quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Morreu Belmiro de Azevedo


Era Belmiro de Azevedo um desses capitalistas que se fartou de ganhar dinheiro e foi empregador de milhares de pessoas, que, ouvimo-lo às vezes, não podiam ganhar muito, porque se ganhassem muito, ele não poderia empregar tantas, pois empobreceria. Era, pois, um explorador, um sanguessuga dos homens, por isso Jerónimo de Sousa não aderiu ao voto de pesar pela sua morte e o Bloco e os Verdes abstiveram-se, não sei se por julgarem que ele devia ser mais justo na repartição dos seus lucros, como fazia, por exemplo, o Ford com os seus empregados, pagando-lhes bem para eles poderem comprar os carros da sua marca, e serem todos igualmente felizes, noutros tempos, lá nos States. O que é certo, é que Belmiro fundou um império à sua maneira e foi um homem muito rico que geriu o seu império com a consciência de que não somos como os outros países, que trabalham bem e evoluem, e por isso os seus trabalhadores são mais bem pagos, nas suas economias mais bem repartidas do que cá, até porque seguem regras que lhes são impostas, ao contrário daqui, onde se falta muito ao trabalho, graças aos atestados médicos que ajudam os médicos a recolher umas côdeas também, tudo muito bem combinado, pois o trabalho é sempre uma seca, e o Estado é flexível nessa coisa das competências, que não servem assim tanto para fazer evoluir, pelo menos no caso dos profes.  Belmiro de Azevedo tinha a pecha muito à portuguesa de, primeiro eu, segundo eu e afinal, eu sempre, naquele espírito estreitinho como é o nosso, excepto o do Jerónimo de Sousa, que ama os desprotegidos, e também o do papá das manas Mortágua, mas este não fundou impérios, para enriquecer, preferiu assaltar bancos, segundo consta na Internet. Bancos e navios, mas era por uma causa boa, que a ditadura de Salazar já ultrapassava as marcas, a mandar em todos, com mão mesquinha, ainda por cima, embora fornecesse emprego para todos, como eu tive o meu, mal pago na altura, mas com dinheiro nosso, mais bem pago agora, mas com dinheiro alheio. Quanto ao nosso grande Belmiro, o espírito é o mesmo que o que reinava entre nós na altura de Salazar, os bons empregadores – mais justos – eram sempre estrangeiros.
Por mim, não se me dava que houvesse muitos Belmiros de Azevedo por cá, sinal de que havia emprego para todos, embora os salários fossem mesquinhos, mas sempre eram trabalho, ou seja, emprego, mas as esquerdas acham que antes de produzir é preciso distribuir, ainda mais o dinheiro que não ganhámos, porque foi de empréstimo, como explica Manuel Villaverde Cabral, no seu artigo assustador  Parece que acabou a festa do dinheiro”, onde a sorte que nos espera está toda contida não só no título, como em todo o seu artigo do OBSERVADOR. Basta lê-lo, mas antes, transcrevo da Internet um artigo sobre os Mandamentos de Belmiro de Azevedo, sobre o seu Homem Sonae, cheios de regras, como as que Jeová traçou na pedra para o seu seguidor Moisés fazer aplicar e que não admitiam atestado médico:

O Homem Sonae”: os dez mandamentos de Belmiro de Azevedo
O chairman da Sonae, Belmiro de Azevedo. Em 1985, o empresário teve a ideia de propagar uma cartilha em que definiu o que devia ser o chamado "Homem Sonae". O colaborador ideal, no fundo. A primeira reunião de altos quadros do grupo Sonae acontece a 28 de maio de 1985. O encontro fica marcado pela apresentação dos dez mandamentos do grupo, a famosa cartilha do “Homem Sonae”, que no fundo são as leis a seguir para se ser o empregado exemplar, o colaborador ideal, supostamente feito à imagem do presidente, Belmiro de Azevedo. Apesar de ser um rol de mandamentos a pensar na empresa e na sua gestão, o texto assume contornos quase religiosos. “Devoção às tarefas”, “ser justo”, “aceitar perder sem ressentimento”, “aceitar críticas”, “ser conhecido pela verticalidade do seu caráter”, “ter disponibilidade temporal e resistência física”, “ser rigoroso em termos de valores”. Segundo o livro do jornalista Filipe S. Fernandes, intitulado precisamente “O Homem Sonae” (publicado originalmente em 2008), Belmiro terá sido o primeiro empresário português a apresentar tal lista com regras de ouro para o trabalho e os negócios. Dez ditames para quem quisesse pertencer de corpo e alma ao grupo, ser respeitado e conduzir a Sonae ao sucesso. A monografia, feita a partir de “textos escritos e entrevistas concedidas por Belmiro de Azevedo ao longo dos anos”, começa com o próprio Azevedo a falar: “Assumi como estilo de vida pessoal e atitude empresarial do grupo que dirijo: be prepared, ou seja, prepare-se para decidir com pouca informação, com pouco tempo. Por mera coincidência, o acrónimo Sonae tem, em japonês, exatamente tal significado”, contou o engenheiro. Em baixo, os dez mandamentos do “Homem Sonae” que o histórico empresário levou à primeira reunião com sete dezenas de altos quadros, em 1985. Mandamentos para serem cultivados no seio do grupo. “O Homem Sonae” “1. O Homem Sonae ou é líder ou candidato a líder; 2. O Homem Sonae é culto, evoluindo do seu estágio de competência técnica para o estágio de Homem culto em geral; 3. O Homem Sonae deve ter disponibilidade temporal e resistência física para vencer períodos mais intensos de carga de responsabilidades; 4. O Homem Sonae deve ter disponibilidade mental para aceitar críticas vindas de superiores ou subordinados, deve reagir ou replicar, mas deve evitar a retaliação sistemática; 5. O Homem Sonae deve ter apreço pelo trabalho dos seus subordinados, cuidando permanentemente para que as condições de trabalho e o grau de conhecimento de todos os trabalhadores sejam continuamente melhorados; 6. O Homem Sonae deve ser reconhecido interna e externamente pela verticalidade do seu caráter; 7. O Homem Sonae deve ter elevados critérios de exigência pessoal, com forte devoção às suas tarefas, embora procurando sempre um justo equilíbrio com outras atividades; 8. O Homem Sonae deve ter um código ético e deontológico rigoroso em termos de valores; 9. O Homem Sonae tem de aceitar o desafio da concorrência interna e externa; 10. O Homem Sonae procura a excelência e fá-lo pelo somatório das boas decisões que vai tomando e excluindo liminarmente os erros parciais.”

Eu, todavia, ainda acrescentaria os dois mandamentos-síntese: Amar Belmiro de Azevedo sobre todas as coisas, e o próximo como a nós mesmos, anulando-nos. É o espírito que reina também na Coreia do Norte, protegida, essa, pelo alimento chinês.
Parece que acabou a festa do dinheiro
21/11/2017
O orçamento para 2018 acabou por se transformar num regabofe demagógico de promessas impossíveis de cumprir. As reformas que o país necessitava ter feito ou foram desfeitas ou ficaram pelo caminho.
Conforme citei na semana passada, o jornal «El país» da vizinha Espanha explicou claramente por que razões “a festa do dinheiro acabou”. A isso acresce que as economias periféricas da União Europeia são as mais mal  preparadas para o fim próximo do chamado “Quantitative Easing” (QE), ou seja, a compra gigantesca de dívida soberana que prossegue ainda na UE mas já terminou há dois anos nos Estados Unidos, onde a taxa de juro subiu entretanto para 1,25% enquanto na UE se manterá por algum tempo em zero por cento.
A razão por que os países periféricos, entre os quais Portugal, estarão entre os mais mal preparados para a mudança da política monetária mundial é que não fizeram as reformas que o “QE” era suposto facilitar, mas que a coxa coligação que hoje nos governa não só não fez como reverteu o pouco que o anterior governo ainda teve tempo de fazer durante a intervenção financeira dos nossos credores. Não fez e não fará reformas urgentes, de certeza até às eleições previstas para 2019, a fim de permitir à “geringonça” manter-se no poleiro.
Com efeito, o orçamento para 2018 acabou por se transformar num regabofe demagógico de promessas impossíveis de cumprir. Embora recomende que os partidos o “viabilizem”, é a antiga ministra Ferreira Leite quem garante, ao mesmo tempo, que “o orçamento é inviável”. São contradições que mostram o estado em que está o nosso sistema partidário!
O certo é que as reformas estruturais que o país necessitava ter feito ou foram desfeitas ou ficaram pelo caminho. Voltámos, pois, à estaca zero, isto é, à situação estrutural que acabou por levar ao resgate financeiro de 2011.
O crescimento iniciado em 2015 ainda se devia em parte às mudanças realizadas durante a intervenção da “troika” e indicava uma perda de 5 pontos percentuais do PIB per capita em relação à média europeia, ou seja, menos do que vários outros países. Hoje, o crescimento económico não só parece estar a fraquejar, perdendo Portugal produtividade e, portanto, competitividade externa, como fica abaixo da média da UE. Manifestamente, a economia portuguesa é hoje meramente puxada pelo ciclo mundial favorável. Tudo porque Portugal voltou ao início do século XXI e à estatização da sociedade através do emprego público e não só. O turismo e a especulação imobiliária são falsas alavancas que apenas fazem cair a produtividade média.
Neste contexto, perguntavam alguns leitores do meu anterior artigo quais as reformas estruturais de que o país carecia para não andar de novo para trás e, se possível, desestatizar a sociedade e deixar a economia desenvolver-se sem a intervenção proteccionista constante do modus vivendi dominante. O leitor Pedro Simões foi o primeiro a responder a outros intervenientes no debate com o seguinte comentário: “Reformar a economia, administração pública, segurança social, mercado de trabalho, mercado da energia, educação, ensino superior, justiça, administração interna, sistema eleitoral, regionalização”.
As reformas são essas e outras, dependendo de como fossem concebidas. O problema é que não serão postas em prática enquanto o actual governo durar. “Reformar a economia” seria em princípio algo que decorreria segundo os condicionamentos positivos e negativos do mercado, a começar pelo mercado do emprego e dos capitais. Dada a dimensão e exposição da economia portuguesa, isso significa que tais mercados são internacionais, europeus para começar, mas os parceiros do PS não lhe permitem reconhecer isso.
Segundo os especialistas ouvidos pelo El País, a crise financeira levou o sector privado, sobretudo o exportador, a fazer “importantes ganhos de eficiência graças à melhoria da produtividade devida à redução do custo do trabalho”. Ora, não é disso nem do previsível aumento gradual do custo do dinheiro que se ouve o PS falar e, consequentemente, do que acontecerá ao investimento privado e estatal, mas sim de reversões atrás de reversões, até que nada fique das lições que o país tinha aprendido!
A tudo isso acresce o fenómeno de envelhecimento sócio-demográfico crescente que Portugal vem conhecendo desde os anos 80 do século passado, causado não só pela emigração e pelo aumento da longevidade, mas sobretudo pela queda cada vez mais acentuada da fertilidade, fazendo de Portugal um dos países do mundo com a taxa mais baixa (1.23 por mulher em 2015)!
Ora, um grau de envelhecimento destes obriga a reconsiderar todo o sistema de reformas e pensões, conforme vários especialistas têm vindo a defender, assim como o financiamento e o funcionamento do sistema de saúde, o qual se verá cada vez mais pressionado pelas pessoas idosas se nada for feito. Ora, estamos a falar de perto de 50% do orçamento de Estado e mais de 2 milhões de pessoas com mais de 65 anos, mas nada de novo se vê neste campo, pois os governos estão presos pelos seus mecanismos clientelares. Imaginemos o que não será se e quando o ciclo económico se inverter.



quarta-feira, 29 de novembro de 2017

E pure si muove


Mais dois artigos assustadores sobre António Costa, o que significa assustadores para o país.
E, no entanto, não parece preocupado, António Costa, e ainda hoje o ouvi expandir – provocatoriamente, é certo, - as suas convicções a respeito da sua vitalidade e alegria por estar onde está e disposto a continuar com igual energia. Creio que foi depois do almoço da aprovação do Orçamento, justificativo da vitalidade. E os dados sobre os anos no governo são inocentes de culpas, nada do que afirmam Rui Ramos e João Miguel Tavares, pessimistas. Esses, e outros, preocupados pela saúde do país, bem se esforçam por lhe apontar erros, quais inquisidores-mores dos tempos em que a Terra era chata e estava parada, segundo a visão ptolomaica, que a Igreja também propalava e que Copérnico e Galileu acharam redonda e a girar. Não, a economia cresce, disse hoje José Rodrigues dos Santos, nas notícias das nove, reproduzindo as estatísticas europeias, e nem sabemos o que pensar de tudo isto, mas queremos crer na estatística europeia, que até é mais favorável do que a do governo, este, em contenção de modéstia, sempre angariadora de simpatia e apoio.
 Mas que António Costa está contente, está, apesar de nos desvendar os seus cansaços e as suas horas sem dormir, disposto a continuar com a sua vitalidade, mau grado as acusações da bela Mortágua sobre a sua falta de lealdade nos compromissos. E a severidade da Mariana até foi muito apreciada por Miguel de Sousa Tavares, na SIC, também escutei isso, que às vezes faço zapping e captei esses dizeres. Não, não catei, que o p pronuncia-se. Até pensei que Miguel de Sousa Tavares exagerara no apreço pela Mariana, por cortesia cavalheiresca, pois que o visual dela, mais a sua voz sussurrante, causam uma emoção de fervor apologético, a que Sousa Tavares não escapou e a mim também provocam arrepios de enlevo, tanta arte lhe encontro, não sei se é isso o que atrai o comentador da SIC, ou se se sente mais no papel de Ulisses agarrado ao mastro, aquando do chamariz das sereias.
Mas vê-se que Rui Ramos e João Miguel Tavares escaparam ao sortilégio, talvez por terem cera nos ouvidos, tais os marinheiros do Ulisses, e daí que se esforcem por fazer singrar a nau com valentia, sem tentações pelo caminho. Eu, é mais êxtase, não só devido ao canto sussurrante, mas ao todo da figura ofuscante.
Quanto às críticas dos dois articulistas, quero pensar positivamente, apesar de Ptolomeu e da Igreja Católica. A Terra move-se mesmo, não sei se é Costa o Sol, se a bela Mariana.
Pelo menos é o que dizem Costa e Mortágua, satisfeitos, apesar da recente acusação desta, de deslealdade nos compromissos do ministro, ou de deslealdade no ministro dos compromissos, mas tanto faz, não devemos ser tão coca-bichinhos.

ORÇAMENTO DO ESTADO
O pior da política
28/11/2017
Aos que agora descobriram que o “fim da austeridade” é afinal a “rendição à Fenprof”, é preciso perguntar: que esperavam que António Costa fizesse para se manter no governo?
Em Outubro de 2015, os eleitores portugueses escolheram entre dois candidatos principais a primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho e António Costa. Optaram maioritariamente por Passos Coelho. Mas umas semanas depois, António Costa, o derrotado, agarrou a desesperada disponibilidade de outro derrotado, o Partido Comunista, que trouxe a reboque o Bloco de Esquerda, e fez os acordos necessários para alcançar no parlamento o que não conseguira nas eleições. Costa fez-se assim primeiro-ministro. Foi há dois anos. Mas agora, depois de aprovado o Orçamento de Estado para 2018, parece haver duvidas outras vez. Quem é o primeiro-ministro? No Diário da República, ainda é António Costa. Mas no Orçamento de Estado, parece que também é Arménio Carlos, à frente dos sindicatos comunistas a quem o governo cede e concede.
Durante dois anos, as eleições de 2015 foram apagadas da história do regime. Se era preciso criticar o governo, que se falasse de “problemas de comunicação”. Da noite de 4 de Outubro de 2015 é que não. Mas esse permanece o ponto de partida necessário para compreender o que se está a passar. A tradição de o governo caber aos partidos vencedores das eleições e não aos derrotados, tinha a sua razão de ser, tal como o costume de os primeiros-ministros precisarem de um mandato eleitoral e não apenas de uma maioria parlamentar. Viu-se isso com Pedro Santana Lopes em 2004, e está-se a ver agora com António Costa. Quando o poder político, numa democracia como esta, não tem a força de uma vitória eleitoral, isto é, da convicção dos eleitores, tende a tornar-se um vazio que nenhum Diário da República, manobra parlamentar ou feitiço orçamental serão capazes de preencher. Aos que hoje se queixam do que antes eram “habilidades” e a que agora chamam “cambalhotas tristes”, ou aos que descobriram que o “fim da austeridade” é afinal a “rendição à Fenprof”, é preciso perguntar: que esperavam, nestas circunstâncias, que António Costa fizesse para se manter no governo, a não ser este circo de concessões ao PCP ou de equívocos com o Bloco de Esquerda?
Entre aqueles que passaram dois anos muito despreocupados, parece que há agora quem se comece a preocupar. Deploram a divisão da população entre os sindicalizados do PCP no Estado, de um lado, e os empregados do sector privado e trabalhadores independentes, do outro. Fazem contas ansiosas, não apenas aos compromissos de aumento de despesa e diminuição da receita para 2018, mas já para 2019. Sabem que governos minoritários socialistas, desesperados por aplauso e suporte, foram os anunciadores de todas as aflições em Portugal nos últimos anos, em 2001 tal como em 2011. As taxas de juro, entretanto, prometem subir, e tornar o nosso endividamento e a nossa baixa produtividade novamente assuntos de conversa entre os investidores. O que custará o fim dos juros baixos a um Estado sobrecarregado de despesa e a cidadãos apertados por uma malha fiscal tão implacável que aumentos de salários podem significar diminuição de rendimento?
Não sei o que vai acontecer. Ninguém sabe, desde que os velhos projectos do regime faliram em 2001-2002. Uma coisa sei, porém: a actual maioria social-comunista nunca será capaz de fazer mais do que o que já fez, que é aumentar os salários e pensões dos dependentes do Estado, com esperança de se reeleger em 2019. Os últimos dois anos provaram que António Costa e os seus parceiros nunca tiveram, de facto, alternativa nenhuma. Porque consumir a folga criada pelo ajustamento da troika, pela política do BCE, pelo petróleo barato e pelo crescimento económico na Europa, compensando eventuais desequilíbrios com cativações e impostos — é um expediente, mas não é um plano. Como ontem se diziam uns aos outros os deputados do PS e do BE, vivemos em Portugal o “pior da política”.
OPINIÂO
A santanização de António Costa
João Miguel Tavares,
Público, 28 de Novembro de 2017
E a polémica do dia é… (rufar de tambores) a sessão de esclarecimento/ inquérito de opinião/ distribuição de vales de compras/ estudo quantitativo (riscar o que não interessa) do Governo na Universidade de Aveiro! Devo fazer aqui uma perturbante confissão: escrevo três dias por semana no PÚBLICO e nem assim consigo acompanhar todas as asneiras produzidas pelo Governo nos últimos tempos. Fogos parte I e parte II, Tancos partes I a XV, legionella, Panteão, professores, Infarmed, focus group, confusões com os parceiros de coligação, há de tudo um pouco e para todos os gostos.
Começa a ser tão cansativo acompanhar esta profusão de casos que talvez valha a pena tentar averiguar o porquê de eles estarem a acontecer a tamanha velocidade. Que raio se passa com António Costa? Todos os políticos cometem erros, e muitas vezes grandes erros. Decisões macroeconómicas que correm mal, leis que encontram oposição inesperada, escolhas pessoais que se revelam um desastre. Mas aqui o ponto é outro — é um surpreendente desnorte não só nos grandes acontecimentos (os fogos, Tancos) mas também nas pequenas coisas, daquelas que não matam mas moem. Ora, porque é que um político que manobrou tão bem em tempos tão difíceis, transformando uma enorme derrota eleitoral do PS numa surpreendente vitória parlamentar, desencantando uma coligação de governo na qual ninguém acreditava; porque é que esse mesmo homem, que até há seis meses parecia ter uma maioria absoluta ao alcance da mão, está agora a comportar-se, em tempos que deveriam ser fáceis, como se fosse Pedro Santana Lopes em 2005?  
Estávamos todos à espera de Satanás, Satanás não veio, e de repente sai-nos um Santanás. António Costa escapou à satanização do país, mas não à santanização de si próprio: trapalhadas, imprudências, hesitações, descoordenações sucessivas no Governo, péssimo instinto político (há acções supostamente de charme que se transformam em desastres para a imagem do Governo), um sem-fim de aselhices, como há muito não se via. E, sobretudo, como não se esperava ver em António Costa. Há um filme chamado Megamind em que o vilão perde o sentido da vida após matar o seu rival. Parece ter-se passado o mesmo com António Costa após o afastamento de Pedro Passos Coelho.
O PS teve uma enorme vitória nas eleições autárquicas e menos de dois meses depois está a apanhar os cacos da sua festa. Porquê? Uma das hipóteses é o primeiro-ministro estar a perder gás e a ficar física e psicologicamente esgotado, tal como o ministro da Educação, mas sem a parte das vertigens. Não estou a brincar. Dois anos de discussões infrenes com os seus supostos aliados (recordo palavras de Pedro Nuno Santos: “Nós temos reuniões com os partidos da coligação todos os dias”), associado à necessidade permanente de fingir que está tudo bem, deve ser brutalmente desgastante. António Costa merecia ganhar dois ordenados: um como primeiro-ministro de Portugal, outro como primeiro-ministro da “geringonça”. Desconfio que o segundo trabalho seja mais massacrante do que o primeiro.
A outra hipótese é António Costa ter concluído o programa de reversões ainda com dois anos de legislatura pela frente e agora que tem o acordo com os seus parceiros totalmente cumprido anda distraído a perguntar aos seus botões: que fazer? Dar-lhes muito mais, não pode. Reformar o país, não consegue. Fingir-se de morto, é impossível. António Costa está preso no labirinto do seu sucesso. E o país tão manietado quanto ele.



terça-feira, 28 de novembro de 2017

Mas a corrupção já não conta?


Em tempos, falou-se muito de corrupção, no caso de Lula da Silva, de conversas telefónicas incriminatórias entre aquele e Dilma Rousseff, um país à deriva, em termos de estabilidade social e governativa. De resto, Francisco Assis o informa: «Basta olhar um pouco para além do Brasil de bilhete-postal para perceber o peso do racismo étnico, cultural e social, a magnitude da corrupção, do nepotismo e do clientelismo, a fragilidade extrema do mundo institucionalMas Francisco Assis encontrou Dilma Rousseff e achou-a uma mulher inteligente e digna, que expõe sobre democracia e demonstra grande sensibilidade social, própria da doutrina socialista, e de uma “figura política decente”. Não sei se terá razão. O certo é que também Lula da Silva inaugurou um percurso de estadista de defensor dos mais pobres e acabou implicado em graves acusações de corrupção. É certo que o mundo dos media contribui em parte para o avolumar dos escândalos, como também se viu e se vê por cá, mas estranho a defesa que Francisco Assis faz de Dilma Rousseff que, tal como Lula da Silva, permitiram a elevação das classes sociais mais marginalizadas, era esse o objectivo, mas realmente quem se valorizou muito economicamente parece que foram eles, segundo o costume.
Não, não acho que seja necessário seguir-se um ideário político de defesa social para se ser um político decente. A Revolução Russa está manchada por milhões de crimes e já a Francesa o estivera. O que conta mesmo é ser-se decente, com ideário ou sem ele. Mas estranhei o ardor de Francisco Assis, confiante que estou na sua decência.

OPINIÃO
Um país do futuro
O Brasil precisa de um compromisso histórico entre aqueles que continuam a representar uma esperança de dignidade da esfera pública.
Francisco Assis
23 de Novembro de 2017
Em fuga de uma Europa moralmente arruinada, Stefan Zweig encontrou no Brasil o derradeiro lugar do seu exílio desesperado. Fascinado pelo país, dedicou-lhe um livro que se tornaria imediatamente célebre e polémico. Alguns críticos denunciaram o carácter excessivamente elegíaco da obra. O que é certo é que ela permaneceu como uma referência e o seu próprio título se impôs como um sinal: Brasil, um país do futuro. Não sendo esse o sentido que o autor lhe pretendeu atribuir, acabou por se afirmar a ideia de um país em perpétua construção e permanentemente adiado. Como se a promessa do futuro significasse sobretudo um desmesurado falhanço histórico.
O Brasil está a atravessar um dos momentos mais difíceis da sua história. Há duas semanas atrás tive a oportunidade de o visitar e de constatar presencialmente o estado de profunda degradação institucional e política que só tem paralelo com o grau de conflitualidade que percorre a sociedade brasileira. Apesar dos grandes avanços ocorridos sob as presidências de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rouseff, há fracturas, atavismos profundos e hábitos comportamentais perversos que subsistem num país que está muito longe de corresponder ao estereótipo idealizado de um espaço de encontro multicultural pacífico. Basta olhar um pouco para além do Brasil de bilhete-postal para perceber o peso do racismo étnico, cultural e social, a magnitude da corrupção, do nepotismo e do clientelismo, a fragilidade extrema do mundo institucional.
Como seria de prever, Michel Temer não conseguiu sobreviver à vontade de ser Presidente da República a qualquer preço. É certo que preside — e que dirige um governo de qualidade muito duvidosa —, mas não dispõe do mais leve respeito popular e transporta consigo a permanente suspeita da ilegitimidade moral da sua própria condição presidencial. Temer é hoje um político aprisionado pelos escandalosos acordos que tem sido forçado a fazer no Senado e na Câmara dos Deputados com o intuito de garantir a sua própria sobrevivência, e não dispõe, por isso mesmo, dos meios imprescindíveis para a mera dignificação do cargo que exerce. Nessa perspectiva, o Brasil é hoje um país à deriva, dirigido por zombies a quem não escasseiam provas dadas em matéria de nepotismo e corrupção. É triste mas é verdade.
Raramente um país com a dimensão e os recursos do Brasil viveu uma situação tão dilacerante no domínio da sua representação política democrática. A classe política brasileira, por motivos diversos que vão desde a natureza do sistema político e eleitoral, até à desmesurada influência pública de alguns meios de comunicação social e de algumas igrejas evangélicas onde predominam o simplismo conceptual e a demagogia sectária, não está manifestamente à altura das enormes responsabilidades que lhe estão cometidas. Há naturalmente excepções, algumas delas deveras significativas e que nos impedem felizmente de cair num cepticismo absoluto.
Na semana passada tive o ensejo de conhecer em Estrasburgo a ex-Presidente Dilma Rousseff, afastada do lugar para que o povo a elegera por um procedimento parlamentar se não ilegal, pelo menos flagrantemente imoral. Confesso que não tinha até essa ocasião a melhor das opiniões a seu respeito no plano estritamente político. Amigos brasileiros haviam-me vendido a ideia de uma mulher excessivamente dogmática, propensa a comportamentos sectários e pouco dada à promoção do diálogo, quer com apoiantes, quer com adversários. Depois de a ter ouvido numa sessão pública e de ter conversado longamente com ela num jantar promovido por alguns deputados europeus socialistas, entre os quais se incluía também o meu colega e amigo Carlos Zorrinho, fiquei com uma visão completamente distinta acerca do seu carácter e da sua personalidade política. Dilma é superiormente inteligente, revela uma seriedade extrema na acepção mais exigente do conceito, inscreve-se doutrinariamente na linha do socialismo democrático e deixa transparecer uma sensibilidade social própria de uma figura política decente. Terá cometido erros, mas é claramente alguém que se situa muito acima da média da vida política do seu país, quer intelectual, quer moralmente.
O Brasil precisa de uma espécie de compromisso histórico entre aqueles que, um pouco mais à direita ou mais à esquerda, continuam a representar uma esperança de dignidade ao mais alto nível da esfera pública. Só assim poderá enfrentar com sucesso as ameaças extremistas e demagógicas que se adivinham no horizonte e resolver adequadamente os principais problemas que impedem a sua integração plena no mundo globalizado e que condenam à miséria grande parte da sua população. Há hoje naquele país um risco imenso: o de se acentuar ainda mais a clivagem entre a maioria da população, condenada a uma pobreza endémica e alienante, e uma elite provida dos recursos de capital financeiro, económico, cultural, simbólico e científico capaz de lhe garantir a integração nos grandes fluxos globais. O problema não é de agora, mas adquiriu no presente uma particular intensidade dadas as características específicas da nossa época.
Por muito que se tente criticar e até escarnecer da acção política levada a cabo pelos dois Presidentes eleitos pelo PT, não é legítimo ignorar o legado extraordinário que deixaram em matéria de promoção dos Direitos Humanos e de dignificação dos homens e das mulheres concretos do seu país. No Rio de Janeiro, há 15 dias atrás, uma professora de uma Universidade do Rio Grande do Sul dizia-nos com indisfarçável comoção: “Foi devido à acção do Presidente Lula que, pela primeira vez ao fim de muitas décadas a ensinar, tive alunos negros a assistir às minhas aulas.” Dilma Rousseff lembrava-nos na semana passada a sensação de plenitude política que a acometeu quando ela própria, na condição de Presidente da República, entregou o diploma de licenciatura a uma jovem médica negra brasileira. Essa jovem ter-lhe-á dito na ocasião: “O ter chegado até aqui significa que finalmente a Senzala está a entrar na Casa-Grande.”
Sabemos infelizmente que ainda há um longo caminho a percorrer para que a Senzala entre, de facto, na Casa-Grande. Há, porém, no meio das tão negras vicissitudes que afligem o presente brasileiro, quem esteja disposto a percorrer esse caminho. Ter conhecido e conversado com alguém como Dilma Rousseff aumentou a minha confiança no futuro desse imenso e tão próximo país que é o Brasil.


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Estatelanço previsível


Mais dois artigos a bater, não no ceguinho mas no zarolho, que é rei entre os cegos, que temos sido nós, gaio da fábula de La Fontaine, a enfeitar-se com as penas do pavão, facilmente desmascarado, infelizmente para nós, os ceguinhos, a quem convém, naturalmente, a aura passageira do prestígio aparente, todo ele repousando na corda bamba do nosso circo sem rede que preste para o funâmbulo. E daí, não sei. Talvez que os únicos a estatelarem-se sejamos mesmo nós, os ceguinhos, que fábulas há que definem o gaio como bastante esperto, para se escapar. Antes da queda.
Artigos de Manuel de Carvalho e de Rui Ramos. A não perder.

OPINIÃO
O Governo a escangalhar-se
Custa a acreditar que se esqueça tão depressa o que aconteceu em 2010 e se volte a repetir com naturalidade os vícios que custaram despedimentos, quebras e cortes de salários, impostos agravados e o vexame internacional.
Manuel Carvalho
Público, 22 de Novembro de 2017
Vista do futuro, a balbúrdia das pressões à volta do descongelamento das carreiras da Função Pública há-de provar o momento em que a geringonça deixou de ser o mecanismo que garantia a sustentação do Governo para se tornar no Governo em si mesmo. Depois de prometer meio mundo e o outro aos servidores do Estado, escancararam-se as portas a todas as reivindicações e todas as reivindicações tiveram direito a promessas que destruíram o balanço da orientação política até aqui mantida por António Costa e Mário Centeno. Hoje, faz pouco sentido o aviso deixado pelo ministro das Finanças no Parlamento há apenas três semanas, quando lembrou que “o que tanto custou a conquistar pode perder-se mais rapidamente do que levou a conquistar”. O Governo converteu-se num balcão de uma mercearia onde se compra, troca e vende tudo. Vendem-se apoios partidários e silêncios sindicais, trocam-se linhas de rumo, prioridades e sentido de Estado, compram-se votos, fidelidades e promessas a prazo. Depois da balbúrdia dos professores e das que se anunciam, é um albergue espanhol onde cabe todo o poder da rua.
Custa a acreditar que se esqueça tão depressa o que aconteceu em 2010 e se volte a repetir com naturalidade os vícios que custaram despedimentos, quebras e cortes de salários, impostos agravados e o vexame internacional. Custa a acreditar que António Costa tenha caído tão facilmente “na ilusão de achar que podemos voltar ao ponto antes da crise”, como esta semana sublinhou o Presidente-Rei, prometendo tudo mesmo tendo a dúvida de que nada pode cumprir. É duro aceitar que no exacto momento em que a sociedade e a economia estão suficientemente sólidas, confiantes e prontas para dar um novo salto em frente haja um Governo que faça regressar “a tendência portuguesa para o ‘mais ou menos’, para o ‘assim-assim’”, ou caia no vício de “‘ganhar um tempinho’”, acreditando que “com sorte isto não dá errado”, ainda nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa.
Depois de Mário Centeno tornar pública a sua firme decisão de aplacar as expectativas irrealistas dos sindicatos, do Bloco e do PCP, pensava-se que o Orçamento do Estado de 2018 seria arriscado, mas dentro do limiar da razão política que este Governo instituiu. Os protestos dos professores mudaram essa percepção. Primeiro, Costa lembrou que “descongelar não significa reconstruir a carreira que as pessoas teriam tido se não tivesse havido congelamento". Depois, admitiu que a contabilização dos anos em que as carreiras dos professores estiveram congeladas é uma possibilidade em “abstracto”. Ontem, recuou de novo lembrando que “é impossível refazer a história”. Entretanto, os professores lá receberam cheque em branco que, em Dezembro, começarão a preencher para receber não em 2018, mas mais tarde. E, como seria de esperar, formou-se de imediato uma fila na mercearia. Já lá estão 20 mil elementos da PSP, os bravos soldados da GNR, os sete mil funcionários judiciais, 15 mil médicos, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, trabalhadores do SEF e muitas outras classes profissionais da Função Pública.
Teria de ser assim? Não tinha de ser assim. A espiral de reivindicações estava num estado larvar, mas não fazia parte da ordem do dia. Há meio ano apenas, o coro de reivindicações dos funcionários públicos e a voz grossa dos sindicatos a propósito dos descongelamentos das carreiras quase não se ouvia. E se, de súbito, se instalou como o elefante no meio da sala do debate nacional é porque o Governo perdeu o controlo e deixou que os seus parceiros parlamentares assumissem as rédeas da política. Hoje, o Governo parece uma barata tonta a sacudir a pressão, a encontrar explicações, a disfarçar a falta de coragem para dizer não com adiamentos para Dezembro, para os próximos anos, para todo e qualquer horizonte que o salve da contestação e do vitupério dos seus parceiros. Quem manda são os parceiros das posições conjuntas e as suas extensões nos sindicatos.
O que está em causa deixou por isso de ser um processo suave de reajustamento que contemplava a reposição dos legítimos direitos laborais dos funcionários públicos. Deixou de ser uma gestão criteriosa do presente com olhos postos no futuro e transformou-se numa atitude novo-rica de quem rega os problemas com dinheiro para não ter de os resolver pela base. O Governo é em si mesmo uma geringonça e escangalha-se ao cair na tentação fácil de acreditar que segue em frente sem ter de fazer esforço para caminhar. É uma manta de retalhos abençoada pelo crescimento da economia a ser puxada por forças centrípetas às quais não sabe, não pode ou não quer resistir. É o actor de uma peça de argumento leviano na qual Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e os seus aliados sindicais fazem de ponto.
O que está a acontecer vai provocar um aumento desmesurado da despesa rígida do Estado. O destino das contas do Estado voltará a deixar de ficar sob a alçada do nosso controlo e passará a depender da providência das taxas de juros, do crescimento dos nossos parceiros ou da estabilidade política na União Europeia. Voltamos ao passado, como se fôssemos um país estúpido e incapaz de aprender à sua custa dos seus erros. O Governo que até agora tinha conseguido afastar o diabo mantendo um sólido compromisso entre o equilíbrio das contas públicas e a melhoria dos rendimentos dos deslumbrou-se e viajou para a estratosfera.
Com este passo imprudente, António Costa arrisca-se a perder o pé. O eleitorado moderado tenderá a mudar-se para outras latitudes. “A sociedade tem de ter a coragem de assumir os seus problemas”, lembrou uma vez mais Marcelo Rebelo de Sousa, e a sociedade portuguesa teve essa coragem. Quando perceber que o Governo virou a cara aos problemas para garantir o seu confortável “saber durar”, dificilmente lhe perdoará. Como mostraram as eleições de 2015, uma ampla franja dos portugueses perceberam o que se passou. E percebem também o perigo de se encarar o leve alívio na economia como um estímulo ao agravamento da despesa. Sabemos pelos sinais da dívida, do mundo, ou pela fragilidade da economia que a situação recomenda juízo, prudência e paciência para, como tantas vezes acontece na vida, ir melhorando a vida aos poucos.
Pode ser que até 2023 consigamos viver um período de crescimento continuado, pode ser que a conjuntura externa seja capaz de sustentar este bodo aos funcionários públicos. Mas pode ser que não. Os receios, de resto são mais consistentes do que as expectativas positivas. É a incógnita que justificaria a prudência receitada pelo Presidente. Se alguma coisa correr mal, será fácil encontrar o culpado. Quando podia ser um herói ao conservar a actual fórmula de sucesso, o primeiro-ministro decidiu arriscar e prometer o que pode e o que não pode. São opções como esta que afirmam, ou infirmam, a fibra dos estadistas. 

António Costa viu a verdade? Não acreditem
OBSERVADOR, 24/11/2017
Quem, em Agosto de 2005, congelou as carreiras da função pública? Um governo em que António Costa era ministro. A oligarquia sempre soube que quando não há dinheiro, não há dinheiro.
Que diferença fazem sete dias em política: há uma semana, havia um Passos Coelho; agora, parece que há muitos. É o primeiro-ministro que diz que “tudo para todos já” é uma “ilusão”; é o presidente da república que explica que não se pode “voltar ao ponto antes da crise”; é o ministro das finanças que acha que aos funcionários não basta exigir, têm de “merecer”. Por qualquer razão, a oligarquia havia decidido que esta maneira de ver e de falar não tinha a ver com a realidade ou o bom senso, mas apenas com Passos Coelho. Era, como ainda diz o Bloco de Esquerda, “retórica da direita”. Mas há uns tempos atrás, teriam sido quase todos os oligarcas a dizê-lo: alegar que não era possível dar tudo a todos, era “neo-liberalismo”; argumentar que não era viável voltar atrás, era “fascismo”; sugerir uma relação entre rendimentos e mérito, era, sei lá, “insensibilidade social”.
Mas isso era quando a prioridade era isolar e excluir Passos Coelho. Porque foi isso que esteve em causa desde Outubro de 2015: uma vez que os eleitores, nas legislativas desse ano, não o fizeram, teve de ser a oligarquia a entender-se para o afastar do governo. Tivemos assim a actual maioria social-comunista. Esta maioria, porém, jamais correspondeu a uma verdadeira alternativa. O PS não rompeu com o Euro e o Tratado Orçamental, nem o PCP e o BE, votando embora os orçamentos, admitiram que este fosse um “governo de esquerda”. O que António Costa fez foi, até agora, satisfazer o funcionalismo sindicalizado do PCP. Nunca isso teve uma lógica económica, nunca foi keynesianismo, mas apenas um expediente político, compensado depois por “cativações” e cortes de investimento muito anti-keynesianos.
Porque é que os oligarcas tinham medo de Passos Coelho? Porque, entre outras razões, viram como deixara cair Ricardo Salgado e José Sócrates. Pela primeira vez em Portugal, o mercado e a justiça puderam funcionar sem manipulação política. Os oligarcas ficaram horrorizados. Não porque gostassem de Salgado ou de Sócrates, mas porque imaginaram que também eles não poderiam contar com Passos Coelho para favores e protecções. Era preciso, desse por onde desse, tirá-lo do governo. O PCP e o BE, ambos em crise, ajudaram.
Com Passos Coelho finalmente fora de jogo, o mundo mudou para os oligarcas. De repente, a pressão do sindicalismo comunista começou a ser uma irresponsabilidade, e a possibilidade de o BCE descontinuar o financiamento dos défices e dívidas, uma realidade a ter em conta. Viu Costa finalmente a verdade? Não brinquemos. Quem, em Agosto de 2005, congelou a progressão automática nas carreiras da função pública? Um governo em que António Costa era ministro. A oligarquia sempre soube o que agora finge ter descoberto: quando não há dinheiro, não há dinheiro. Com o dinheiro do BCE, o turismo e o efeito de arrasto do crescimento económico europeu, qualquer governo teria feito reposições. Aliás, esse era o grande perigo para os oligarcas em 2015: deixarem que fosse Passos Coelho a aproveitar a folga.
Para se livrarem do líder político que mais os incomodou nos últimos vinte anos, a oligarquia teve de fingir acreditar que o ajustamento da troika teria sido apenas “ideológico”, isto é, desnecessário, e que portanto bastaria afastar Passos para entrarmos num mundo em que era possível voltar atrás e dar tudo a todos. Talvez tenha havido gente iludida. Mas os oligarcas, pela sua parte, nunca tiveram ilusões. Isto foi sempre um exercício do mais frio cinismo. Terão os portugueses percebido que foram vítimas, nos últimos dois anos, de uma enorme fraude política?



domingo, 26 de novembro de 2017

Eu não acho que seja


Não me parece que seja uma excelente ideia essa do memorial da escravatura, no Campo das Cebolas. Parece-me antes uma forma de provocação, de incitamento ao ódio contra um país que já se sente suficientemente reduzido de afectos, na extensão de dados negativos políticos e sociais de que enferma há muito, bem mais graves esses hoje do que os do passado, que já não pesam, e cujo memorial ficaria como um escarro lançado sobre os Portugueses que, naturalmente, não foram únicos e nem sequer os primeiros a usar dessa força construtiva, as sociedades primeiras repousando as suas hierarquias sociais na base das escravaturas com que construíram pirâmides e impérios. Que seja usada a escravatura em obra literária, em termos enérgicos de raiva ou ironia, para informação e prevenção futuras, vá que não vá, Saramago fê-lo no seu Memorial do Convento, onde enlambuzou suficientemente bem o Rei Magnânimo e respectiva entourage, para valorizar epicamente a acção popular nos seus trabalhos, sofrimentos e valentias, como era de bom tom fazê-lo, para vender bem, integrado na doutrinação política que há muito persegue as nossas almas sedentas de amor e, por contraste, esfomeadas de ódios que nunca cansam.
Quando criminosos como Hitler, Estaline, Mao e outros de repercussão menor, como se viu e vê em terras de África e nas Américas, e na Ásia, são ignorados nos seus crimes monstruosos, e  se permite o tráfico hoje, talvez mais às escondidas, de crianças e mulheres e trabalhadores sem se condenarem esses bandoleiros exploradores da miséria alheia, a coberto das autoridades, e se pretende, com tanta sanha, erguer um memorial aos portugueses inauguradores de uma escravatura hedionda, mas não menor que a de hoje, de tanta violência falocrática, parece-me a ideia do memorial sobre a escravatura portuguesa, apenas mais uma forma de escravizar os homens ao poder do ódio. Não temos mais que fazer?
Não, não concordo com António Barreto, tão punhos de renda, de subserviência, neste caso, a uma doutrina que prega a moral com incitamento ao ódio. Para ficar de bem com Deus e o Diabo?

Os escravos em Portugal: um memorial
António Barreto
DN, 26/11/17
Excelente ideia a da construção de um memorial situado à beira-Tejo, entre a Ribeira das Naus e o Campo das Cebolas, locais onde, segundo consta, o tráfico de escravos tinha assento. Não se sabe se a proposta, feita por uma associação, será aprovada e concretizada. Nem qual será a sua forma ou configuração. Mas a ideia é boa. Sobretudo se for mais do que um memorial passivo e inerte. Se for um museu, um local de reflexão ou um centro de referência. Várias instituições desse género, nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Holanda, em Angola e no Senegal, mostram como se pode fazer. Genocídios, holocaustos, massacres, autos-de-fé, deportações violentas, assassínios em massa, Goulag, campos de concentração e outras formas de exercício de poder e violência devem ser estudados. Para que não se esqueça. Espera-se, aliás, que esta iniciativa tenha melhor sorte do que um projecto de lei de criação de um museu dos Descobrimentos, a construir na Cordoaria, apresentado há mais de trinta anos e, infelizmente, nunca realizado.
O tráfico de escravos e a escravatura foram, à luz do que somos hoje, fenómenos horrendos que a humanidade conheceu, durante séculos e em quase todas as latitudes. Da Índia à China, do Egipto à Mesopotâmia, de Roma a Berlim, de Lisboa ao Rio de Janeiro e da Costa do Marfim aos Estados Unidos. Centenas de milhões de escravos foram vendidos, comprados e transportados entre continentes e em várias direcções, conforme as geografias. Para estes fluxos de mercadoria humana, Portugal também contribuiu de modo significativo, com especial incidência no tráfico estabelecido entre África e as Américas. Terá mesmo sido, no Atlântico e durante três ou quatro séculos, um dos seus protagonistas e principais beneficiários.
Em poucas palavras, a escravatura e o tráfico de escravos marcaram tempos e povos. Ainda hoje, em certos países africanos ou muçulmanos, há práticas, legais ou não, equiparadas à escravatura. Provavelmente, foi a África o continente que forneceu mais escravos. Segundo os valores morais contemporâneos, o tráfico está mesmo entre os piores traços da evolução da humanidade. Juntamente com os trabalhos forçados, a tortura, o assassínio, o genocídio e a conquista, a escravatura foi mais um capítulo da história que o progresso combateu durante décadas e para o qual foi conseguindo remédios, interdições, castigos e sobretudo condenação moral e jurídica.
O processo histórico foi tal, até ao presente, que a escravatura se encontra erradicada em grande parte do mundo. Na maior parte do mundo, talvez seja possível afirmar. A libertação dos escravos, a abolição da escravatura e a emancipação dos servos e escravos transformaram-se mesmo em objectivos centrais dos defensores do progresso e do melhoramento dos povos. A abolição da escravatura está a par de outros grandes movimentos da humanidade como os direitos humanos e a igualdade. Tal como a democracia, a cidadania e a liberdade religiosa, a escravatura e a respectiva abolição merecem um memorial.
Se for, evidentemente, um memorial que explique, que dê contexto e enquadramento, que informe, que nos ajude a compreender. Não um memorial que se limite a condenar os negreiros e os portugueses... Não um memorial de autoflagelação que, por razões de oportunismo histórico e demagogia política, pretenda afirmar que o colonialismo dos portugueses foi mais cruel do que o dos outros, que o racismo dos portugueses é pior do que o dos outros, que a escravatura dos portugueses foi mais hedionda do que a dos outros, que a escravatura organizada pelos europeus e pelos brancos foi mais dolorosa do que a dos árabes, dos chineses, dos indianos ou dos africanos...
E também não um memorial que, conforme sugerido por alguns proponentes, terá de ser feito por artistas africanos ou descendentes de africanos... Isso é racismo! Puro e simples!
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sábado, 25 de novembro de 2017

A toleima

“Um país sem remédio”, texto de Alberto Gonçalves, mostra-nos, em “analepse”, o que sucedeu, por alturas da hipótese de escolha entre Lisboa ou Porto como sede da “EMA”: logo se estabeleceu a guerrilha entre as duas cidades, mesmo sem que se tivessem ainda decidido as pretensões dos responsáveis europeus pela localização da Agência Europeia de Medicamentos. Senti, então,o nosso irremediável ridículo bairrista, na precipitação de dado adquirido sem fundamento, e o jogo ao ataque do nosso brio festivaleiro ou mesquinhamente disputador. Alberto Gonçalves refere-o de passagem, para seguidamente nos esclarecer sobre a decisão compensatória, face ao resultado “EMA”, de transferir o Infarmed de Lisboa para o Porto. Assim, sem mais nem menos. Alberto Gonçalves explica e, naturalmente, põe isso a ridículo. Somos assim.
Quanto ao artigo de Maria João Avillez – «Os bons alunos» - é sobretudo de indignação contra Puigdemont, uma figura com quem muitos catalães não alinham em comum ideal separatista. Figura ridícula também, em fim de contas, destituída de sentimentos pátrios, e, talvez por termos origem comum – Espanha e Portugal – fere-nos igualmente o desconchavo de uma insólita atitude que tanta gente manipulou, até mesmo por cá.  Para além disso, o problema das greves, de vários grupos protestantes, que, por despeito pela sua derrota eleitoral, na opinião de Maria João Avillez – e nem sequer é necessário muito conhecimento psicológico para tal dedução - Jerónimo de Sousa se apressou a convocar, através dos sindicatos, indiferente à ruína da nação. Somos assim, que fazer?
Dois artigos, como sempre, especiais, quer pelas temáticas, quer pelo engenho crítico.

Um país sem remédio
OBSERVADOR, 25/11/17
No fim, como de costume, as coisas ficarão na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto para justificar o barulho e cinco comissões inventadas para “articular” o arranjo.
Há tempos, o Porto, ou alguém em seu nome, candidatou-se a receber em definitivo uma resma de burocratas europeus, vulgo EMA. Esta semana, perdeu a candidatura. O governo, que começou por decretar Lisboa o único ponto geográfico capaz de alcançar tamanha honra e de seguida andou aos ziguezagues, decidiu agora compensar o Porto através da cedência de uma resma de burocratas caseiros, vulgo Infarmed. O dr. Rui Moreira ficou muito contente. Os funcionários do Infarmed, que consta habitarem lá em baixo, não ficaram tão contentes. E o povo que opina sobre assuntos assim desatou a discutir a legalidade ou a ilegalidade da decisão, os méritos e os deméritos das duas cidades, as vantagens e as desvantagens da descentralização, o cérebro do dr. Costa ou a falta dele.
Por mim, estou disposto a aceitar que trezentos e tal funcionários públicos fresquinhos representam uma enorme benfeitoria para a Invicta, que pelos vistos não tinha os bastantes. Conseguem imaginá-los a cirandar pelos Aliados e pelos Clérigos ao pôr-do-sol? A alma da Baixa vai desabrochar em flor. E os portuenses, cuja expectativa e cuja gratidão são grandes, já saíram à rua aos magotes, a celebrar a novidade e a agradecê-la aos céus, ao PS e a tudo o que é divino. Em suma, o Infarmed no Porto parece uma ideia portentosa. Mas não quero concluir nada até perceber, com a profundidade permitida por meia hora de consultas na “net”, o que é o Infarmed.
E o que é o Infarmed? A acreditar na Wikipedia, é um organismo estatal destinado a “regular e a supervisionar” medicamentos, além de “regulamentar, avaliar, autorizar, disciplinar, fiscalizar, verificar” os ditos. A quantidade de verbos severos e autoritários prova, em larga medida, a importância da instituição, popularizada por informar regularmente os portugueses de que os portugueses ingerem demasiados antidepressivos. As provas que faltavam encontram-se no BASE, o site dos contratos da administração pública: dado o dinheiro que nos custa, o Infarmed é realmente vital. Pelo menos, convém que o seja.
Descontados os gastos correntes e os gastos extraordinários cuja relevância não arrisco avaliar (exemplo: “um kit “knowltALL@ATR” _NPD5493002205”, 6.500€), só há 15 dias o Infarmed gastou 60 mil euros em assessores avençados para promover, cito, a “literacia na saúde”. Há um mês e pouco investiram-se quase 11 mil euros para “revestir as janelas do primeiro andar”. Quatro dias antes, 17 mil euros em “serviços de manutenção técnica” dos detectores de incêndio e das câmaras de vigilância. A 21 de Setembro, 7 mil euros em serviços de “design gráfico”. Em Agosto, graças às férias, o Infarmed não gastou um cêntimo adicional. Mas Julho fora uma festa, com 10 mil euros em avenças para, respirem fundo, a “contratação de serviços para apoio técnico ao funcionamento e desenvolvimento dos trabalhos da Comissão de Acompanhamento do Compromisso para a Sustentabilidade e o Desenvolvimento do SNS” (confere). E, note-se a espécie de ironia, com 75 mil euros em “serviços especializados de Comunicação, no âmbito da candidatura de Portugal à sede da EMA” (confere). Em Julho, houve, entre minudências, 75 mil euros em “serviços especializados, para simplificação de tarefas e processos”, 11 mil euros em “serviços de clipping”, 100 mil euros em tralha jurídica e 20 mil em “serviços especializados, para realização de um estudo do impacto económico de uma eventual relocalização da EMA” (confere). E por aí afora, recuando aos saltinhos pelos meses e pelas sucessivas adjudicações.
A julgar pelos gastos, porém, o forte do Infarmed são as viagens. No BASE, embora misteriosamente limitadas ao período 2008-2014, existem 521 viagens dos senhores do Infarmed, sempre rumo a encontros, congressos e reuniões essenciais ao futuro da humanidade. À luz da física, é compreensível a recusa da maioria dos funcionários em se mudarem para o Porto: eles vivem em permanente mudança para Bruxelas, Estrasburgo, Londres ou Paris. Apenas não se compreende o argumento da família, que os referidos nómadas contemporâneos invocam de modo a fugir à deslocação para norte. Dada a quantidade de voos, escalas, táxis e hotéis, há ali desgraçados que não vêem os filhos desde 2009.
Contas feitas, o episódio do Infarmed serve dois propósitos, ambos redundantes. O primeiro é mostrar os abismos de descaramento, demagogia e trafulhice a que o governo é capaz de descer. O segundo é lembrar que, apesar dos esforços do Infarmed, o país não tem remédio: ignoro se por manha ou criancice, toda a gente deseja acolher o Estado no quintal a título de dádiva, na presunção de que a proximidade ao entulho oficial constitui uma esperança e uma oportunidade. No máximo, conheço uns dezassete compatriotas que, caso pudessem, enviariam a administração pública em peso para a Papuásia, de resto a atitude própria de pessoas crescidas e saudáveis.
No fim, como de costume, as coisas ficarão na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto para justificar o barulho, cinco comissões inventadas para “articular” o arranjo, 165 empregos criados do zero, o poder a soltar foguetes, o dr. Costa a soltar perdigotos e, à revelia dos alertas de certa instituição, os portugueses a tomarem toneladas de antidepressivos. E precisam de tomar ainda mais.

Os bons alunos
OBSRVADOR, 22/11/2017
A plateia do país percebeu muito bem que não fora o insignificante resultado eleitoral do PC e Jerónimo não cuidaria hoje com tanto afã e tamanho zelo da função pública.
1. A Bélgica além de boa hospedeira do extraordinário Puigdemont revelou-se — já suspeitávamos — uma boa amiga: o tribunal de Bruxelas adiou a sua decisão sobre o processo do lider catalão. Já deve ser o pouco que lhe resta mas em saga tão conturbada é um bem vindo dois-em-um: a causa independentista recebe de borla mais um pouco de oxigénio e a sua campanha eleitoral recebe o bónus de continuar por mais uns dias como se nada se tivesse passado.
Mas o pior é que passou e o que se passou deixou marcas (e dizem-me que feridas incuráveis).
Eu sei que há pior e basta só pensar na Alemanha, por exemplo (e pensemos nela com um arrepio). Sucede que também sobre a Catalunha e o seu actual desvario chega a não se saber o que pensar. Sabe-se que Puigdemont é de opereta mas os custos da encenação podem ascender ao trágico. Não se sabe o desfecho da história mas sabe-se que — também me dizem — este ano quase não deve haver Natal em Barcelona e eis um eloquente dado sobre os estragos feitos. O Natal é um momento de celebração e festa para muita gente e, religioso ou não, a data e o seu valor simbólico reúnem e agregam. Juntam. Este ano não há “ambiente”. E, se houver, a alegria nas famílias, nos locais de trabalho, nos amigos, será postiça como nos maus cenários. O mais banal gesto quotidiano — frequentar a escola, apanhar um táxi, entrar no emprego, escolher um restaurante, ir a um supermercado — está corroído pelo ácido da divisão.
Nas grandes cidades, o ar catalão está contaminado. É certo que o credo independentista era – é — recitado todos os anos (desde 1714!) no dia 11 de Setembro em grandes manifestações em Barcelona. E desde 2012 (ou 2013, talvez) quando o “Estatut” foi rejeitado por Madrid, tais reuniões multiplicaram-se, ampliaram-se, passaram a ser multitudinárias. Ou seja, sempre houve cultores e defensores da independência. Mas é preciso recordar porém que, desde a Constituição de 1978, os catalães — embora mal amando o que alguns deles vêem como a omnipresente e omnívora cabeça de Castela — gozam de uma imensa autonomia em quase todos os âmbitos: Educação, Saúde, Cultura, Transportes. Mudaram inclusivamente a língua do ensino público para catalão, sem a oposição de Madrid face a um gesto tão pleno de significado.
Catalunha, povo de “oprimidos”? Ou não será mais sério recordar que mais de metade dos catalães não se identificam com o processo independentista? Que a tal Castela omnipresente e omnívora só surgiu, no céu da Catalunha, após o referendo de 1 Outubro de 2017? Que apenas “alguns” catalães são revolucionários (CUP e afins)? Ou que o motor deste surto independentista é o controle das Finanças, depauperadas pela crise de 2008/2015 que deixou com alto desemprego e baixa saúde a Catalunha?
2. Antes de tudo isto a vida, tant bien que mal, ia seguindo o seu curso: região, sociedade e povo conviviam entre si com naturalidade em vez de ferocidade. Com ideias diferentes mas honrando a cidadania. Face porém ao “circo Puigdemont” e a todos os desacreditantes “números” a que vimos assistindo e foi preciso ver para crer) interpretados por um casting de vigésima ordem política, o sonho independentista parece ter-se incumprido na sua própria ruína. Estilhaçou-se contra si mesmo. Dentro e fora da Espanha não se encontrará com facilidade e empenho alguém que aplauda ou sequer concorde — no fundo e na forma — com cada um dos inúmeros episódios assinados desde há muito por Puigdemont&amigos.
A falta de verosimilhança e de bússola — e de decoro — no verbo e no gesto do líder da Catalunha torna-o irrecomendável aos olhos da sua região e do mundo. Uma má história.
3. Enquanto o governo espanhol deseja — e deseja bem – um amplo consenso político-partidário na procura do melhor nome para substituir o Fiscal General del Estado, José Manuel Maza, que morreu subitamente há dias na Argentina, nenhuma sondagem dá vantagem nem alento aos (desunidos) partidos que concorrem às eleições de 21 de Dezembro com a bandeira da independência como mote e meta.
O dr. Soares gostava de dizer que “até ao lavar dos cestos havia vindima”, e é que a politica ame a surpresa, não se prevê que, apesar do mau momento que atravessam as sondagens, esta anti-epopeia dos independentistas chegue a qualquer porto que os salve de si mesmos.
4. Lembro-me bem de Puigdemont. Foi em Janeiro de 2016 e eu estava em Madrid para me aperceber in loco e ao vivo da complexa situação política espanhola que na altura lá se vivia, quando inopinadamente ele entrou em cena. Sobre a geral e constrangida perplexidade que isso então causou aqui dei conta, num texto onde contava e elaborava sobre as agruras políticas dos vizinhos e que agora fui reler, descobrindo que já lá estava quase tudo.
Puigdemont surgiu, de repente e sem pré-aviso na Generalitat catalã, vindo de Girona, onde era alcaide. Aterrou no último minuto, saído da cartola do anterior presidente, Artur Mas — impedido de concorrer — para o substituir na corrida eleitoral. Puigdemont, então com 53 anos e dono de farta cabeleireira, era um coelho irrequieto e inquieto. Um “pega e larga”, arqui-activo e obviamente separatista. Comprometendo-se a aviar a independência da Catalunha em 18 meses, “no máximo”, ignorou o Rei e omitiu a Constituição no seu discurso. A omissão voluntária das fundações do Estado espanhol indicava o nunca visto: o novo presidente do governo catalão anunciava aos quatro ventos para Madrid ouvir que não seria fiel nem de confiança.
Escorando-se na “vontade do povo da Catalunha”, mas invocando apenas “o ali representado naquele parlamento”, Puigdemont foi de imediato acusado publicamente de “traidor”. Foi-o em muitos quadrantes da media e da rua, enquanto se evocava a “inevitabilidade de consequência legais” para o seu desassombro. Houve constitucionalistas a analisar as implicações da forma e do conteúdo do discurso do novo presidente, que aliás o proferiu, tal como em 2012 o fizera Artur Mas, com a foto do Rei tapada por um cortinado. Em 2012 o Rei era Juan Carlos, em 2016 foi Felipe VI, mas o gesto foi o mesmo. “A devastação da forma alcançou hoje um nível inédito”, escrevia-se (pesarosamente) no El Mundo, enquanto o presidente do Congresso se indignava: Artur Mas, antigo presidente da Catalunha, dera cabo de tudo: da sua região, do seu partido e da sociedade catalã, mas tinha agora um discípulo à altura.
Parece que teve. Um óptimo discípulo.
Resta saber para que servirá — serviu? — tão bom aluno.
5Após a vitória dos professores não custava antecipar que “a esquerda e sindicatos falem em porta aberta a toda a função publica” (DN). Jornais e outros meios fizeram o favor de nos explicar, como se fosse preciso, que já havia mais carreiras a reivindicar o mesmo “tratamento” dos professores. Facto que de resto logo parecera uma “inevitabilidade” ao líder máximo comunista, Jerónimo de Sousa: não era essa reivindicação uma pura questão de “justiça”? Era: uma vez que a porta já se entre-abrira, com facilidade agora era escancará-la de vez para que entrassem todos. Os “todos” da função pública, claro está, que a mim não havia quem me abrisse porta nenhuma com tamanha solicitude. O sol quando nasce é para quem vota e a conta da despesa é para quem vier depois.
O líder comunista esqueceu-se, porém, de uma coisa não despiscienda: esqueceu-se que toda a plateia do país percebeu muito bem que não fora o insignificante resultado eleitoral do PC nas últimas eleições e Jerónimo de Sousa porventura não se afadigaria com tanto afinco e tanto afã. Outro bom aluno.
Tudo tão previsível. Tudo tão irresponsável.
6. É como lhes digo: há demasiadas sombras em volta.




Brincando aos sábios?


O aquecimento global, sendo algo de terrífico de que vamos sentindo os efeitos assustadores, afinal parece não ser tomado pelos cientistas de forma isenta de preconceito, pois misturam ciência e política, em sugestão de medidas que, como espanto final, repousam numa mudança de ideologia governativa, substituindo a democracia por um governo global, segundo a opinião severa de Paulo Tunhas, no seu artigo “Salvem-nos dos salvadores do mundo” : «O apelo a um governo global que resolva estes problemas observa-se amiúde. E amiúde se ouve falar da China como exemplo, por oposição à democracia americana.
Ou estamos todos já de cabeça perdida, na previsão do apocalipse, ou os sábios divertem-se a manipular as sensibilidades humanas, por maldade ou medo também, em alertas tenebrosos, e seguindo as suas próprias ideologias políticas. Um artigo para reflectir, este de Paulo Tunhas.

Salvem-nos dos salvadores do mundo
23/11/2017
Na controvérsia sobre o chamado aquecimento global, a dimensão científica e a dimensão política quase se confundem. Há uma passionalidade extrema que vicia a discussão de forma muito notória.
No último ano, guardei uma boa parte do meu tempo livre para ler alguma da vastíssima literatura em torno das alterações climáticas, ou, como normalmente se diz, em torno do “aquecimento global”. Não certamente para formar uma opinião sólida sobre a questão. Salta aos olhos, para quem se aventure a essas leituras, que a complexidade da questão não permite nem sequer a quem é especialista decisões fáceis. Mas para avaliar os termos da discussão, pesar o que se diz e como é dito. Isso é lícito e não revela pretensões desmesuradas.
Há, de resto, inúmeros estudos que procuram determinar as características mais gerais das controvérsias científicas e filosóficas, bem como as diferenças entre elas. Fernando Gil, entre outros, dedicou-se a tais análises. Diferentemente das controvérsias filosóficas, que, pela natureza dos seus objectos, são em grande parte indecidíveis (não se concluem com a adopção de uma posição comum apoiada em provas de valor variável mas efectivo), as controvérsias científicas tendem naturalmente para um fim onde se alcança alguma estabilidade no conhecimento. Os argumentos que se esgrimem podem (é verdade que em alguns casos, como a selecção natural darwiniana, por razões muito específicas, com dificuldade e muita incerteza pelo meio) ser testados e avaliados. E as controvérsias científicas são até um dos factores mais decisivos e indispensáveis no progresso do conhecimento.
Não há, é verdade, controvérsias científicas puras. Todas elas, mesmo as mais exigentes, se dão em contextos que as infiltram, entre outras coisas, de uma passionalidade que o recurso a uma certa retórica exibe plenamente. Mas, regra geral, essa “impureza” não impede a objectividade, a busca de uma universalidade objectiva, nas suas conclusões. Há certamente vários argumentos, que os estudos no campo da sociologia da ciência põem em relevo, normalmente exagerando-os, que tendem a acentuar, por exemplo, a luta pelo poder no interior da comunidade científica. Mas tais aspectos, que é legítimo apontar, raramente afectam o núcleo da controvérsia ou constituem uma ameaça maior para a adopção de uma conclusão falível e provisória mas objectivamente determinada.
A controvérsia sobre o chamado aquecimento global parece ser, sob muitos aspectos, uma excepção. Desde logo porque nela a dimensão científica e a dimensão política quase se confundem. E à dificuldade em testar as hipóteses de forma aproximadamente conclusiva acrescenta-se uma passionalidade extrema que vicia a discussão de forma muito notória. Simplificando, sem dúvida: a busca de provas, que é o que se almeja através do teste das hipóteses, vê-se em larga medida desviada do seu curso normal pela intrusão de um tecido de argumentações investidas de um significado político e ideológico que em nada é ditado pela busca da verdade. Melhor: que é de si insusceptível de contribuir para tal busca, já que tais argumentações são importadas de lugares (a política, e até a ética) onde as doutrinas não podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas. Como preferíveis ou indesejáveis, certamente, mas sem que a preferência ou a indesejabilidade sejam capazes de se constituírem sob o modo de uma universalidade objectiva.
Na controvérsia sobre o “aquecimento global”, isso é patente desde o início, e tornou-se inevitável, porque institucionalizado, desde a criação, em 1988, sob os auspícios das Nações Unidas, do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Como o próprio nome o indica, trata-se de uma organização política que mobiliza um número significativo de cientistas de várias áreas que produzem com regularidade relatórios que visam determinar as políticas governamentais. Não quero discutir a legitimidade de tal instituição, apenas indicar que, do ponto de vista da investigação científica enquanto tal, há algo de anómalo nela e nos efeitos que produz. Anómalo porque a subordinação da investigação científica a uma entidade com fins políticos (a determinação das políticas governamentais) é já de si problemática. Dir-se-á que há vários outros casos assim. Talvez. Mas duvido grandemente que com idêntico alcance. E anómalo também pelo poder de que a instituição é investida e pelas práticas a que o exercício desse poder fatalmente conduz.
Exemplos? A demonização de quem propõe hipóteses alternativas para explicar as alterações climatéricas ou a sua origem, eventualmente não antropogénica, muitas vezes gente que, tendo trabalhado para o IPCC, discordou do modo como o seu trabalho foi aproveitado no sentido de inclinar a apresentação dos seus resultados da forma mais conveniente aos pressupostos políticos que presidem ao IPCC. São por isso muitos os cientistas de relevo que abandonaram a colaboração com a organização. A demonização adopta várias formas, sendo a mais comum a atribuição a tais cientistas de motivos dúbios resultantes de reais ou imaginárias (imaginárias em muitos casos) colaborações com empresas que veriam os seus interesses ameaçados pelas políticas propostas pelo IPCC. Os ataques ad hominem tornaram-se o pão nosso de cada dia.
A convicção de justeza política e o sentimento de poder conduzem igualmente a várias patologias secundárias. Como, por exemplo, a liberdade tomada na manipulação dos resultados, facilitada pelo facto de, dada a natureza do problema estudado, o recurso a modelos eminentemente problemáticos ser obrigatória. Dois casos ficaram célebres. O primeiro é o de um grafo, elaborado por Michael E. Mann em 1999, em que todas as doutrinas que a paleoclimatologia estabelecera sobre a existência de um “período quente medieval” (do séc. XI ao séc. XIV) e da “pequena idade do gelo” (do séc. XIV ao séc. XIX) se vêem recusadas em benefício de um modelo que decreta uma quase uniformidade constante das temperaturas desde o ano mil, que termina com uma colossal elevação nos últimos 150 anos (daí o nome de “stick de hockey” dado ao grafo). (A propósito: sobre o “período medieval quente” e a “pequena idade de gelo”, quem estiver interessado pode ler dois maravilhosos livros de Brian Fagan: The Long Summer, que tem um escopo mais vasto, e The Little Ice Age.) Acontece que o grafo de Mann foi produzido introduzindo um modelo que conduziria, quaisquer que fossem os dados utilizados, a esse resultado. O IPCC utilizou-o abundantemente, dando-lhe uma posição de relevo. O outro é o chamado “Climategate”, onde a divulgação de vários mails provenientes de uma unidade de investigação da Universidade de East Anglia mostrou o inacreditável grau de manipulação a que os resultados eram submetidos para parecerem revelar concordância com as versões mais radicais das alterações climáticas propostas pelo IPCC.
A fraude em ciência é uma matéria largamente estudada e nada há de particularmente original naquela que se observa no IPCC. O que há de original é o extraordinário investimento passional que a ela preside e a fantástica cobertura mediática de que beneficia (o jornalismo abre-lhe por inteiro os braços), e a que dão corpo personagens como o sintomaticamente horrível Al Gore (o formidável exercício de narcisismo e de manipulação de imagens, como a do urso polar, do seu primeiro filme, Uma verdade inconveniente, é um dos mais tristes espectáculos a ver.) Esse investimento traduz-se em proclamações sucessivas segundo as quais a última probabilidade de “salvar o mundo” se mede em poucos anos sistematicamente alterados a cada nova intervenção.
Não pretendo com tudo isto, que é uma ínfima parcela do que haveria para dizer sobre esta tão poluída controvérsia, insinuar que as alterações climáticas não existam e não sejam um problema ou que não haja, pelo menos parcialmente, razões humanas, para elas. Pelo contrário: do fundo da minha ignorância, se fosse obrigado a emitir uma opinião na matéria, diria que sim a tudo, ou quase. Quero apenas dizer que o velho preceito aristotélico segundo o qual em matérias onde não há demonstração conclusiva é recomendável seguir as opiniões dos mais velhos e dos mais sábios não parece aqui aplicar-se sem reservas. Se os mais sábios são gente como esta, não são de confiar. Não vale tudo e a probidade científica é um valor a defender. Até porque neste aspecto, é quase indistinguível da defesa da democracia. O apelo a um governo global que resolva estes problemas observa-se amiúde. E amiúde se ouve falar da China como exemplo, por oposição à democracia americana. E não, não são só George Monbiot ou Naomi Klein que têm sonhos deste tipo. É também gente na aparência mais pacata.


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Homem, esse cada vez mais desconhecido


Um artigo valioso, o que segue, de Teresa Serafim, sobre Encelado e a descoberta de água líquida e condições de vida nessa lua de Saturno, mais uma história da infinita capacidade humana de inteligência e pesquisa que nos levam sei lá onde de descoberta e comportamentos.
Contou ontem a minha irmã que viu e leu num telemóvel, na sua casa, uma gravação de uma canção, de letra e música compostas – e executadas - pelo seu neto André, no seu quarto, cá, e o seu irmão David, acompanhando-o musicalmente, em simultâneo, na Dinamarca. Soltámos os nossos espantos sobre o engenho humano, sucessivamente revelado nestas realizações cada vez mais extraordinárias que mostram que já não há distâncias, como, de resto, o próprio Skype já nos mostrara e a Internet o faz a cada passo. Só o enternecimento da minha irmã perante a beleza do que escutara, ou os comentários maliciosos ou trágicos da nossa amiga é que nos parecem terreno conhecido. E os nossos espantos também, é claro, vindos de todos os tempos, nas manifestações humanas naturais ou recriadas através da arte. 
Leiamos o artigo de Teresa Serafim, que nos deixa boquiabertos. Que mais nos irá suceder de maravilha "por mares nunca dantes navegados"?

Por que é que a lua Encelado tem um oceano (escondido) de água líquida?
Uma equipa de cientistas juntou todas as peças das descobertas feitas sobre Encelado e explica a razão da existência de um oceano líquido nesta lua de Saturno.
10 de Novembro de 2017

Está na hora de sairmos do planeta Terra e navegarmos até ao sistema de Saturno. O planeta orelhudo tem uma lua que nos tem suscitado interesse há já muito tempo. Chama-se Encelado e é uma pequena bola de 500 quilómetros de diâmetro com um núcleo rochoso e coberta por uma camada de gelo. Além disso, e é isso que faz dela uma lua especial, tem água líquida, uma das condições consideradas essenciais para a existência de vida. Mas o que permite que Encelado tenha um oceano de água líquida? Um novo estudo, na revista científica Nature Astronomy, refere que é tudo uma questão de “puxões” provocados pela gravidade de Saturno, ou seja, um efeito de maré.
Já sabemos que esta lua existe desde 1789, quando o astrónomo inglês William Herschel a descobriu. Deu-lhe o nome de Encelado, um dos gigantes da mitologia grega. Este era considerado o gigante mais fraco, mas o mais inteligente. Mitologias à parte, Encelado é uma lua interessante. Tivemos imagens marcantes dela nos anos 80 com a missão Voyager. Mas foi com a Cassini, uma missão conjunta da NASA, da Agência Espacial Europeia (ESA) e da Agência Espacial Italiana, que partimos à descoberta do que Saturno nos escondia e, claro, de Encelado.
A viagem da Cassini terminou este ano, com um mergulho de despedida em Setembro em direcção ao planeta, e muito contribuiu para o conhecimento desta lua. Uma série de voos aproximados a Encelado começou em 2005 e um deles fez-se mesmo a cerca de 50 quilómetros de distância. Percebemos assim que Encelado era muito complexa a nível geológico: tem um oceano de água salgada onde há actividade hidrotermal; uma camada gelada de 20 a 25 quilómetros de espessura (no pólo Sul tem entre um e cinco quilómetros); uma fonte de calor; e compostos orgânicos. Condições semelhantes a estas existem também aqui na Terra, nas fontes hidrotermais e nos vulcões de lama submarinos, que permitem à vida existir na ausência de luz solar.
Outra das imagens (e descobertas) foram jactos a sair no pólo Sul, lançados no espaço e que têm vapor de água e moléculas de dióxido de carbono, azoto, metano, amoníaco e outros compostos orgânicos, assim como por “grãozinhos” de gelo. Por exemplo, alguns grãozinhos produzidos em Encelado foram parar um dos anéis de Saturno, o no anel E.
Mas o que faz com que Encelado tenha estas condições e que se torne assim propícia a ter vida?
Agora, pela primeira vez, um estudo junta as peças todas e constrói um “puzzle” que liga o oceano que existe por toda a lua, o aquecimento interno de Encelado, o gelo mais fino no pólo Sul e a actividade hidrotermal. As primeiras pistas vieram do material que saía dos jactos, que incluía sais e grãos de sílica, o que sugeria que se formavam na presença de água muito quente (pelo menos a 90 graus Celsius), através da interacção entre a água e a rocha porosa do núcleo. “Estas observações requerem uma grande fonte de calor, cerca de 100 vezes maior do que é expectável pelo decaimento natural dos elementos radioactivos nas rochas do núcleo”, lê-se num comunicado sobre o trabalho.
A equipa concluiu que é o efeito de maré provocado por Saturno que origina os jactos, que por sua vez deformam a camada de gelo. Simulações realizadas pela equipa, que tem cientistas da Europa e Estados Unidos, permitiram perceber que o núcleo tem uma rocha solta, com 20 a 30% de espaços vazios. Esses espaços permitem assim que a água do oceano entre no interior do núcleo e seja aquecida. Esta actividade hidrotermal pode atingir o seu máximo nos pólos. Afinal, é aí que a água vinda do interior é emanada através dos jactos.
 “Tem sido sempre um mistério onde é que Encelado obtém energia contínua para permanecer activa, mas agora examinámos em grande detalhe como é que a estrutura e a composição do núcleo de rocha da lua podem ter um papel-chave na geração da energia necessária”, diz o principal autor do artigo científico, Gaël Choblet, da Universidade de Nantes (França). Mas a energia produzida graças ao efeito de maré pode não ser suficiente para manter o oceano líquido, que poderá congelar dentro de 30 milhões de anos, refere o comunicado.
Os cientistas ainda não conseguem explicar a diferença entre o pólo Sul e o pólo Norte. Por isso, dizem que é preciso mais investigação para perceber o que os jactos contêm, assim como para descobrir se há vida nesta lua. “Futuras missões que analisem as moléculas orgânicas na pluma de Encelado, com uma precisão maior do que a Cassini, poderão revelar-nos se as condições hidrotermais podem permitir que a vida surja”, considera Nicolas Altobelli, cientista da ESA que participou na missão Cassini (e que não fez parte deste trabalho). 

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Os cientistas e engenheiros da NASA já estão a conceber um novo aparelho que capta ondas submilimétricas – o Submilimeter Enceladus Life Fundamentals Instrument (ou SELFI), para um dia ir a bordo de uma sonda estudar a composição do vapor de água e das partículas de gelo lançadas pelos jactos de Encelado. Através do estudo dessas plumas, os cientistas acreditam que podem extrapolar qual é a composição do oceano que se encontra por baixo da crosta de gelo e que pode ter vida extraterrestre. “O vapor de água e outras moléculas podem revelar alguma da química do oceano e ajudar a encontrar a melhor trajectória para uma sonda espacial através das plumas, para fazer mais medições directas”, explica Gordon Chin, cientista da NASA. 
E, mais uma vez, surge a questão: terá esta lua com nome de gigante alguma forma de vida? E, a existir, como será ela?