quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O politicamente correcto da nossa subserviência


Sempre os panos quentes das designações elitistas! Sociopatas? Porque não apenas “ladrões”, e por consequência incluídos no grupo dos assaltantes vulgares, embora escondidos sob a rede dos muitos laços e volteios propícios ao esconderijo da maralha? Cá como lá, em Moçambique, cuja governação se faz no cadinho do enchimento pessoal das elites governamentais, tal como, de resto, em Angola, salvo as respectivas disparidades económicas, já que nesta, a exploração de matérias primas se iniciou mais cedo, o que teve efeitos imediatos sobre as bolsas dos seus governantes sucedâneos à descolonização. Moçambique, mais afastado e por isso mais votado ao abandono no tempo da colonização, não deixou hipóteses aos seus governantes sucessores, em termos de enchimento da própria bolsa, a não ser a partir das ajudas monetárias alheias, não das explorações de bens que os povos estrangeiros se propõem fazer por lá agora, afinal também no seu próprio proveito, que para isso serviram as descolonizações também, para o desenvolvimento económico dos povos ricos do mundo, que se apressam a pegar no que os portugueses  deixaram por fazer, mais virados então para a “Angola é nossa” da nossa proximidade.
Por cá, sem matérias primas, voltados para os dinheiros emprestados de uma União Europeia propícia, construímos, sim, e desenvolvemos, mas as construções esconderam os cambalachos da nossa “sociopatia” elitista. Daí que associe os dois textos acusadores, do “Público de 13 / 10,  pela identidade de comportamentos das respectivas chefias – o de Bárbara Reis - «O silêncio de Moçambique tem outro nome»e o de Rui Tavares - «Podemos passar pelo “caso Sócrates” sem tirar lições?».
Cá, como lá, só que lá o povo, que se pretendia desenvolver de facto, após a expulsão do branco, nada pode fazer, na humildade da sua condição, em face dos ditadores esquecidos das suas promessas da altura.

OPINIÃO
O silêncio de Moçambique tem outro nome
Este ano, até Portugal suspendeu a sua contribuição anual para o Orçamento do Estado moçambicano, uma rotina com quase 15 anos.
Bárcara Reis
Coffee break
Público13 de Outubro de 2017
No Índice da Democracia da Intelligence Unit da Economist, Timor-Leste está muito bem classificado: com apenas 15 anos de independência, é a 7ª “melhor” democracia da Ásia e 1ª no sudeste asiático. Espanta se pensarmos na corrupção, nos escândalos do sistema judicial e nas intrincadas histórias de ex-ministros acusados de fugirem à justiça, refugiando-se em Portugal. Mas ao contrário de muitos dos seus vizinhos, em Timor as campanhas eleitorais são pacíficas e os rivais políticos não se matam uns aos outros.
A fasquia é baixa, mas é o que é.
Numa lista que tem a Noruega em 1º lugar e, no fim, a Coreia do Norte em 167º, Timor está em 43º. Os critérios são discutíveis e este índice é apenas uma ferramenta, entre muitas, para olhar o mundo. Avalia os processos eleitorais e o pluralismo; o funcionamento dos governos; a participação política; a cultura política, e as liberdades cívicas — com tudo o que isso tem de subjectivo. Cabo Verde, o menino bonito da CPLP nos índices internacionais, está um degrau acima da França (é 23º). E Portugal (28º) entra no grande grupo das “flawed democracy” (democracia com falhas), tal como os EUA, e não no pequeno clube dos que têm uma “full democracy” (são 19).
Abaixo destes estão os “regimes híbridos” e os “regimes autoritários” — são 91. É aqui que está Moçambique, quase pousado na linha que separa o amarelo do vermelho.
Neste caso, não surpreende. Moçambique é um país em stand-by, onde os esquadrões da morte fazem parte do dia-a-dia e os políticos temem pela sua vida. Mahamudo Amurane, presidente do município de Nampula, o terceiro maior do país, e membro da Comissão Política Nacional do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), acaba de ser assassinado a tiro. Tinha fama de incorruptível e, dias antes do assassinato, fez um longo discurso público no qual acusou o seu próprio partido de corrupção. Em Moçambique, há deputados da Assembleia da República que têm medo de ser envenenados e que, em cerimónias públicas, não bebem nem comem nada que não seja servido a todos. Poderá ser excesso de zelo ou paranóia, mas é assim que está a democracia moçambicana.
Há um ano, a directora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, encontrou-se com o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, para discutir os “desafios económicos” do país. Isso aconteceu três meses depois de terem desaparecido dos cofres do Estado dois mil milhões de euros num complexo esquema de empréstimos escondidos. Não é gralha. Foram dois mil milhões. Na altura, Lagarde disse que Maputo tinha de fazer “esforços mais decisivos para melhorar a transparência” e exigiu que o governo colaborasse numa auditoria internacional e independente às empresas que foram financiadas por dois bancos europeus, um suíço e um russo.
Há anos que os doadores que apoiam Moçambique se queixam de nada mudar no país e, sobretudo, de não verem o mínimo esforço para tentar que algo mude. O descontentamento é tal que chegou a falar-se da “greve dos doadores”. Agora é diferente. O escândalo dos “dois bis” atirou Moçambique para um patamar nunca visto. Até Portugal suspendeu a sua contribuição anual para o Orçamento do Estado moçambicano (entre 2004 e 2015, Lisboa doou 13,28 milhões de euros nesta linha de apoio — que não inclui os apoios sectoriais na educação e saúde), em linha com o G14, que suspendeu o pagamento para 2016.
Ainda só se conhece o sumário executivo do relatório da auditoria internacional (da Kroll), mas o que lá está não é bonito de se ler. Logo na página 15, a Kroll diz que há "gaps" que impedem compreender "exactamente como é que os dois mil milhões de dólares foram gastos", mas que a diferença de preços entre os bens e serviços descritos nas facturas e os seus valores de mercado é de 713 milhões de dólares.
Moçambique está a fazer um jogo arriscado. A sua riqueza natural (petróleo, gás, carvão) precisa de investimento estrangeiro e as grandes empresas querem investir. Estão aliás com o pé na porta a marcar posição. Mas o tempo passa e Maputo parece paralisado e incapaz de agir. E, no meio de tudo isto, entre o desespero e o desnorte, não responde sequer às démarches diplomáticas de Portugal sobre o empresário português desaparecido na Beira há mais de um ano. Em 2013, dizia-se que o sol ia brilhar em Moçambique em 2017. Agora, diz-se que será em 2020. Quando lá chegarmos, falamos.


Opinião.
Podemos passar pelo “caso Sócrates” sem tirar lições?
Rui Tavares, Historiador, Fundador do Livre
Público, 13/10/17
Se o que sabemos das quatro mil páginas for verdade, não estamos num quadro de patifaria sistémica mas estaríamos sem dúvida perante um caso de banditismo de elite.
Que valem quatro mil páginas de uma acusação por corrupção e vários outros crimes ao ex-primeiro ministro José Sócrates, Ricardo Salgado do BES, vários administradores da PT e uma vintena de outros arguidos? A resposta não é a mesma consoante o ponto de vista social, jurídico ou político. Socialmente, as quatro mil páginas sedimentam uma percepção de culpa. Do ponto de vista jurídico elas só passam a valer se vier a haver uma condenação, algures na próxima década.
Do ponto de vista político, elas marcam o momento em que temos de começar a tirar lições, não sobre a culpabilidade ou não de José Sócrates, mas sobre “o caso Sócrates”. Com uma precaução: que fique muito claro que quando digo “do ponto de vista político” não me refiro à atividade político-partidária quotidiana. Refiro-me às lições de política para a nossa democracia e para a integridade do nosso sistema político.
Só vamos saber se o que está nas quatro mil páginas é verdade daqui a muitos anos. Mas se aquilo que a imprensa séria resumiu a partir das quatro mil páginas é plausível e possível, temos de deliberar e decidir sobre como proteger a sociedade — e a própria República — contra um tipo de crimes que terão lesado milhões de vítimas. Sim, milhões de vítimas. Se a acusação for verdadeira, a linha de vítimas é tão longa que vai desde os cidadãos que foram manipulados por um chefe de governo, aos contribuintes que pagaram para sanear os atos de má gestão de administradores de topo do BES, ao país que perdeu uma empresa como a PT, aos trabalhadores que estão a ser mandados para casa por uma Altice que comprou por uma ninharia o património económico que os alegados criminosos terão destruído.
Se o que sabemos das quatro mil páginas for verdade, não estamos num quadro de patifaria sistémica (para o qual teríamos de ter milhares de nomes e não uma vintena deles) mas estaríamos sem dúvida perante um caso de banditismo de elite. Levado a cabo por gente que acreditaria que as regras das pessoas normais não se aplicavam a eles, num quadro mental que não sei descrever de outra forma senão como equivalente ao de verdadeiros sociopatas, capazes de compartimentar as suas atitudes, comportamentos e círculos de informação para, basicamente, pilhar os cidadãos comuns. Nesse caso, precisamos de saber como proteger a democracia de comportamentos criminosos como estes. Porque o dano que eles podem causar não se mede só em muitíssimo dinheiro, mas em algo de ainda mais grave que é a violação do próprio pacto de convivência republicano.
De facto, mesmo que o que sabemos das quatro mil páginas não tenha sido verdade, mas seja apenas plausível, demasiadas coisas estão por fazer, porque demasiadas coisas terão possivelmente falhado. Os nossos governantes não foram suficientes escrutinados nem fiscalizados. Os conselhos de administração de empresas públicas não foram suficientes independentes nem transparentes. As pessoas que poderiam ter identificado irregularidades ou comportamentos suspeitos não estavam suficientemente protegidas para poderem denunciar em segurança. E a nossa democracia — na qual, lembre-se, alguns dos nossos concidadãos reelegeram há menos de duas semanas um autarca condenado — não está suficientemente protegida para que o dinheiro obtido criminosamente não venha no futuro a comprar poder político, mesmo no topo da hierarquia.
Sobre Sócrates e os outros acusados, só devemos querer o que é justo: que seja condenado, se for culpado; que seja absolvido, se for inocente ou não se conseguir provar a sua culpa. Sobre o caso Sócrates e aquilo que a acusação da “Operação Marquês” nos mostra ser possível ou até plausível, temos obrigação de tirar lições mais rápido.


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