiva. “A água está melhor do que no ano passado?” interpela
a jovem estagiária com inusitada veemência, recebendo uma resposta algures
entre a certeira banalidade e a banal certeza. “Costuma vir todos os anos
para esta praia?” é mais uma pergunta-relatório que me faz, por
momentos, cortar a respiração, de tão interessante que antevejo a resposta da
família Bartolomeu. “As crianças gostam de estar na praia?”
é a demanda que ouço a seguir, com a resposta repartida entre a mãe orgulhosa e
o pai frenético e acompanhada de sonoras gargalhadas: “adoram!”.
“Gosta de ler na praia?” a modos que querendo-se subir o
nível da pergunta ao sujeito que folheava o “best-seller” acabadinho de comprar
no supermercado. Entretanto, olho para o oráculo, que é como quem diz para uma
de várias faixas encavalitadas na parte de baixo do ecrã, e qual é o meu
espanto quando leio “a solução para o calor é um mergulho!” Por
momentos, fiquei aturdido com tão sábia descoberta. No fim, fica-me a
amargura de o país televisivo só ter praia…
Não, não estou a efabular. É mesmo isto que, mais palavra, menos palavra,
pude ver e ouvir em alguns canais televisivos. Assim se vão fazendo os
“chouriços noticiosos” de hora e meia, entressachados hora sim, hora quase sim,
nos canais informativos. É um fartote, convenhamos.
Se a isto juntarmos, um alinhamento de notícias errático e indigente onde
se manipula o interessamento do telespectador (aqui até me apetece escrever sem
o c, conforme o AO), o futebol ad nauseam de cá e
de lá, entre o que há-de ser e o que já foi, com a suprema dádiva de longas
peças sobre o futebol espanhol, sem que os ingratos “hermanos” nos retribuam
com um segundinho sequer do de cá, a namorada e os filhos de Cristiano Ronaldo,
as imagens mil vezes repetidas de fogos para que os pirómanos se excitem quanto
baste, a actualidade repetida já sem ser actualidade, e até a publicidade
encapotada a telenovelas a estrear e outras coisas do género como se fossem
notícias, há de tudo. Um bom filme? Um bom documentário? Sim, mas a horas não
recomendáveis, alta noite ou de madrugada…
Assim se vai consolidando a estupidificação da bitola das audiências, neste
triângulo de programação – salsichas noticiosas, futebol a rodos e
telenovelas a todas as horas – a que se junta aos fins-de-semana o
delírio da música pimba e cachopas anafadas pelo Portugal de lés-a-lés. Tudo
polvilhado com o uso de um português maltratado.
O problema é que, pouco a pouco, os canais (ditos informativos) vão
convergindo nesta massa informe, nivelada pelo “benchmarking” dos piores. Com a
pobreza confrangedora de, à mesma hora e em todos os canais, vermos uma
conferência de imprensa completamente banal de um jogador ou treinador ou mais
uma discursata de um político em viagem de circum-transumância eleitoral.
Ressalvo aqui os canais da televisão pública, que, apesar desta voragem
pela qual se deve obedecer acriticamente às audiências, têm vindo a melhorar.
Nota-se isso na RTP 1 e 3, mas aqui destaco, sobretudo, a excelente programação
da RTP 2, o único canal onde se podem ver – a horas decentes – programas de
nível e de entretenimento com qualidade.»
1. Primeiro foi uma curiosidade, hoje é um
embaraço. Já me acontece hesitar quando ouço o telemóvel cor de morango:
respondo? Atendo num canto onde não me vejam? O caso é que o tal aparelho
remonta, mais ano menos ano, à descoberta do Brasil. Ou é como se remontasse. É
antigo, conflitua gritantemente com qualquer modelo, não faz habilidades, não
fala comigo, não toca música, não tira fotografias, não recebe “imagens”, não
manda mails, não lê os que me mandam. O céu, em suma. “Então para
que serve? “ouço continuamente. “Serve para o que eu quero que ele sirva, fazer
chamadas e ouvir as que recebo”. É evidente que a preguiça, a não vontade de
comprar um aparelho telefónico multiusos capaz de me ligar instantaneamente às
“notícias” e num ápice a qualquer parte do mundo, ou o meu fastio face a um
objecto enfeitado de factos&fotos e outras fantasias avulsas a que os seus
felizes portadores chamam de “gadgets”, é em si um sinal de desfasamento com o
ar do tempo. Uma dessintonia com a marca dos dias. Sucede que reconhecendo
embora (e como não?) as inumeráveis vantagens do progresso tecnológico e o útil
galope informático, acho que há mais vida além de estar conectado.
2. Quando entro no metro, seja manhã cedo, meio
dia ou quatro da tarde, oito em cada dez pessoas estão numa relação íntima
com o seu telemóvel. Íntima, ansiosa e dependente. As outras duas lêem
(quase sempre um livro, raramente um jornal).
Toda a viagem, breve ou
longa, se passa num misto de enlevo e exaltação (é conforme) com o que se passa
dentro dos respectivos telemóveis. Estão conectadas, logo respiram. Há quem
fale mil oitavas acima do seu tom normal, como se o gesto de atender um
telefone catapultasse automaticamente a voz humana para descontrolados
decibéis. Há quem sussurre, quem se enleve, quem se zangue, quem faça mímica
sem se dar conta, quem tome a decisão da sua vida, quem comece um grande amor
ou faça uma ruptura abrupta. Há quase tudo. Ou tudo, melhor dizendo. O
que estranho — estranho mesmo – é a necessidade desta brutal exposição. Que
irrompe como um mecânico impulso. Vemo-lo em acção (ao impulso) na rua, no
autocarro, num jardim público, numa loja, no emprego, num restaurante, numa praia,
na missa, na escola.
Omnipresente e
convulsivo. A mera utilidade de um telefone — como um aspirador ou um
frigorífico – virou um vício. Dá que pensar.
3. Deixei de poder contar o que quer que fosse,
a quem quer que fosse: “já sabiam”. Tinham visto no “youtube”. Eram
“amigos” ou eram eles próprios os amigos dos “amigos” (nem sequer percebo bem o
que eu própria estou a escrever, tão alheio me é este mundo). Os meus netos
falam-me
de youtubers, bloguers, instagramers ou influencers como
eu poderia falar de alguém muito próximo que fizesse parte do meu mundo
privado: falam-me com intimidade e indispensabilidade. Há dias, em Londres
(onde vive essa prole), uma jovem celebridade desse novo mundo atravessou uma
rua ao mesmo tempo que eles. O trânsito quase parou, a celebridade tinha
para cima de uma multidão de “seguidores”. Se eu já entrevira que estava fora
de jogo, fiquei com a certeza.
Não caibo nessa
animadíssima, poderosíssima, perigosíssima sub-cave que parece reger o mundo.
As emoções rege, certamente, para não dizer as próprias vidas. Não gostaria que
a minha fosse determinada, manipulada ou capturada pela sub cave. Não digo a
expressão com desprezo, longe disso, ela apenas manifesta a tal estranheza face
a um mundo que circula, muitas vezes anonimamente mas sempre com estarrecedora
agilidade e igual avidez, por de baixo, ao lado, á roda, daquele onde me movo.
E entre um — o conectado — que parece derreter de exuberante felicidade os
demais seres humanos e o outro, desconectado, comedido e solitário, a distância
leva-me a concluir que o erro é meu, embora eu preferisse dizer relutância. Ou
seja: o “erro” chamemos-lhe assim, provém de minha (inultrapassável?)
relutância em expor-me numa montra. Em ter lá lugar, ocupação,”amigos” e vida.
Deve ser isso estar fora
de jogo. Deste jogo, cujos circuitos são aliás por vezes tóxicos.
4. Não faltam (taxativos) argumentos sobre as
infinitas bondades e insubstituíveis vantagens da montra – para a profissão que
se têm, para o negócio em mãos, para conhecer gente, fazer amigos, passar a
cozinhar melhor ou aprender a dançar. Não duvido. Ainda bem. Por qualquer razão
porém, nunca senti a falta da conexão non stop nem das vantagem que o
estar na montra supostamente traz. Deveria interrogar-me, escrutinar-me,
procurar um psicólogo? Estes desabafos serão, concedo, o cúmulo
do reacionarismo. Paciência. As coisas são o que são. O meu fastio
informático/tecnológico também é o que é.
5. E se cada vez mais tudo se passa
vertiginosamente através dessa coisa glacial que é a superfície branca de um
écran de computador ou do pequeno visor de um telemóvel, que resta do contar?
Do conversar com alguém, face a face, lado a lado? Dessa coisa absolutamente
formidável que é o comunicar físico, concreto? Que resta do gesto e do sorriso?
Do verbo falado e não clicado? Dir-me-ão que a tecnologia não impede o “ao
vivo” e eu direi que não impede porque já quase o substituiu. A vertigem de um
aniquila a necessidade do outro.
Não se pode contar uma
boa história, os ouvidos caíram em desuso; é quase esquisito perguntar por
alguém, a resposta está no Facebook. Não se pode dar uma boa noticia — ou
sequer uma noticia – contar uma história, avisar de um filme, recomendar um
livro, relatar um episódio prosaico ou maravilhoso: já estão na montra. Até o
prazer alegre de um reencontro com alguém que não víamos há muito é logo
curto-circuitado: “não sabias? Mas pus no meu Facebook”.
6. E a “partilha”? Outro imperativo e também compulsivo.
Não se chega a quase nenhum lugar hoje — seja ele de que natureza for,
publico ou privado, institucional ou reservado — que não haja alguém a
tirar selfies(outro tique) quase sempre com aparato e sempre com
velocidade: é preciso tirá-las mas logo a seguir é imperiosamente preciso
“partilhá-las”.
Uma colega espanhola que
aprecio dava conta, em recente crónica, da estranheza que lhe provocara um
almoço com uma jovem “millenial” (geração que nasceu com o século e acha que
manda no mundo). Com desarmante franqueza a sua interlocutora
garantia-lhe que de nada lhe interessava um belo pôr de sol, uma boa noticia,
uma feliz viagem, uma descoberta, ou a bem dizer fosse o que fosse, se de
imediato não pudesse tirar uma selfie, clicar e “partilhar” esse momento.
A substância não era o momento vivido mas a sua instantânea partiha com uma
plateia sem rosto e com “seguidores” sem nomes. Tudo menos guardar esse
instante para si, saboreando interiormente a sua beleza ou singulariedade ou
sequer comunicando-as com palavras e gestos a um qualquer alguém. Nada a
fazer, está aí uma cartilha universal feita de (estupidificantes) sinais ou
abreviaturas que pulverizam qualquer escrita. Mas que importância desaprender
de escrever (e de pensar) ao pé de um”click”, poderoso e instantâneo? Não
estamos nós conectados?
Alguns lugares públicos,
hotéis, restaurantes, lojas, escaparates, montras, ateliers são hoje cuidadosamente
tratados como um cenário, antes do mais. Encenados para ficar bem
nas selfies. Tendo-se a sua prática tornado compulsiva e a sua necessidade
visceral, há que jogar na antecipação, bolar o melhor enquadramento, apostar no
melhor efeito.
Tem sido um êxito, segundo
me contam.
7. Resta-me
a consolação de não estar fora de jogo da cabeça. (Mesmo que possa parecer).
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