“Um país sem remédio”, texto
de Alberto Gonçalves, mostra-nos, em “analepse”, o que sucedeu, por alturas da
hipótese de escolha entre Lisboa ou Porto como sede da “EMA”: logo se
estabeleceu a guerrilha entre as duas cidades, mesmo sem que se tivessem ainda
decidido as pretensões dos responsáveis europeus pela localização da Agência
Europeia de Medicamentos. Senti, então,o nosso irremediável ridículo bairrista,
na precipitação de dado adquirido sem fundamento, e o jogo ao ataque do nosso brio
festivaleiro ou mesquinhamente disputador. Alberto Gonçalves refere-o de
passagem, para seguidamente nos esclarecer sobre a decisão compensatória, face
ao resultado “EMA”, de transferir o Infarmed de Lisboa para o Porto. Assim, sem
mais nem menos. Alberto Gonçalves explica e, naturalmente, põe isso a ridículo.
Somos assim.
Quanto
ao artigo de Maria João Avillez – «Os bons alunos» - é sobretudo de
indignação contra Puigdemont, uma figura com quem muitos catalães não alinham
em comum ideal separatista. Figura ridícula também, em fim de contas, destituída
de sentimentos pátrios, e, talvez por termos origem comum – Espanha e Portugal –
fere-nos igualmente o desconchavo de uma insólita atitude que tanta gente manipulou,
até mesmo por cá. Para além disso, o
problema das greves, de vários grupos protestantes, que, por despeito pela sua
derrota eleitoral, na opinião de Maria João Avillez – e nem sequer é necessário
muito conhecimento psicológico para tal dedução - Jerónimo de Sousa se apressou
a convocar, através dos sindicatos, indiferente à ruína da nação. Somos assim,
que fazer?
Dois
artigos, como sempre, especiais, quer pelas temáticas, quer pelo engenho
crítico.
Um país sem remédio
OBSERVADOR, 25/11/17
No fim, como de costume,
as coisas ficarão na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto
para justificar o barulho e cinco comissões inventadas para “articular” o
arranjo.
Há tempos, o Porto, ou
alguém em seu nome, candidatou-se a receber em definitivo uma resma de
burocratas europeus, vulgo EMA. Esta semana, perdeu a candidatura. O governo,
que começou por decretar Lisboa o único ponto geográfico capaz de alcançar
tamanha honra e de seguida andou aos ziguezagues, decidiu agora compensar o
Porto através da cedência de uma resma de burocratas caseiros, vulgo Infarmed.
O dr. Rui Moreira ficou muito contente. Os funcionários do Infarmed, que consta
habitarem lá em baixo, não ficaram tão contentes. E o povo que opina sobre
assuntos assim desatou a discutir a legalidade ou a ilegalidade da decisão, os
méritos e os deméritos das duas cidades, as vantagens e as desvantagens da
descentralização, o cérebro do dr. Costa ou a falta dele.
Por mim, estou disposto
a aceitar que trezentos e tal funcionários públicos fresquinhos representam uma
enorme benfeitoria para a Invicta, que pelos vistos não tinha os bastantes.
Conseguem imaginá-los a cirandar pelos Aliados e pelos Clérigos ao pôr-do-sol?
A alma da Baixa vai desabrochar em flor. E os portuenses, cuja expectativa e
cuja gratidão são grandes, já saíram à rua aos magotes, a celebrar a novidade e
a agradecê-la aos céus, ao PS e a tudo o que é divino. Em suma, o Infarmed no
Porto parece uma ideia portentosa. Mas não quero concluir nada até perceber,
com a profundidade permitida por meia hora de consultas na “net”, o que é o
Infarmed.
E o que é o Infarmed? A
acreditar na Wikipedia, é um organismo estatal destinado a “regular e a
supervisionar” medicamentos, além de “regulamentar, avaliar, autorizar,
disciplinar, fiscalizar, verificar” os ditos. A quantidade
de verbos severos e autoritários prova, em larga medida, a importância da
instituição, popularizada por informar regularmente os portugueses de que os
portugueses ingerem demasiados antidepressivos. As provas que faltavam
encontram-se no BASE, o site dos contratos da administração pública: dado o
dinheiro que nos custa, o Infarmed é realmente vital. Pelo menos, convém que o
seja.
Descontados os gastos
correntes e os gastos extraordinários cuja relevância não arrisco avaliar
(exemplo: “um kit “knowltALL@ATR” _NPD5493002205”, 6.500€), só há 15 dias o
Infarmed gastou 60 mil euros em assessores avençados para promover, cito, a
“literacia na saúde”. Há um mês e pouco investiram-se quase 11 mil euros para
“revestir as janelas do primeiro andar”. Quatro dias antes, 17 mil euros em
“serviços de manutenção técnica” dos detectores de incêndio e das câmaras de
vigilância. A 21 de Setembro, 7 mil euros em serviços de “design gráfico”. Em
Agosto, graças às férias, o Infarmed não gastou um cêntimo adicional. Mas Julho
fora uma festa, com 10 mil euros em avenças para, respirem fundo, a
“contratação de serviços para apoio técnico ao funcionamento e desenvolvimento
dos trabalhos da Comissão de Acompanhamento do Compromisso para a
Sustentabilidade e o Desenvolvimento do SNS” (confere). E, note-se a espécie de
ironia, com 75 mil euros em “serviços especializados de Comunicação, no âmbito
da candidatura de Portugal à sede da EMA” (confere). Em Julho, houve, entre
minudências, 75 mil euros em “serviços especializados, para simplificação de
tarefas e processos”, 11 mil euros em “serviços de clipping”, 100 mil euros em
tralha jurídica e 20 mil em “serviços especializados, para realização de um
estudo do impacto económico de uma eventual relocalização da EMA” (confere). E
por aí afora, recuando aos saltinhos pelos meses e pelas sucessivas
adjudicações.
A julgar pelos gastos,
porém, o forte do Infarmed são as viagens. No BASE, embora misteriosamente
limitadas ao período 2008-2014, existem 521 viagens dos senhores do Infarmed,
sempre rumo a encontros, congressos e reuniões essenciais ao futuro da
humanidade. À luz da física, é compreensível a recusa da maioria dos
funcionários em se mudarem para o Porto: eles vivem em permanente mudança para
Bruxelas, Estrasburgo, Londres ou Paris. Apenas não se compreende o argumento
da família, que os referidos nómadas contemporâneos invocam de modo a fugir à
deslocação para norte. Dada a quantidade de voos, escalas, táxis e hotéis, há
ali desgraçados que não vêem os filhos desde 2009.
Contas feitas, o
episódio do Infarmed serve dois propósitos, ambos redundantes. O primeiro é
mostrar os abismos de descaramento, demagogia e trafulhice a que o governo é
capaz de descer. O segundo é lembrar que, apesar dos esforços do Infarmed, o
país não tem remédio: ignoro se por manha ou criancice, toda a gente deseja
acolher o Estado no quintal a título de dádiva, na presunção de que a
proximidade ao entulho oficial constitui uma esperança e uma oportunidade. No
máximo, conheço uns dezassete compatriotas que, caso pudessem, enviariam a administração
pública em peso para a Papuásia, de resto a atitude própria de pessoas
crescidas e saudáveis.
No fim, como de costume,
as coisas ficarão na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto
para justificar o barulho, cinco comissões inventadas para “articular” o
arranjo, 165 empregos criados do zero, o poder a soltar foguetes, o dr. Costa a
soltar perdigotos e, à revelia dos alertas de certa instituição, os portugueses
a tomarem toneladas de antidepressivos. E precisam de tomar ainda mais.
Os bons alunos
OBSRVADOR, 22/11/2017
A plateia do país
percebeu muito bem que não fora o insignificante resultado eleitoral do PC e
Jerónimo não cuidaria hoje com tanto afã e tamanho zelo da função pública.
1. A Bélgica além de boa hospedeira do extraordinário
Puigdemont revelou-se — já suspeitávamos — uma boa amiga: o tribunal
de Bruxelas adiou a sua decisão sobre o processo do lider catalão. Já deve ser
o pouco que lhe resta mas em saga tão conturbada é um bem vindo dois-em-um: a
causa independentista recebe de borla mais um pouco de oxigénio e a sua
campanha eleitoral recebe o bónus de continuar por mais uns dias como se nada
se tivesse passado.
Mas o pior é que passou e o
que se passou deixou marcas (e dizem-me que feridas incuráveis).
Eu sei que há pior e
basta só pensar na Alemanha, por exemplo (e pensemos nela com um arrepio).
Sucede que também sobre a Catalunha e o seu actual desvario chega a não se
saber o que pensar. Sabe-se que Puigdemont é de opereta mas os custos da
encenação podem ascender ao trágico. Não se sabe o desfecho da história mas
sabe-se que — também me dizem — este ano quase não deve haver Natal em
Barcelona e eis um eloquente dado sobre os estragos feitos. O Natal é um
momento de celebração e festa para muita gente e, religioso ou não, a data e o
seu valor simbólico reúnem e agregam. Juntam. Este ano não há “ambiente”. E, se
houver, a alegria nas famílias, nos locais de trabalho, nos amigos, será
postiça como nos maus cenários. O mais banal gesto quotidiano — frequentar a
escola, apanhar um táxi, entrar no emprego, escolher um restaurante, ir a um
supermercado — está corroído pelo ácido da divisão.
Nas grandes cidades, o ar
catalão está contaminado. É certo que o credo independentista era – é —
recitado todos os anos (desde 1714!) no dia 11 de Setembro em grandes
manifestações em Barcelona. E desde 2012 (ou 2013, talvez) quando o
“Estatut” foi rejeitado por Madrid, tais reuniões multiplicaram-se,
ampliaram-se, passaram a ser multitudinárias. Ou seja, sempre houve cultores e
defensores da independência. Mas é preciso recordar porém que, desde
a Constituição de 1978, os catalães — embora mal amando o que alguns deles vêem
como a omnipresente e omnívora cabeça de Castela — gozam de uma imensa
autonomia em quase todos os âmbitos: Educação, Saúde, Cultura,
Transportes. Mudaram inclusivamente a língua do ensino público para catalão,
sem a oposição de Madrid face a um gesto tão pleno de significado.
Catalunha, povo de
“oprimidos”? Ou não será mais sério recordar que mais de metade
dos catalães não se identificam com o processo independentista? Que a tal
Castela omnipresente e omnívora só surgiu, no céu da Catalunha, após o
referendo de 1 Outubro de 2017? Que apenas “alguns” catalães são
revolucionários (CUP e afins)? Ou que o motor deste surto
independentista é o controle das Finanças, depauperadas pela crise de 2008/2015
que deixou com alto desemprego e baixa saúde a Catalunha?
2. Antes de tudo isto a vida, tant bien que
mal, ia seguindo o seu curso: região, sociedade e povo conviviam entre si com
naturalidade em vez de ferocidade. Com ideias diferentes mas honrando a cidadania.
Face porém ao “circo Puigdemont” e a todos os desacreditantes
“números” a que vimos assistindo e foi preciso ver para crer) interpretados por
um casting de vigésima ordem política, o sonho independentista parece
ter-se incumprido na sua própria ruína. Estilhaçou-se contra si mesmo. Dentro e
fora da Espanha não se encontrará com facilidade e empenho alguém que aplauda
ou sequer concorde — no fundo e na forma — com cada um dos inúmeros episódios
assinados desde há muito por Puigdemont&amigos.
A falta de
verosimilhança e de bússola — e de decoro — no verbo e no gesto do líder da
Catalunha torna-o irrecomendável aos olhos da sua região e do mundo. Uma má
história.
3. Enquanto o governo espanhol deseja — e deseja bem
– um amplo consenso político-partidário na procura do melhor nome para
substituir o Fiscal General del Estado, José Manuel Maza, que morreu
subitamente há dias na Argentina, nenhuma sondagem dá vantagem nem alento aos
(desunidos) partidos que concorrem às eleições de 21 de Dezembro com a bandeira
da independência como mote e meta.
O dr. Soares gostava de
dizer que “até ao lavar dos cestos havia vindima”, e é que a politica ame a
surpresa, não se prevê que, apesar do mau momento que atravessam as sondagens,
esta anti-epopeia dos independentistas chegue a qualquer porto que os salve de
si mesmos.
4. Lembro-me bem de Puigdemont. Foi em Janeiro de
2016 e eu estava em Madrid para me aperceber in loco e ao vivo da
complexa situação política espanhola que na altura lá se vivia, quando inopinadamente
ele entrou em cena. Sobre a geral e constrangida perplexidade que isso então
causou aqui dei conta, num texto onde contava e elaborava sobre as agruras
políticas dos vizinhos e que agora fui reler, descobrindo que já lá estava
quase tudo.
Puigdemont surgiu, de
repente e sem pré-aviso na Generalitat catalã, vindo de Girona, onde era
alcaide. Aterrou no último minuto, saído da cartola do anterior presidente,
Artur Mas — impedido de concorrer — para o substituir na corrida eleitoral.
Puigdemont, então com 53 anos e dono de farta cabeleireira, era um
coelho irrequieto e inquieto. Um “pega e larga”, arqui-activo e obviamente
separatista. Comprometendo-se a aviar a independência da Catalunha em 18 meses,
“no máximo”, ignorou o Rei e omitiu a Constituição no seu discurso. A omissão
voluntária das fundações do Estado espanhol indicava o nunca visto: o novo
presidente do governo catalão anunciava aos quatro ventos para Madrid ouvir que
não seria fiel nem de confiança.
Escorando-se na “vontade do
povo da Catalunha”, mas invocando apenas “o ali representado naquele
parlamento”, Puigdemont foi de imediato acusado publicamente de “traidor”.
Foi-o em muitos quadrantes da media e da rua, enquanto se evocava a “inevitabilidade
de consequência legais” para o seu desassombro. Houve
constitucionalistas a analisar as implicações da forma e do conteúdo do
discurso do novo presidente, que aliás o proferiu, tal como em 2012 o fizera Artur
Mas, com a foto do Rei tapada por um cortinado. Em 2012 o Rei era Juan
Carlos, em 2016 foi Felipe VI, mas o gesto foi o mesmo. “A devastação da
forma alcançou hoje um nível inédito”, escrevia-se (pesarosamente) no El Mundo,
enquanto o presidente do Congresso se indignava: Artur Mas, antigo
presidente da Catalunha, dera cabo de tudo: da sua região, do seu partido e da
sociedade catalã, mas tinha agora um discípulo à altura.
Parece que teve. Um óptimo
discípulo.
Resta saber para que
servirá — serviu? — tão bom aluno.
5. Após a vitória dos professores não custava
antecipar que “a esquerda e sindicatos falem em porta aberta a toda a função
publica” (DN). Jornais e outros meios fizeram o favor de nos explicar, como
se fosse preciso, que já havia mais carreiras a reivindicar o mesmo
“tratamento” dos professores. Facto que de resto logo parecera uma “inevitabilidade”
ao líder máximo comunista, Jerónimo de Sousa: não era essa reivindicação uma
pura questão de “justiça”? Era: uma vez que a porta já se entre-abrira, com
facilidade agora era escancará-la de vez para que entrassem todos. Os “todos”
da função pública, claro está, que a mim não havia quem me abrisse porta
nenhuma com tamanha solicitude. O sol quando nasce é para quem vota e a conta
da despesa é para quem vier depois.
O líder comunista
esqueceu-se, porém, de uma coisa não despiscienda: esqueceu-se que toda a
plateia do país percebeu muito bem que não fora o insignificante resultado
eleitoral do PC nas últimas eleições e Jerónimo de Sousa porventura não se
afadigaria com tanto afinco e tanto afã. Outro bom aluno.
Tudo tão previsível.
Tudo tão irresponsável.
6. É como lhes digo: há demasiadas sombras
em volta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário