Não gosto de livros
“pesados”. “O Processo” foi um
desses, que li por dever de ofício, quando me encantava com a prosa amena da
Simone de Beauvoir e com as peças de teatro do Sartre, cuja superioridade
intelectual e liberdade de espírito me deixavam atónita e encantada por me
proporcionarem vivências em que eu me revia e crescia, a admirar essa França
esplendorosa de tantos escritores do meu prazer e alegria, pois, tirante um ou
outro mais “charmoso” nosso, achava os nossos escritores sombrios e enfadonhos,
sem a imaginação e a graça crítica de tantos escritores franceses, quer nas peças dramáticas ou nas
suas narrativas, que até mesmo um “roman fleuve” como “Les Thibault” ou o “Jean
Christophe” consegui ler, na adolescência, como lia e relia os livros de Júlio
Dinis, do meu afecto. Mas “O Processo” de Kafka” aterrou-me, tal como o
“Big Brother” do «1984» de George Orwell, que enredava os pobres mortais numa
manipulação sem tréguas, em simbologia esmagadora de um mundo absurdo,
estupidamente totalitarista e vigilante, de permanente e assustadora repressão.
“1984” foi um livro de predição, escrito mais de quarenta anos antes, sabemos
bem como o olho assustador dos chefes e da tecnologia agarram hoje o homem e já
não é só ao nível dos que comandam, a Internet desflorando a nossa reserva ou
intimidade, até ao nível das nossas perturbações físicas ou psicológicas ou da
medicação receitada pelos médicos, os media dando conta do resto, sobretudo nos
desgraçados eleitos sociais que o jornalismo enreda para a recreação e
curiosidade do público, “big” qualquer coisa, em permanente alerta coscuvilheira,
não tão assustadora, todavia, e proporcionando até bem-estar espiritual, porque
acompanhada de fotos esplendorosas.
Paulo Tunhas não trata,
porém, do “1984” nem do “Triunfo dos Porcos”, únicos que li de
George Orwell, mas das suas “Notas sobre o nacionalismo”, cuja
definição, exposta por Paulo Tunhas, reduz os homens a “insectos humanos” em
rixa partidária, para ironizar sobre o “nacionalismo” catalão, na ordem do dia,
e todos os outros nacionalismos, apesar de ser, quanto a mim, sem preocupações
filosóficas, apenas um produto de amor por um território a que tantas coisas e
pessoas nos ligam, do passado e do presente.
Já José Milhazes,
em «Putin não esconde ingerência na Catalunha» expõe
sobre um tema de que mais articulistas trataram, no OBSERVADOR, a Catalunha
estando na ordem do dia, numa independência aparentemente gorada, por agora.
São artigos de leitura
enriquecida pela perspectiva filosófica, especialmente o primeiro, mas, para
terminar numa perspectiva optimista, de sentimento compartilhado, transcrevo um
parágrafo saudável e corajoso de um jovem estudante de Direito, que teve o
desassombro de dizer o seguinte, de Passos Coelho, sem receio de
represálias de nenhum Big Brother repressivo:
«A saída de cena de Pedro
Passos Coelho é um enorme terramoto político. Passos é o homem que derrotou
Sócrates, venceu o resgate e liderou a oposição, após chefiar dois governos. É
difícil escrever-lhe um elogio que não pareça uma despedida. A verdade é que
sempre me descobri na posição embaraçosa de admirar nele o que toda a gente
detestava: a gravidade institucional, que sempre me pareceu mais respeitável
que a política de afectos; o discurso pedagógico, feito para instruir e não
para vender; a persistência teimosa, que sobrepunha a ética ao cálculo de
ocasião. (in A direita do futuro, por António Pedro
Barreiro. OBSERVADOR, 7/10/2017.
Nacionalismos
12/10/2017
Sem originalidade
alguma, pus-me, por causa do que se passa na Catalunha, a ler e a reler George
Orwell. Por causa da Catalunha e, mais ainda, por causa do nacionalismo em
geral. Tinha lido há muito tempo as “Notas sobre o nacionalismo”, de 1945, que
recuperam, sob a forma de ensaio, várias coisas que se encontram já nos seus
escritos jornalísticos. Reler o texto Orwell, que é, para além do resto, um
grande ensaísta, foi um prazer e, sob um aspecto ou outro, uma surpresa.
A surpresa vem do facto de
a definição de nacionalismo que Orwell desenvolve ser declaradamente
idiossincrática. Para ele, o nacionalismo significa, antes de tudo o mais,
“o hábito de assumir que os seres humanos podem ser classificados como
insectos” e a adesão a um grupo particular de seres humanos em oposição aos
outros. O que é curioso é que tais grupos, aos olhos de Orwell, não são
forçosamente as nações. Dito de outra maneira: o nacionalismo não se limita
a ser, embora obviamente o possa ser, uma versão degradada do patriotismo. O
nacionalismo pode ter por objecto o proletariado, o anti-semitismo, as várias
religiões, e por aí adiante. A descrição dos hábitos mentais nacionalistas,
governados pela obsessão do “prestígio competitivo” e pelo desejo do poder,
ocupa um lugar central no ensaio. E, dada a latitude do conceito tal como
Orwell o emprega, há muita coisa que o ensaio nos ajuda a pensar, para além dos
fenómenos nacionalistas na sua acepção mais comum.
Claro que o motivo do
prestígio competitivo tem muito a ver com o nacionalismo catalão, por exemplo.
Como tem a ver com o nacionalismo catalão a obsessão de espalhar a sua própria
língua em oposição às outras línguas. Ou ainda o facto de, segundo Orwell,
os nacionalistas mais extremistas terem muitas vezes origens distintas das do
país que se torna o objecto da sua fixação (Hitler, é claro, vem imediatamente
ao espírito, tal como Estaline). Orwell chama a isto “nacionalismo
transferido”. Na mesma linha, os movimentos fascistas receberam no seu seio
muita gente vinda do comunismo. A necessidade absoluta de fixação permite uma
deslocação de objecto, que não implica de forma alguma uma transformação dos
hábitos mentais e das emoções.
Mas outros aspectos do
nacionalismo, tal como Orwell o entende, aplicam-se também a casos que nada têm
a ver com o nacionalismo tal como habitualmente entendido. Tomemos o exemplo da
“indiferença à realidade”. Central para o nacionalismo é a convicção que o
passado pode ser alterado (um tema central, como se sabe, em 1984) e que a
versão que se adopta deste pode não coincidir com a informação disponível a
todos mas corresponde à maneira como o passado se apresenta aos olhos de Deus.
Deste modo, o mais indisputável facto pode ser negado e a indiferença para com
a verdade objectiva goza do privilégio de ser total. Por exemplo: o pacto
germano-soviético de 1939 não existiu, ou a defunta URSS encontrava-se virgem
de qualquer campo de concentração.
Há factos que são, para o
nacionalista, literalmente insuportáveis e que se trata de negar da forma mais
radical possível. Pensemos no Portugal dos nossos dias, mais concretamente
na vinda da troika. No discurso dos nacionalistas do PS, é como se ela não
tivesse existido e não tivesse sido chamada pelo governo de Sócrates. Sócrates,
de resto, apesar de toda a aparência em contrário, particularmente gritante
desde ontem, parece também nunca ter existido. Seus ex-ministros e actuais
ministros de Costa (e o próprio Costa, seu ex-número dois), quando obrigados a
falar dele evitam pronunciar-lhe sequer o nome. A quase bancarrota socrática
não teve lugar. A troika foi uma invenção de Passos Coelho, uma sua criação ex
nihilo. Muito do ódio (digo bem: ódio) a Passos Coelho resulta do facto de ele,
que liderou o combate à catástrofe, ser uma testemunha viva da sua existência.
Para o pensamento mágico socialista, a sua substituição por outro líder do PSD
era um imperativo nacionalista. Um pouco como se, queimando a efígie dele, o
passado pudesse ser modificado.
Para além da descrição
dos hábitos mentais nacionalistas, Orwell oferece uma sua tipologia:
nacionalismo positivo, nacionalismo transferido e nacionalismo negativo.
Não faria sentido estar aqui a comentá-la e por isso limito-me a mencionar um
aspecto que Orwell refere e com que lida em vários outros lugares também, sobretudo
em conexão com o anti-semitismo, sobre o qual muito escreveu: o facto de o
nacionalismo ser uma tendência ou uma atitude mental “que existe em todas as
nossas mentes e que perverte o nosso pensamento sem necessariamente ocorrer no
estado puro ou operar continuamente”. O nacionalismo pode ser “intermitente e
limitado”.
É interessante que o que
Orwell diz coincide em larga medida com aquilo que Sartre (cujo livro sobre o
anti-semitismo Orwell, noutro lugar, critica) escreve sobre a má-fé em O ser
e o nada. Também a má-fé corresponde a uma disposição original do espírito que
podemos observar em nós mesmos. E, tal como o nacionalismo segundo Orwell, ela
é, no comum das pessoas, intermitente e limitada. Também ela visa a exclusão do
outro. Em Sartre, a transformação do outro numa coisa, a sua petrificação.
Também ela transforma o outro num ente que, o que quer que faça, só pode
manifestar uma natureza negativa. Nos tempos do Presidente George W. Bush,
contava-se uma anedota óptima. O Presidente Bush recebe o Papa e com ele dá um
passeio de barco. Súbito, um golpe de vento faz voar o chapéu do Papa para a
água. Bush sai do barco, caminha sobre a água, pega no chapéu e volta para o
barco, caminhando de novo sobre a água. Título dos jornais do dia seguinte: “O
Presidente Bush não sabe nadar”.
Muito do que Orwell diz
sobre os vários nacionalismos ajuda-nos a perceber o que se passa no mundo e em
Portugal, mesmo em relação aos mais recentes acontecimentos. Certamente mais do
que ouvimos, por exemplo, nos programas televisivos de Marques Mendes, cada vez
mais o Rui Santos do comentário político, sem as curiosas qualidades do
original. Agora que o leninismo do Outubro catalão parece ter chegado a um
impasse (o estudo das doutrinas do mestre e a sua aplicação cuidadosa não
garantem a posse do génio dele) e, embora o perigo continue bem real, o
ridículo tenha tomado conta da cena (independência fumada, mas não inalada),
vale mesmo a pena ler Orwell. Porque os profissionais do costume e os idiotas
eventualmente úteis continuam activos e é preciso compreender os seus hábitos
mentais. Tanto mais que a propaganda não pára. É ver, por exemplo, o que a
Economist, que, é verdade, tem o hábito de ser cega a muitos aspectos da
realidade política, diz sobre a situação espanhola e particularmente sobre a
violência policial a 1 de Outubro. Dá a impressão que nem uma só linha de
Lenine lhes passou alguma vez sob os olhos. Quando nada daquilo, planeado ao
milímetro, se percebe sem referência a ele. Orwell, nisto como noutras
coisas, ajuda imenso.
Putin não esconde ingerência na Catalunha
OBSERVADOR, 27/10/2017
Não obstante todas as
declarações em sentido contrário, é evidente que o Presidente russo tudo faz
para acabar com a União Europeia ou para paralisar a sua já ineficaz política
interna e externa. A ingerência da Catalunha é disso mais uma prova.
Nas palavras, a
diplomacia russa defende a integridade da Espanha e a solução do estatuto da
Catalunha através do diálogo, mas Vladimir Putin não recorre a “paninhos
quentes” e exerce ingerência de forma ostensiva nos destinos da Península
Ibérica.
“Uno de los políticos afines a Vladímir Putin,
fundamental en la estrategia rusa de anexionarse territorios de antiguas
repúblicas soviéticas, ha visitado Barcelona esta semana con la intención de
establecer lazos entre la órbita del Kremlin y una posible Cataluña
independiente, según fuentes de la inteligencia española. Dimitri Medóev,
funcionario osetio afín a Moscú y ministro de facto de Exteriores de la
república irredenta de Osetia del Sur estuvo de visita oficial en Cataluña
lunes y martes y abrió una oficina para establecer relaciones
bilaterales”, escreve o diário El País.
Embora se considere um
Estado independente, a Ossétia do Sul, território georgiano ocupado pelas
tropas russas em 2008, depende completamente do Kremlin e Medóev jamais tomaria
uma iniciativa dessas sem ordens de Vladimir Putin. A política externa da
Rússia e dos seus vassalos é prerrogativa exclusiva do dirigente russo.
Além disso, é sabido que
os independentistas catalães participaram, no ano passado, num encontro de
povos sem país, realizado em Moscovo.
Como já bem sendo
hábito, o autocrata russo vai à história recente buscar justificações, mas
utiliza meias-verdades. Vladimir Putin, numa intervenção pública recente, acusa
a União Europeia de ser a principal responsável do separatismo depois de criar o
antecedente do Kosovo. Porém, o líder russo ignorou ou esqueceu-se de recordar
que o Governo de Madrid não reconhece a separação dessa antiga região da
Jugoslávia.
O El Pais chama também a
atenção para a propaganda agressiva do regime de Putin com vista a fomentar as
divisões no mundo ocidental, não olhando a meios:
“En años recientes, Rusia ha invertido una gran
cantidad de recursos en medios propagandísticos como RT y Sputnik y en una
verdadera guerra digital en redes sociales con la que ha fomentado divisiones
en las elecciones de Estados Unidos el año pasado y Francia y Alemania en este.
Según publicó EL PAÍS, perfiles prorrusos con gran seguimiento en las redes
sociales han compartido informaciones a favor de la independencia de Cataluña
en semanas pasadas, en algunos casos haciéndose eco de noticias falsas o
manipuladas”.
A necessidade da criação
de meios de informação concentrados no desmascaramento de notícias falsas
vindas do Kremlin é urgente, devendo a União Europeia agir nesse sentido.
Ouço alguns analistas
elogiarem as grandes capacidades diplomáticas de Serguei Lavrov à frente do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas, na realidade, não passa de uma
correia de transmissão de Putin, que realiza uma política externa cada vez mais
agressiva e musculada.
Tendo em conta as dimensões
da Federação da Rússia, a sua diversidade étnica e os problemas internos
provocados pela estagnação da economia, corrupção, etc., a política externa de
Putin é verdadeiramente suicida para o seu país. Mas o dirigente russo
começa a ficar com os tiques comuns a todos os ditadores, julgando-se eterno e
senhor do mundo.
A Espanha é a nossa
vizinha e a forma como irá ser resolvido o problema da Catalunha terá grande
importância para o futuro de Portugal. Por isso, é necessário estarmos atentos
aos jogos sujos de Vladimir Putin no espaço europeu.
E deixo aqui um recado
aos separatistas catalães e seus apoiantes: se levarem a vossa causa avante,
não se esqueçam que não ficarão sozinhos, pois a Catalunha poderá aderir à
organização económica eurasiática que reúne a Rússia, a Bielorrússia e o
Cazaquistão, e à qual a Ossétia do Sul também quer juntar-se.
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