domingo, 29 de outubro de 2017

Não são mais instantâneos


Institucionalizaram-se. Vivemos sob os quadros permanentes de episódios como esses que Alberto Gonçalves tão alegremente descreve na sua verve corrosiva e certeira que nos sacode momentaneamente, no prazer da leitura, do torpor criado por tal statu quo da nossa rodagem diária de apatia, indignação ou indiferença perante as sequências da nossa imutabilidade, de prevaricação, acusação, miserabilismo, fado. Vicente Jorge Silva chama-nos de sonâmbulos, e também tem razão nas observações que transmite, sobre uma não premonição de catástrofe, ao nível das outras nações e da nossa, o que não se espanta, vista a nossa moleza pasmada. Espanta-nos a nossa cegueira, e António Barreto vai mais longe ainda, ao revelar, em referência ao centenário da revolução russa, a originalidade deste nosso pequeno país, único de aliança à esquerda, sempre impregnada esta do espírito implicativo contra os mais à direita, imperturbável tal esquerda, quanto à destruição do país, por ela perpetrada na paralisação grevista, de ódio entranhado e fútil, e na sua ficção de amoroso cuidado pelo povo sofredor, indiferente à divida e ao seu pagamento ao credor. E o texto elegante e severo de A. Barreto é apoiado na foto e explicações sobre a Stasi, transformada em museu de horrores, como símbolo de tudo isto.

1º TEXTO: Instantâneos de um país exótico
28/10/2017
As reacções do PS ao ralhete de Marcelo (de chamar-lhe jumento a acusá-lo de querer uma ditadura) foram as expectáveis no partido que tem Lula, Chávez e a Gorda do Frágil como exemplos de sofisticação
1. Dada a regularidade com que se indignam, é complicado mantermo-nos actualizados com as aflições dos indignados profissionais. Nos primeiros 50 ou 60 escândalos, uma pessoa ainda tenta prestar atenção ao sucedido. Após largas centenas, a tarefa mostra-se impossível – e, dado a histeria infantil normalmente em causa, escusada. Foi por isso que, em larga medida, a indignação desta semana me passou ao lado. No máximo, percebi que um juiz invocou a Bíblia e o adultério para justificar o espancamento de uma mulher. Uma tristeza? Evidentemente. À primeira vista, e por uma vez, os indignados profissionais pareciam ter razão. À segunda vista, infelizmente, não têm nenhuma.
O problema é muitos dos e das feministas agora revoltados com a coutada do macho ibérico (cito outro magistrado) são, salvo excepções, os mesmos que respondem com acusações de racismo, xenofobia aos que hesitam em considerar o islão uma religião amiga das senhoras e propensa à tolerância em geral. E, desculpem lá, não é muito coerente atacar o juiz que decreta umas atoardas sem fundamento legal e, em simultâneo, acarinhar a cultura que legalmente recomenda a lapidação pedagógica das adúlteras.
Não é coerente nem é compreensível. A menos que, como costuma acontecer, os indignados profissionais possuam critérios de avaliação variáveis de acordo com a crença/ etnia/ideologia/naturalidade/ o que calha de vítimas e carrascos. Talvez os indignados profissionais achem que as mulheres portuguesas merecem mais consideração que as muçulmanas. Talvez achem que os homens portugueses batem mal. Talvez achem que os muçulmanos batem melhor. Certo é que os indignados profissionais não parecem bater bem.
2. O sr. Sócrates é um caso. Ou inúmeros casos. Apenas numa semana, com e sem escutas, aprendemos que: 1) a Ordem do ramo não considera o sr. Sócrates engenheiro, etiqueta a que aliás meio país só recorria por galhofa; 2) uma das diversas senhoras das relações do sr. Sócrates, que como as restantes se servia do homem para fins materiais, em matéria sentimental preferia Claudino, emigrante e trabalhador da construção civil; 3) um tal prof. Domingos, autor do primeiro livro do sr. Sócrates (esta frase é estranha em qualquer contexto excepto neste), negou que a “obra” tivesse sido escrita em francês, conforme o ex-primeiro-ministro garantiu para dar “prestígio”; 4) o sr. Sócrates assinou (aqui o termo é literal) novo livro, e embora ainda se desconheça o autor, o título (“O Mal que Deploramos”) parece autobiográfico – e não é; 5) o sr. Sócrates tinha na CGD uma gestora de conta invejável e intransmissível, que lhe dispensava quantias gordas a tempo de pagar jantares e casacos Prada; 6) o sr. Sócrates não fazia ideia do dinheiro que (não) possuía, estratégia que de resto adoptou no governo da nação. Entre esquemas toscos, mentiras pegadas e restante parafernália pirotécnica típica dos fura-vidas, o sr. Sócrates construiu uma figura pública e privada que, desculpem lá, tem a sua graça. Aos que acusam o indivíduo de prosperar à custa dos outros, e provavelmente à nossa, respondo que, se calhar, valeu a pena: o abundante divertimento que o homem regularmente proporciona não podia ser gratuito. Podia, admito, ser um pouquinho mais barato. Mas de borla ninguém consegue nada (ninguém, vírgula).
3. Sobre os fogos e as vítimas dos fogos e as causas dos fogos, ouvi as explicações de centenas de especialistas e não liguei a nenhuma. Liguei à fornecida por Catarina Martins, que sem meias palavras culpou os “preceitos neoliberais” pelas tragédias. É evidente que a tese faz tanto sentido quanto responsabilizar o sr. Trump pelo violador de Telheiras, ou a Autoeuropa pelas sobremesas no Rei dos Frangos. Mas não resisto a admirar quem passa a vida a proferir insanidades só para ser aplaudida em cursos de sociologia e alas psiquiátricas. Pode-se investigar a espécie de carreira da dona Catarina, ou pegar na senhora pelos pezinhos e agitá-la com vigor, que dali não sai, nunca saiu, o esboço de uma ideia pertinente, ou sequer discutível. São anos e anos de disparates sucessivos, sem intervalos para respirar e, sobretudo, pensar. É preciso coragem. Ou lata, consoante a perspectiva. Não há embaraço ou qualquer outra forma de comedimento que impeçam a dona Catarina de enfrentar microfones e, naquele jeito pré-apoplético que celebrizou o seu antecessor, aliviar-se da coisa mais absurda que lhe atravessa a cabecinha. Uma pessoa comum teria, por assim dizer, vergonha. A dona Catarina não é uma pessoa comum: é a pessoa certa no lugar certo, embora o curso de sociologia ou a ala psiquiátrica também não fossem errados.
4. Por falta de formação adequada e interesse, não tenciono acrescentar nada à análise das “relações” entre o governo e o presidente. Limito-me a notar que, por um lado, as reacções do PS ao ralhete do prof. Marcelo (as quais oscilaram entre chamar-lhe jumento ou acusá-lo de querer implantar uma ditadura) foram as expectáveis num partido que tem Lula, Chávez e a Gorda do Frágil como exemplos de sofisticação. Por outro lado, noto ainda que no vergonhoso período que separou Pedrógão Grande do ralhete o prof. Marcelo fez o possível e mais um bocado para proteger a “entourage” do dr. Costa. E que, mesmo depois do ralhete, o abraço apertado à ministra enxotada manchou seriamente a franqueza dos abraços que, a benefício dos fotógrafos e da popularidade, o prof. Marcelo andou a distribuir pelos sobreviventes da desgraça. Ao desprezar, por estratégia ou convicção, a incúria que causou a primeira vaga de mortos, o prof. Marcelo absteve-se de impedir o desleixo criminoso na origem da segunda. É por isso que é inútil, e algo triste, o empenho de tantos em prever o futuro da famosa “estabilidade institucional”. Útil seria compreender o passado da sociedade que permite uma estabilidade assim e, sem trocadilhos, instituições assado.

2º Texto: Opinião. Novos sonâmbulos ibéricos
Vicente Jorge Silva
Público, 8/10/17
Quer os dirigentes catalães, quer os dirigentes espanhóis, foram avançando em estado de automatismo inconsciente em direcção ao precipício.
Há precisamente três anos escrevi um texto, “Os novos sonâmbulos”, publicado no Sol, que tinha como ponto de partida um dos mais importantes ensaios sobre os motivos que conduziram à Grande Guerra de 1914-18. Christopher Clark mostrava aí até que ponto os dirigentes internacionais se tinham comportado como sonâmbulos (é, aliás, o título do livro) nessa caminhada para o abismo que culminaria na maior catástrofe da história europeia antes da Grande Guerra seguinte. Ora, essa intuição genial e absolutamente certeira do sonambulismo político acabaria por revelar-se perfeitamente ajustada à análise de outros fenómenos mais recentes.
Nesse artigo de 2014Os Sonâmbulos de Clark apareciam reencarnados na crise da Ucrânia, depois de o terem sido na invasão do Iraque ou no terramoto financeiro de 2008, sem esquecer a forma como foi gerido o problema das dívidas soberanas na Europa e, em particular, o caso grego, através de uma política cega de austeridade punitiva (a que Portugal também esteve submetido).
Ora, os sonâmbulos estão hoje de regresso — se é que o não estiveram sempre, afinal — através desse caso-limite que é Trump, do “Brexit”, das ameaças de um conflito nuclear entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos ou, ultimamente, do divórcio anunciado entre a Catalunha e Espanha. Este derradeiro exemplo é, de resto, uma ilustração acabada, embora ainda relativamente benigna, da tese de Clark sobre o sonambulismo que fez desencadear a primeira Grande Guerra. Quer os dirigentes catalães, quer os dirigentes espanhóis, foram avançando em estado de automatismo inconsciente em direcção ao precipício, não cuidando do risco irreparável dos passos que davam sem poderem voltar para trás ou perder a face. Chegou-se, assim, a ultrapassar a fronteira da racionalidade, onde a paz civil parece agora dependente da capacidade de persuasão que a mobilização popular através do território espanhol e catalão conseguir afirmar contra o irremediável.
Vizinhos ibéricos, é natural que o drama catalão nos interpele, embora seja de temer a preponderância das emoções — e do empolamento dos afectos — sobre a razão. Aliás, num registo bem mais pacífico, felizmente, os recentes resultados autárquicos já precipitaram os dois partidos perdedores das eleições numa deriva de sonambulismo.
Simultaneamente refém da “geringonça” e da hora da verdade do seu inevitável declínio histórico — a que foi conseguindo sobreviver enquanto os seus congéneres europeus desapareciam do mapa —, o PCP parece perdido na encruzilhada. É um sonâmbulo incapaz de perceber que o seu agressivo ressentimento pós-eleitoral contra socialistas e bloquistas apenas reflecte o temor de encontrar-se num beco sem saída.
Já o PSD volta a defrontar-se com uma das suas cíclicas crises de identidade que têm origem nos próprios genes do partido, dividido entre uma social-democracia mítica, nunca verdadeiramente encarnada — e estando esse espaço ocupado pelo PS —, e um liberalismo sem doutrina verdadeiramente assumida. Não é por acaso que a sigla PPD/PSD continuou a ser invocada por personagens tão diversas como Santana Lopes e Alberto João Jardim, ou ainda que no deserto das ideias que hoje impera no partido já se sinta crescer, como alternativa de sobrevivência, a tentação populista. Sonâmbulo, ainda em busca de si mesmo, o PPD/PSD nunca resolveu o seu drama original de que, aliás, Sá Carneiro foi o emblemático protagonista. E as sucessivas (e calculistas) desistências na corrida à sucessão de Passos Coelho são também um reflexo desse drama original. 

3º Texto: A Revolução de Outubro em Lisboa
António Barreto
DN, 29/10/17
Não se pode dizer que tenha sido deliberado, mas a greve geral da função pública desta semana, convocada pela CGTP, com o distraído apoio do Bloco, é uma maneira de comemorar o centenário da Revolução de Outubro que agora se celebra, entre o Outubro gregoriano e o Novembro ortodoxo. É um dos mais importantes acontecimentos da história contemporânea, um dos mais sanguinários episódios do século XX e uma das mais negras páginas da história da liberdade!
Os centenários costumam ser gloriosos! Este não é o caso. Na Rússia, na China, em Cuba ou na Coreia, a passar-se alguma coisa, serão demonstrações melancólicas e pífias. Em Portugal, há uns filmes de Eisenstein na televisão, uns livros reeditados de Álvaro Cunhal e uns breves escritos de políticos portugueses ligados ao Bloco. É pouco, mas é o que há. Mais importantes são as traduções de autores de renome, Pipes, Service, Conquest, Carrère D"Encausse, Furet, Sebag Montefiore, Figes e Fitzpatrick, entre outros.
A maneira portuguesa de comemorar a grande revolução consiste bem mais na existência de um governo socialista apoiado pelo PCP e pelo Bloco. É um dos raros exemplos, talvez mesmo o único, em que colaboram três das mais antigas variedades de comunistas, trotskistas, estalinistas e maoistas. Não directamente, pois não se sentam à mesma mesa, mas através do mediador PS. As relações entre os três foram sempre venenosas e violentas. Da Catalunha a Pequim, de Coyoacán a Havana, de Hanoi à Manchúria, as relações entre estas três tendências do marxismo-leninismo foram pautadas pela extrema violência e pelo assassínio puro e simples. O facto de se encontrarem associadas ao governo socialista, ele próprio com uma tradição de hostilidade por parte daquelas espécies comunistas, é digno de atenção. O que torna este caso ainda mais curioso é a sua insignificância na política internacional. Na verdade, já quase não há estalinistas. Maoistas ainda existem em quantidade, mas na China, pois claro. E trotskistas encontram-se em extinção rápida. Na verdade, as três liturgias são quase inexistentes.
Portugal é caso único na Europa e raro no mundo. Os resultados eleitorais são fascinantes. Um pouco mais de 8% para os estalinistas do PCP; mais de 10% para os trotskistas e maoistas do Bloco; e uma coligação de ambos, separadamente, com os socialistas, constitui uma singularidade tão especial quanto um último exemplar do dodô. Como naqueles filmes do parque jurássico em que animais extintos são trazidos à vida contemporânea. A centenária revolução legou à humanidade uma formidável obra política, cultural, social e ideológica: o comunismo real. Este teve uma enorme influência nas vidas dos povos e dos Estados. Ao fim de cem anos, essa incontornável realidade do século XX jaz no "caixote do lixo da história". Desapareceram o "homem novo" e o "futuro radioso", com custos e perdas que se elevam a dezenas de milhões de mortos pela força bruta, pela fome deliberada e pela doença! E dezenas de milhões de prisões, de deportados, de execuções e de assassínios.
Portugal é um dos raros sítios do mundo onde há comunistas (estalinistas, maoistas e trotskistas) activos, reconhecidos e a exercer funções em regime democrático. Minoritários, mas, ao que dizem, com esperanças de aumentar a sua influência no governo socialista. Há dois anos que se iniciou um ensaio de participação no poder. Se esta experiência trouxesse uma verdadeira conversão dos comunistas à democracia, à Europa, aos direitos individuais, à liberdade e à iniciativa privada, Portugal assistiria a um fenómeno interessante para o nosso futuro. Se acontecesse o contrário, isto é, a conversão dos socialistas às crenças dos seus aliados e à complacência com as liberdades reduzidas, a democracia vigiada e o primado do Estado, então sim, estaríamos em presença de um acontecimento único na história dos povos e da Europa.

Visita guiada ao Museu da STASI, em Berlim
ANTÓNIO BARRETO
A Stasi (Ministério da Segurança do Estado) era, até ao derrube do Muro de Berlim, a polícia política, de informações e de espionagem da República Democrática Alemã, ou antes, da Alemanha comunista. Eram cerca de 92 mil agentes e 170 mil informadores. O seu chefe durante 35 anos foi o famigerado torcionário Erich Mielke. Hoje, a antiga sede alberga um museu onde se podem ver milhares de objectos, fotografias, fichas, equipamentos, gravações e registos da que foi uma das piores polícias do mundo moderno. Os seus requintes de malvadez incluíam uns milhões de frascos com algodão em rama que tinha sido embebido com suor dos presos (que transpiravam de medo durante os interrogatórios...). Os frascos estavam identificados e selados. Quando a polícia procurava alguém, abria o frasco, dava a cheirar aos cães especializados e lá iam buscar os pobres diabos... Nesta imagem, no átrio da entrada, à volta de uma maqueta dos edifícios, um grupo de jovens estudantes ouve as explicações dadas pela professora. 
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