Bem longe estamos, nas
responsabilidades políticas que nos cercam, de democratas assumidos, conscientes
do nosso papel receptador de ideologias impondo diálogo, da visão alegremente
destrutiva sobre o brio nacional, configurada na personagem Dâmaso Salcede,
profundamente entalado, no desforço que Ega, o grande amigo de Carlos da Maia,
vai junto dele fazer, como castigo da sua perversão, maculadora, na sombra da denúncia
oculta, da honra de quem se considerara amigo, frequentador da sua sociedade,
que o elevava, na penúria social que nos distinguia e Eça alegremente descreve. E
transcrevo esse excerto do nosso riso perene:
«- Desdizer-me? tartamudeou o outro, empertigando-se, num penoso
esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá homem
que me desdiga!
- Perfeitamente, então bate-se...
Dâmaso cambaleou para traz, desvairado: - Qual bater-me! Eu sou lá
homem que me bata! Eu cá é a soco. Que venha para cá, não tenho medo dele,
arrombo-o...
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos
fechados e em riste. E queria Carlos ali para o escavacar! Não lhe faltava mais
senão bater-se... E então duelos em Portugal, que acabavam sempre por troça!»
Vem o introito a propósito da
tomada de posição de muitos de nós sobre as ideias independentistas que grassam
na Catalunha, protagonizadas pelo seu chefe de governo, Carlos Puigdemont, e
que Rui Tavares, no seu artigo de 11/10, “A nossa península já foi
sábia”, pretende resolver, democraticamente, com apelo ao diálogo:
«Admiramos Espanha, embora dela não tenhamos querido fazer parte. Não somos
parte interessada em que haja (ou não) independência da Catalunha. Mas somos
parte interessada, como portugueses e europeus, em que a nossa península saiba
ser sábia nestes momentos decisivos. Por isso temos de saber ser contidos e
portadores de boa vontade. E que é ser sábio nestas circunstâncias em que há
duas vontades inamovíveis e contrárias? Trata-se, é claro, de saber aproveitar
todas as oportunidades para o diálogo.»
Não é esse o ponto de vista de
Francisco Assis, que retrata os acontecimentos com a ponderação e o saber que
lhe reconhecemos, no artigo que segue, educado, justo e sábio, que tanto nos
transmite, na sua seriedade - apesar de tudo, ambígua.
Mas nestas questões de amor
pátrio, que cuido que a Espanha de todos os seus merece, eu diria, como o
Damasozinho Salcede, mas em desforço irado contra a impertinência independentista - apesar dos ditames condenatórios de Francisco Assis - como puro acto de má-fé: “Eu
cá é a soco”.
Opinião. Confiemos na democracia
espanhola
Francisco Assis
Público, 12/10/17
A Espanha de hoje nada tem que ver com o período franquista, época em
que predominou esse nacionalismo espanholista de má memória. Não o reconhecer
constitui um acto de pura má-fé política e intelectual.
Na semana passada, numa
sessão do Parlamento Europeu, vi-me obrigado a fazer uma defesa enfática da
democracia espanhola. Não estava nas minhas mais longínquas cogitações proferir
qualquer consideração acerca da chamada “questão catalã” enquanto
parlamentar europeu - se o fiz foi por um imperativo de consciência face aos
inusitados ataques que a extrema-direita e a extrema-esquerda europeias se
empenhavam em desferir contra o Estado espanhol. É óbvio que há um problema na
Catalunha. É um problema sério, com uma vasta ressonância histórica que
expede para as peculiares circunstâncias em que se processou e consolidou a
formação do moderno Estado espanhol. Se
é verdade que a Catalunha nunca foi independente - ou o foi em minúsculos lapsos temporais -
também é certo que um olhar para a história de Espanha nos relembra
imediatamente a importância da permanente tensão entre a vocação centralista
castelhana e a vontade oposta dos aragoneses em geral e dos catalães em
particular. Nós próprios, portugueses, conhecemos bem quão vasto e
perigoso é o ímpeto hegemónico castelhano. É por isso natural que haja
até na sociedade portuguesa uma certa simpatia pela reivindicação catalã, muito
reforçada, de resto, pela ideia de que em 1640 a revolta desse povo
mediterrânico acabou por ajudar à restauração da independência nacional.
Essa ligação à Catalunha reforçou-se do ponto de vista dos contactos
culturais no início do século XX, quando se chegou a manifestar a ideia
delirante da identidade entre os dois povos, o português e o
catalão. Tão excêntrico ponto de vista alicerçou-se na convicção de que só
na língua catalã existiria uma palavra capaz de traduzir em toda a sua
plenitude a palavra portuguesa saudade. Teixeira de Pascoaes, em
polémica com António Sérgio (e não só), invocou na altura o catalão Ignasi
Ribera i Rovira, grande conhecedor e amigo de Portugal, o qual afirmava
peremptoriamente que a palavra catalã enyorança constituía a única
tradução perfeita do nosso vocábulo “saudade”, e que este sentimento só era
próprio de catalães e portugueses. Pascoaes não excluía os galegos desse
conjunto, os quais considerava, porém, pertencentes ao universo cultural
português. Nessa mesma época, um dos principais nomes da cultura catalã,
o poeta Joan Maragall, preconizava o conceito de iberismo assente na ideia de
três grandes nações peninsulares: uma atlântica, correspondente à
Galiza e a Portugal, outra Castelhana e uma outra, mediterrânica,
constituída pelos países catalães. Maragall preocupou-se ainda em salientar as
similitudes entre os portugueses e os catalães, perspectivando-os como os dois
povos dotados de uma verdadeira inclinação marítima no contexto peninsular. O
já citado Ribera i Rovira foi ainda mais longe, concebendo um novo movimento
cultural catalão, o enyorantism, que constituiria a versão local do saudosismo
português criado por Pascoaes. Toda esta efervescência cultural ocorreu no
contexto da afirmação de dois movimentos intelectuais semelhantes: a
Renascença Portuguesa e a Renaixença Catalana.
É evidente que há uma grande
diferença entre um país que foi consolidando a sua independência ao longo
de quase nove séculos e uma região que verdadeiramente nunca garantiu essa
mesma independência. Ao longo da história, em particular nos últimos dois
séculos, os catalães beneficiaram das políticas proteccionistas adoptadas pelas
autoridades centrais de Madrid e, mau grado algumas momentâneas exasperações
nacionalistas, conviveram razoavelmente com a sua condição de parte integrante
do estado espanhol. A tentativa de estabelecer no plano político
qualquer paralelismo entre Portugal e a Catalunha é hoje profundamente
ridícula. Abstendo-me da formulação de qualquer juízo peremptório sobre
a pretensão catalã, sempre lembrarei que a mesma se tem vindo a alicerçar num
discurso nacionalista construído nas últimas décadas à boleia de um autonomismo
consagrado na Constituição democrático-liberal aprovada pelos espanhóis em
referendo, em 1978. Esse
nacionalismo não está infelizmente isento de alguma contaminação xenófoba,
exclusivista e nalguns casos extremos imbuída de um discurso que apelando à
genética se aproxima perigosamente das teorias racistas.
Uma vez mais não deixa
de ser curioso verificar a convergência de opiniões em relação à questão catalã
entre Joana Mortágua, Nigel Farage e um deputado açoriano do PPM que propôs a
aprovação de uma resolução recomendando ao governo português o reconhecimento
do direito da autodeterminação da Catalunha. No fundo, os três ignoram
um dado elementar: o carácter profundamente democrático do Estado espanhol que
resultou da Constituição de 1978. Não
deixa de ser curioso verificar como a nossa festiva extrema-esquerda se extasia
irrefletidamente com a mais pequena perspectiva de insubordinação civil. No seu
delírio púbere e pueril projecta na reivindicação catalã a utopia de uma
revolução eternamente falhada.
Estou certo de que os espanhóis acabarão por resolver pacificamente o
problema catalão, para grande frustração de algumas hordas extremistas que tudo
querem confundir. Foi este regime democrático saído da
transição pacífica e da constituição de 78 que permitiu à Catalunha e às demais
nacionalidades e regiões espanholas uma afirmação autonómica sem precedentes
históricos e sem paralelo na Europa. A Espanha democrática, liberal e
profundamente empenhada no projecto europeu saberá encontrar a resposta adequada
a uma questão que não pode nem deve ser ignorada. O consenso alcançado entre o
PP, o PSOE e os Ciudadanos aponta claramente nesse sentido. A perspectiva de
uma reforma constitucional agora aberta pelo entendimento alcançado entre os
dois maiores partidos espanhóis augura o surgimento de um novo modelo de
organização político-territorial capaz de atender às legítimas expectativas dos
próprios catalães. Confiamos na
democracia espanhola, que já deu provas de saber resistir a ameaças tão
sinistras como aquelas que se consubstanciaram no movimento golpista de 1981 e
no hediondo terrorismo protagonizado pelos extremistas nacionalistas marxistas
da ETA.
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