quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Asas brancas


Não resisti a transcrever o diálogo de comentário crítico ao texto de Frei Bento Domingues“A ignorância não é um dever” - entre ESPECTRO de Matosinhos e ANJO CAÍDO do Outro Mundo, pela sua frontalidade e sentido de humor, de que o artigo de Frei Bento Domingues é também exemplo. Não querendo associar-me às disputas sobre os costumes e a existência do Mal de que a própria Bíblia dá provas, ressalvando a questão das pedradas bíblicas à mulher adúltera, mas isso já nos tempos de Cristo, pois que o Jeová do A.T. era mais exigente em termos de punições, lembro o caso do nosso Camilo e os seus amores por Ana Plácido, e o de Garrett e os seus amores por D. Rosa Montufar, a Viscondessa da Luz, tudo isso no século XIX. E, para me livrar destes horrores da criminalidade corrente hoje em dia, até justificada, em caso de adultério feminino, por um juiz Neto de Moura, justamente criticado e cito João Miguel Tavares - “as reflexões cavernícolas contidas naquele texto, que mais parece ter sido escrito por um levita no sopé do monte Sinai enquanto aguardava o regresso de Moisés com as Tábuas da Lei. Naturalmente, a indignação com tal acórdão foi justíssima e generalizada.” – transcrevo o poema de Garrett “As minhas Asas” que resgata plenamente o crime do adultério, mesmo contrariando o tal Acórdão desculpabilizante do crime de violência doméstica, neste nosso século XXI. Crime praticado com uma moca de pregos! Credo!
Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

-Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
-Veio a ambição, coas grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
-Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

-Tudo perdi n'essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.          Almeida Garrett

OPINIÃO
A ignorância não é um dever
Não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental.
Frei Bento Domingues, OP
Público, 5 de Novembro de 2017
1. Lutero não passou por Portugal. Na revista Brotéria, de Outubro, tentei explicar porque lhe negaram o passaporte. Apesar disso, de vez em quando, surgem acontecimentos que levam os meios de comunicação a lembrar que existe uma coisa muito antiga chamada Bíblia, que ele próprio traduziu para alemão. Agora parece que foi invocada, juntamente com o código penal de 1886, pelos juízes Neto Moura e Maria Luísa Arantes, para atenuar um crime horroroso contra uma mulher adúltera.
Não admira, dizia-me um leitor de Saramago. A Bíblia está cheia de histórias escandalosas e de maus exemplos. O diabo não precisa de ser muito pior do que um deus que mata e manda matar. Esse livro parece escrito por um bipolar: passa facilmente do sublime ao detestável, por vezes no mesmo salmo. No entanto, cuidadosamente encadernado fica bem numa sala, ainda que pouco frequente numa casa portuguesa. Entre as dificuldades em ler e interpretar esses textos antigos figura uma insistente ignorância ou esquecimento: a Bíblia não é um livro!
Habituados, como estamos, a ver as Sagradas Escrituras cristãs num só volume e a dar-lhes um nome no singular, a Bíblia, somos levados a imaginar que é uma obra que um autor divino escreveu, de fio-a-pavio, mas com mais heterónimos do que Fernando Pessoa. 
Na verdade, não se trata de um livro, mas de uma biblioteca formada por 73 ou 74 obras, segundo o cânone da Igreja católica, e 66, segundo o cânone das Igrejas reformadas. Foi escrita ao longo de vários séculos em diversos contextos geográficos, sociais e culturais.
Sem poder entrar aqui em pormenores, convém lembrar o seguinte: quase dois terços dos livros da Bíblia cristã são comuns ao cristianismo e ao judaísmo rabínico, herdeiro imediato das escrituras do judaísmo antigo. Na verdade, o Antigo Testamento (AT) católico é mais vasto e variado do que o TaNak e o AT das Igrejas reformadas que adoptaram o cânone judaico. A escrita dos livros do AT católico durou cerca de um milénio. Teve como quadro essencial a Palestina. É possível que alguns livros tenham sido escritos, em parte, na Babilónia e outros no Egipto (em Alexandria).
A exegese histórico-crítica mostrou que figuram no AT diferentes géneros literários e temas que são documentados nas outras literaturas próximo-orientais do primeiro milénio a.C., em particular, nas literaturas dos demais povos semitas [1].
2. Os juízes, se queriam referir-se à relação de homens e mulheres na Bíblia, teriam de se aconselhar com o trabalho de investigação e de militância das feministas que reexaminam não só a própria Bíblia, mas também a interpretação que os homens fazem dela, tentando, muitas vezes, justificar e perpetuar uma dominação ancestral, própria de sociedades patriarcais. A mulher era propriedade do marido; a virgem, antes do noivado, propriedade do pai. O adultério da mulher e a defloração de uma rapariga eram, antes de mais, um atentado contra o direito de propriedade [2].
A exegese bíblica feminista assume-se como instrumento de luta pela igualdade social. O seu objectivo expressa-se em termos de emancipação ou de libertação das mulheres. Desse ponto de vista, a leitura feminista da Bíblia é comparada e, em parte, comparável ao trabalho da Teologia da Libertação.
Contrariamente ao que às vezes se afirma, não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental. A subordinação era um traço das civilizações europeias antes da chegada da Bíblia. Essas civilizações tinham esse traço em comum com as civilizações do Próximo Oriente de que a Bíblia é uma expressão. O que a Bíblia fez foi dar a essa prática a sua legitimação religiosa.
Sendo fruto da civilização ocidental, o próprio feminismo é herdeiro da mesma Bíblia que deu caução religiosa à supremacia dos homens sobre as mulheres. Por isso, é natural que a Bíblia ocupe um lugar muito importante nos estudos feministas, mas as mulheres ainda estão longe da paridade com os homens. Na Igreja Católica, intérprete autorizada da Bíblia, a hierarquia continua a ser formada só por homens e, além disso, celibatários [3].
O NT não legitima as atitudes dominadoras do AT em relação às mulheres. Pelo contrário, elas estão incluídas no espantoso universalismo cristão, sublinhado por Paulo: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” [4]. No Evangelho de Marcos, mostra-se que o homem pode ser adúltero contra a mulher. Como nota Frederico Lourenço, trata-se de “um desenvolvimento notável rumo à igualdade de género” [5].
Quanto à atitude de Jesus em relação ao apedrejamento de uma mulher apanhada em adultério, aconselho a leitura das admiráveis observações do mesmo autor ao texto atribuído ao evangelista João [6].
Se houve mulheres que se emanciparam para servir o projecto de Jesus, é porque esse projecto as incluía. O Ressuscitado encarregou-as de evangelizar os próprios apóstolos. Daí que a Maria Madalena tivesse sido designada como Apóstola dos Apóstolos.
3. Frederico Lourenço entregou-se a um empreendimento que julguei impossível, quando foi anunciado: traduzir, do texto grego, o conjunto da Bíblia, tradicionalmente conhecido pelo nome de Septuaginta, com apresentação, introdução e notas dos vários livros. Sobre a significação, a originalidade e as explicações acerca da Bíblia Grega, o tradutor encarregou-se de nos elucidar logo no Vol. I, consagrado aos Quatro Evangelhos, em 2016. Em 2017, surgiram o Vol. II, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, e o Vol. III, Os Livros Proféticos. Este, em Outubro. É o segundo acontecimento mais importante do ano para todos os que julgam que a ignorância do mundo bíblico não é obrigatória.
Francolino Gonçalves, O.P., morreu a 15 de Junho deste ano, na Escola Bíblica de Jerusalém, na qual viveu, investigou e ensinou, durante mais de 40 anos. Segundo alguns confrades, sofreu muito por não poder continuar as investigações do AT, que tinha em mãos, especialmente do universo profético, bíblico e extra bíblico, de que era um reconhecido especialista. Tenho muita pena que ele não pudesse acompanhar a obra impressionante de Frederico Lourenço, que lhe daria grande alegria.

[1] Para as informações fundamentais sobre os mundos em que se formou e desenvolveu essa biblioteca, ver o amplo e rigoroso estudo de Francolino J. Gonçalves, Mundos bíblicos, Cadernos ISTA, n.º 18, 2005, pp 7-34.
[2] Ex 20,14; 22,15-16; Lv 20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J. Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica Pontifícia, As mulheres na Bíblia, Cadernos ISTA, n.21 (2008), pp 109-158
[4] Gal 3, 25-28
[5] Mc 10, 1-12 e nota ao v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, pp.357-360
Comentários:
Matosinhos 05.11.2017
Fico pasmado com os escritos de muitos padres, incluindo o de frei Bento. Até há bem pouco tempo toda a Bíblia era o chamado "livro Sagrado", porque era a "palavra de Deus" - tanto o AT como o NT. Hoje, e é frei Bento que aqui o escreve - cito de memória - a Bíblia é "literatura que foi escrita por homens ao longo de séculos", donde, acrescenta, "aquilo que é apelo à violência, à guerra, aos castigos desumanos, à escravatura (sim, leiam, está lá, mesmo no NT), nada tem a ver com a palavra de Deus, mas sim apenas responsabilidade de algum idiota da época que escreveu essas barbaridades. Mas mesmo assim, não deverá ser interpretado como está lá escrito, mas como pensa hoje o feri Bento. Os valores de Deus não são intemporais (naquele tempo Jesus aceitava a escravatura!), dependem do milénio!
 Matosinhos 05.11.2017
Concluindo. A incoerência e descaramento da hierarquia da IC permitem-lhe dizer hoje o contrário do que diariamente disseram durante séculos, com o ar cândido e doce que cordeiros e/ou ovelhas do Senhor ostentam, a darem-nos a ideia de que sofrem todos de prisão de ventre crónica, tal a máscara sofrida que nos mostram. Aceitam hoje que a Terra gira à volta do Sol (foi Deus que assim o fez! LOL) com a mesma sem-vergonha com que ontem condenaram à fogueira centenas ou milhares por o afirmarem (porque, diziam então, contrariava a Obra de Deus). Como é óbvio, pelo menos para mim, esta gente não é para ser levada a sério - só como diversão. Se se trata da estória de atirar a "1ª pedra", foi Deus que disse, se for mandar matar a mulher adúltera ou qualquer Gomorra, foram homens que escreveram LOL
do Outro Mundo 05.11.2017
Espectro, de onde lhe vem tanto ódio? Olhe para qualquer organização milenar - pode começar pelos Estados democráticos, laicos, europeus do século XXI. Para quem quiser olhar para trás, encontrará sempre horrores. As suas críticas violentas têm tanto sentido como dizer "ah! olhem agora o Estado português a defender os direitos humanos! Pois, mas no século XVI praticavam a escravatura, não era? Hipócritas!". Não podemos ficar reféns do passado nas nossas análises, o mundo não pára, as instituições também não.
 Matosinhos 05.11.2017

Meu caro Anjo Caído, essa de acusar de ódio quando alguém crítica a IC já tresanda a mofo! Se algum ódio tenho é a quem propala mentiras, quem é incoerente e manipula os textos (chamam-lhe interpretação!, só me posso rir) conforme os seus interesses históricos, quem faz de lendas absurdas verdades absolutas, quem se arroga dono da moral, da verdade e do amor pelo seu semelhante, etc, etc. - isso odeio, sem contudo odiar as pessoas, embora as despreze intelectualmente, confesso. Não se atrevem a dizer a verdade sobre Fátima (uma mentira colossal) e de aparições transformam aquilo em visões, ou sei eu lá o quê, elaborando sobre o tema tratados de filosofia. Deixem de insultar a inteligência das pessoas, não vivemos na IM e já ninguém tem medo o do Inferno. LOL

Nenhum comentário: