quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Conflitos geracionais


Agora chama-se millenial, informa Maria João Avillez, a esta geração que nasceu no milénio e que comanda o mundo na sua distracção da vida, confinada a selfies e a captação instantânea do mundo em gotas, transportado na mão e abstraído da reflexão e do contacto humano, na profusão das imagens que bastam à novel cultura de concentração isolacionista e galhofeira.  Responsável também pela investigação entrevistadora do jornalismo de praia – ou da floresta a arder – como nos traz Bagão Félix, obscena de tão destituída de valores que ultrapassem os balbucios de uma curiosidade comezinha. Mas os livros da nossa educação escolar são responsáveis também por essa penúria, ao instigarem os adolescentes a fazerem pesquisas na sua área de residência, sobre condições de vida ou outras informações condizentes com os seus programas, crianças que mal saberão ler e escrever, e que carregam nas suas mochilas montanhas de sugestões de trabalhos extra que lhes tirarão o tempo para gozarem a sua infância ou aprofundarem nos livros uma formação de seriedade e abertura mais nobre, feita, por vezes, de autêntica poluição mental – caso das doenças ou das condições de vida dos povos, dos livros de Ciências e de Geografia – profusa e insistente, em anos consecutivos, pelo apelo constante a uma reflexão moralizante, que poderá redundar, na idade adulta, em indiferença pelo outro, na concentração exclusiva do mundo próprio ou na banalidade do puro mexerico. Como o demonstram os dois excelentes exemplares de escrita - de António Bagão Félix e de Maria João Avillez, na impecabilidade da sua ponderação crítica.
I TEXTO:   Penúria televisiva em maioria absoluta
António Bagão Félix                        Público11/8/17
Porque é que veio à praia?” pergunta a jornalista – entusiasmada com tão excitante pergunta, que se lhe assaltou brilhantemente – a um banhista a atoalhar-se depois de um banho no oceano. “Acha que está calor?” questiona o jornalista pressuroso diante de duas veraneantes a apanhar banhos de sol prenhes de ultravioletas. “Está calor, sim”. E, de seguida, remata “e usa protector solar?“ ao que uma delas responde com o grau do dito, adequado para a hora da canícula em pleno Agosto, só faltando mencionar a marca respectiva. “A água está melhor do que no ano passado?” interpela a jovem estagiária com inusitada veemência, recebendo uma resposta algures entre a certeira banalidade e a banal certeza. “Costuma vir todos os anos para esta praia? é mais uma pergunta-relatório que me faz, por momentos, cortar a respiração, de tão interessante que antevejo a resposta da família Bartolomeu. “As crianças gostam de estar na praia? é a demanda que ouço a seguir, com a resposta repartida entre a mãe orgulhosa e o pai frenético e acompanhada de sonoras gargalhadas: adoram!”.Gosta de ler na praia?” a modos que querendo-se subir o nível da pergunta ao sujeito que folheava o “best-seller” acabadinho de comprar no supermercado. Entretanto, olho para o oráculo, que é como quem diz para uma de várias faixas encavalitadas na parte de baixo do ecrã, e qual é o meu espanto quando leio “a solução para o calor é um mergulho!” Por momentos, fiquei aturdido com tão sábia descoberta. No fim, fica-me a amargura de o país televisivo só ter praia…
Não, não estou a efabular. É mesmo isto que, mais palavra, menos palavra, pude ver e ouvir em alguns canais televisivos. Assim se vão fazendo os “chouriços noticiosos” de hora e meia, entressachados hora sim, hora quase sim, nos canais informativos. É um fartote, convenhamos.
Se a isto juntarmos, um alinhamento de notícias errático e indigente onde se manipula o interessamento do telespectador (aqui até me apetece escrever sem o c, conforme o AO), o futebol ad nauseam de cá e de lá, entre o que há-de ser e o que já foi, com a suprema dádiva de longas peças sobre o futebol espanhol, sem que os ingratos “hermanos” nos retribuam com um segundinho sequer do de cá, a namorada e os filhos de Cristiano Ronaldo, as imagens mil vezes repetidas de fogos para que os pirómanos se excitem quanto baste, a actualidade repetida já sem ser actualidade, e até a publicidade encapotada a telenovelas a estrear e outras coisas do género como se fossem notícias, há de tudo. Um bom filme? Um bom documentário? Sim, mas a horas não recomendáveis, alta noite ou de madrugada…
Assim se vai consolidando a estupidificação da bitola das audiências, neste triângulo de programação – salsichas noticiosas, futebol a rodos e telenovelas a todas as horas – a que se junta aos fins-de-semana o delírio da música pimba e cachopas anafadas pelo Portugal de lés-a-lés. Tudo polvilhado com o uso de um português maltratado.
O problema é que, pouco a pouco, os canais (ditos informativos) vão convergindo nesta massa informe, nivelada pelo “benchmarking” dos piores. Com a pobreza confrangedora de, à mesma hora e em todos os canais, vermos uma conferência de imprensa completamente banal de um jogador ou treinador ou mais uma discursata de um político em viagem de circum-transumância eleitoral.
Ressalvo aqui os canais da televisão pública, que, apesar desta voragem pela qual se deve obedecer acriticamente às audiências, têm vindo a melhorar. Nota-se isso na RTP 1 e 3, mas aqui destaco, sobretudo, a excelente programação da RTP 2, o único canal onde se podem ver – a horas decentes – programas de nível e de entretenimento com qualidade.»
II TEXTO: REDES SOCIAIS     -       Os conectados
Maria João Avillez                    OBSERVADOR, 24/10/2017
1. Primeiro foi uma curiosidade, hoje é um embaraço. Já me acontece hesitar quando ouço o telemóvel cor de morango: respondo? Atendo num canto onde não me vejam? O caso é que o tal aparelho remonta, mais ano menos ano, à descoberta do Brasil. Ou é como se remontasse. É antigo, conflitua gritantemente com qualquer modelo, não faz habilidades, não fala comigo, não toca música, não tira fotografias, não recebe “imagens”, não manda mails, não lê os que me mandam. O céu, em suma. “Então para que serve? “ouço continuamente. “Serve para o que eu quero que ele sirva, fazer chamadas e ouvir as que recebo”. É evidente que a preguiça, a não vontade de comprar um aparelho telefónico multiusos capaz de me ligar instantaneamente às “notícias” e num ápice a qualquer parte do mundo, ou o meu fastio face a um objecto enfeitado de factos&fotos e outras fantasias avulsas a que os seus felizes portadores chamam de “gadgets”, é em si um sinal de desfasamento com o ar do tempo. Uma dessintonia com a marca dos dias. Sucede que reconhecendo embora (e como não?) as inumeráveis vantagens do progresso tecnológico e o útil galope informático, acho que há mais vida além de estar conectado.
2. Quando entro no metro, seja manhã cedo, meio dia ou quatro da tarde, oito em cada dez pessoas estão numa relação íntima com o seu telemóvel. Íntima, ansiosa e dependente. As outras duas lêem (quase sempre um livro, raramente um jornal).
Toda a viagem, breve ou longa, se passa num misto de enlevo e exaltação (é conforme) com o que se passa dentro dos respectivos telemóveis. Estão conectadas, logo respiram. Há quem fale mil oitavas acima do seu tom normal, como se o gesto de atender um telefone catapultasse automaticamente a voz humana para descontrolados decibéis. Há quem sussurre, quem se enleve, quem se zangue, quem faça mímica sem se dar conta, quem tome a decisão da sua vida, quem comece um grande amor ou faça uma ruptura abrupta. Há quase tudo. Ou tudo, melhor dizendo. O que estranho — estranho mesmo – é a necessidade desta brutal exposição. Que irrompe como um mecânico impulso. Vemo-lo em acção (ao impulso) na rua, no autocarro, num jardim público, numa loja, no emprego, num restaurante, numa praia, na missa, na escola.
Omnipresente e convulsivo. A mera utilidade de um telefone — como um aspirador ou um frigorífico – virou um vício. Dá que pensar.
3. Deixei de poder contar o que quer que fosse, a quem quer que fosse: “já sabiam”. Tinham visto no “youtube”. Eram “amigos” ou eram eles próprios os amigos dos “amigos” (nem sequer percebo bem o que eu própria estou a escrever, tão alheio me é este mundo). Os meus netos falam-me de youtubers, bloguers, instagramers ou influencers como eu poderia falar de alguém muito próximo que fizesse parte do meu mundo privado: falam-me com intimidade e indispensabilidade. Há dias, em Londres (onde vive essa prole), uma jovem celebridade desse novo mundo atravessou uma rua ao mesmo tempo que eles. O trânsito quase parou, a celebridade tinha para cima de uma multidão de “seguidores”. Se eu já entrevira que estava fora de jogo, fiquei com a certeza.
Não caibo nessa animadíssima, poderosíssima, perigosíssima sub-cave que parece reger o mundo. As emoções rege, certamente, para não dizer as próprias vidas. Não gostaria que a minha fosse determinada, manipulada ou capturada pela sub cave. Não digo a expressão com desprezo, longe disso, ela apenas manifesta a tal estranheza face a um mundo que circula, muitas vezes anonimamente mas sempre com estarrecedora agilidade e igual avidez, por de baixo, ao lado, á roda, daquele onde me movo. E entre um — o conectado — que parece derreter de exuberante felicidade os demais seres humanos e o outro, desconectado, comedido e solitário, a distância leva-me a concluir que o erro é meu, embora eu preferisse dizer relutância. Ou seja: o “erro” chamemos-lhe assim, provém de minha (inultrapassável?) relutância em expor-me numa montra. Em ter lá lugar, ocupação,”amigos” e vida.
Deve ser isso estar fora de jogo. Deste jogo, cujos circuitos são aliás por vezes tóxicos.
4. Não faltam (taxativos) argumentos sobre as infinitas bondades e insubstituíveis vantagens da montra – para a profissão que se têm, para o negócio em mãos, para conhecer gente, fazer amigos, passar a cozinhar melhor ou aprender a dançar. Não duvido. Ainda bem. Por qualquer razão porém, nunca senti a falta da conexão non stop nem das vantagem que o estar na montra supostamente traz. Deveria interrogar-me, escrutinar-me, procurar um psicólogo? Estes desabafos serão, concedo, o cúmulo do reacionarismo. Paciência. As coisas são o que são. O meu fastio informático/tecnológico também é o que é.
5. E se cada vez mais tudo se passa vertiginosamente através dessa coisa glacial que é a superfície branca de um écran de computador ou do pequeno visor de um telemóvel, que resta do contar? Do conversar com alguém, face a face, lado a lado? Dessa coisa absolutamente formidável que é o comunicar físico, concreto? Que resta do gesto e do sorriso? Do verbo falado e não clicado? Dir-me-ão que a tecnologia não impede o “ao vivo” e eu direi que não impede porque já quase o substituiu. A vertigem de um aniquila a necessidade do outro.
Não se pode contar uma boa história, os ouvidos caíram em desuso; é quase esquisito perguntar por alguém, a resposta está no Facebook. Não se pode dar uma boa noticia — ou sequer uma noticia – contar uma história, avisar de um filme, recomendar um livro, relatar um episódio prosaico ou maravilhoso: já estão na montra. Até o prazer alegre de um reencontro com alguém que não víamos há muito é logo curto-circuitado: “não sabias? Mas pus no meu Facebook”.
6. E a “partilha”? Outro imperativo e também compulsivo. Não se chega a quase nenhum lugar hoje — seja ele de que natureza for, publico ou privado, institucional ou reservado — que não haja alguém a tirar selfies(outro tique) quase sempre com aparato e sempre com velocidade: é preciso tirá-las mas logo a seguir é imperiosamente preciso “partilhá-las”.
Uma colega espanhola que aprecio dava conta, em recente crónica, da estranheza que lhe provocara um almoço com uma jovem “millenial” (geração que nasceu com o século e acha que manda no mundo). Com desarmante franqueza a sua interlocutora garantia-lhe que de nada lhe interessava um belo pôr de sol, uma boa noticia, uma feliz viagem, uma descoberta, ou a bem dizer fosse o que fosse, se de imediato não pudesse tirar uma selfie, clicar e “partilhar” esse momento. A substância não era o momento vivido mas a sua instantânea partiha com uma plateia sem rosto e com “seguidores” sem nomes. Tudo menos guardar esse instante para si, saboreando interiormente a sua beleza ou singulariedade ou sequer comunicando-as com palavras e gestos a um qualquer alguém. Nada a fazer, está aí uma cartilha universal feita de (estupidificantes) sinais ou abreviaturas que pulverizam qualquer escrita. Mas que importância desaprender de escrever (e de pensar) ao pé de um”click”, poderoso e instantâneo? Não estamos nós conectados?
Alguns lugares públicos, hotéis, restaurantes, lojas, escaparates, montras, ateliers são hoje cuidadosamente tratados como um cenário, antes do mais. Encenados para ficar bem nas selfies. Tendo-se a sua prática tornado compulsiva e a sua necessidade visceral, há que jogar na antecipação, bolar o melhor enquadramento, apostar no melhor efeito.
Tem sido um êxito, segundo me contam.

7. Resta-me a consolação de não estar fora de jogo da cabeça. (Mesmo que possa parecer).

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