O aquecimento global, sendo algo
de terrífico de que vamos sentindo os efeitos assustadores, afinal parece não
ser tomado pelos cientistas de forma isenta de preconceito, pois misturam
ciência e política, em sugestão de medidas que, como espanto final, repousam
numa mudança de ideologia governativa, substituindo a democracia por um governo
global, segundo a opinião severa de Paulo Tunhas, no seu artigo “Salvem-nos dos salvadores do mundo” : «O
apelo a um governo global que resolva estes problemas observa-se amiúde. E
amiúde se ouve falar da China como exemplo, por oposição à democracia
americana.
Ou estamos todos já de cabeça
perdida, na previsão do apocalipse, ou os sábios divertem-se a manipular as
sensibilidades humanas, por maldade ou medo também, em alertas tenebrosos, e
seguindo as suas próprias ideologias políticas. Um artigo para reflectir, este
de Paulo Tunhas.
Salvem-nos dos salvadores do mundo
23/11/2017
Na controvérsia sobre o
chamado aquecimento global, a dimensão científica e a dimensão política quase
se confundem. Há uma passionalidade extrema que vicia a discussão
de forma muito notória.
No último ano, guardei
uma boa parte do meu tempo livre para ler alguma da vastíssima literatura em
torno das alterações climáticas, ou, como normalmente se diz, em torno do
“aquecimento global”. Não certamente para formar uma opinião sólida sobre a
questão. Salta aos olhos, para quem se aventure a essas leituras, que a
complexidade da questão não permite nem sequer a quem é especialista decisões
fáceis. Mas para avaliar os termos da discussão, pesar o que se diz e como é
dito. Isso é lícito e não revela pretensões desmesuradas.
Há, de resto, inúmeros
estudos que procuram determinar as características mais gerais das
controvérsias científicas e filosóficas, bem como as diferenças entre elas. Fernando
Gil, entre outros, dedicou-se a tais análises. Diferentemente
das controvérsias filosóficas, que, pela natureza dos seus objectos, são em grande
parte indecidíveis (não se concluem com a adopção de uma posição comum apoiada
em provas de valor variável mas efectivo), as controvérsias científicas
tendem naturalmente para um fim onde se alcança alguma estabilidade no
conhecimento. Os argumentos que se esgrimem podem (é verdade que em alguns
casos, como a selecção natural darwiniana, por razões muito específicas, com
dificuldade e muita incerteza pelo meio) ser testados e avaliados. E as
controvérsias científicas são até um dos factores mais decisivos e
indispensáveis no progresso do conhecimento.
Não há, é verdade,
controvérsias científicas puras. Todas elas, mesmo as mais exigentes, se dão em
contextos que as infiltram, entre outras coisas, de uma passionalidade que o
recurso a uma certa retórica exibe plenamente. Mas, regra geral, essa
“impureza” não impede a objectividade, a busca de uma universalidade objectiva,
nas suas conclusões. Há certamente vários argumentos, que os estudos no campo
da sociologia da ciência põem em relevo, normalmente exagerando-os, que tendem
a acentuar, por exemplo, a luta pelo poder no interior da comunidade
científica. Mas tais aspectos, que é legítimo apontar, raramente afectam o
núcleo da controvérsia ou constituem uma ameaça maior para a adopção de uma
conclusão falível e provisória mas objectivamente determinada.
A controvérsia sobre o
chamado aquecimento global parece ser, sob muitos aspectos, uma excepção. Desde
logo porque nela a dimensão científica e a dimensão política quase se
confundem. E à dificuldade em testar as hipóteses de forma aproximadamente
conclusiva acrescenta-se uma passionalidade extrema que vicia a discussão de
forma muito notória. Simplificando, sem dúvida: a busca de provas, que é o que
se almeja através do teste das hipóteses, vê-se em larga medida desviada do seu
curso normal pela intrusão de um tecido de argumentações investidas de um
significado político e ideológico que em nada é ditado pela busca da verdade.
Melhor: que é de si insusceptível de contribuir para tal busca, já que tais
argumentações são importadas de lugares (a política, e até a ética) onde as
doutrinas não podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas. Como preferíveis
ou indesejáveis, certamente, mas sem que a preferência ou a indesejabilidade
sejam capazes de se constituírem sob o modo de uma universalidade objectiva.
Na controvérsia sobre o
“aquecimento global”, isso é patente desde o início, e tornou-se inevitável,
porque institucionalizado, desde a criação, em 1988, sob os auspícios das
Nações Unidas, do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Como o
próprio nome o indica, trata-se de uma organização política que mobiliza um
número significativo de cientistas de várias áreas que produzem com
regularidade relatórios que visam determinar as políticas governamentais. Não
quero discutir a legitimidade de tal instituição, apenas indicar que, do ponto
de vista da investigação científica enquanto tal, há algo de anómalo nela e nos
efeitos que produz. Anómalo porque a subordinação da investigação científica
a uma entidade com fins políticos (a determinação das políticas governamentais)
é já de si problemática. Dir-se-á que há vários outros casos assim. Talvez.
Mas duvido grandemente que com idêntico alcance. E anómalo também pelo poder de
que a instituição é investida e pelas práticas a que o exercício desse poder
fatalmente conduz.
Exemplos? A demonização
de quem propõe hipóteses alternativas para explicar as alterações climatéricas
ou a sua origem, eventualmente não antropogénica, muitas vezes gente que, tendo
trabalhado para o IPCC, discordou do modo como o seu trabalho foi aproveitado
no sentido de inclinar a apresentação dos seus resultados da forma mais
conveniente aos pressupostos políticos que presidem ao IPCC. São por isso
muitos os cientistas de relevo que abandonaram a colaboração com a organização.
A demonização adopta várias formas, sendo a mais comum a atribuição a tais
cientistas de motivos dúbios resultantes de reais ou imaginárias (imaginárias
em muitos casos) colaborações com empresas que veriam os seus interesses
ameaçados pelas políticas propostas pelo IPCC. Os ataques ad hominem
tornaram-se o pão nosso de cada dia.
A convicção de justeza
política e o sentimento de poder conduzem igualmente a várias patologias
secundárias. Como, por exemplo, a liberdade tomada na manipulação dos
resultados, facilitada pelo facto de, dada a natureza do problema estudado, o
recurso a modelos eminentemente problemáticos ser obrigatória. Dois casos
ficaram célebres. O primeiro é o de um grafo, elaborado por Michael E. Mann em 1999,
em que todas as doutrinas que a paleoclimatologia estabelecera sobre a
existência de um “período quente medieval” (do séc. XI ao séc. XIV) e da
“pequena idade do gelo” (do séc. XIV ao séc. XIX) se vêem recusadas em
benefício de um modelo que decreta uma quase uniformidade constante das
temperaturas desde o ano mil, que termina com uma colossal elevação nos últimos
150 anos (daí o nome de “stick de hockey” dado ao grafo). (A propósito:
sobre o “período medieval quente” e a “pequena idade de gelo”, quem estiver
interessado pode ler dois maravilhosos livros de Brian Fagan: The Long
Summer, que tem um escopo mais vasto, e The Little Ice Age.) Acontece
que o grafo de Mann foi produzido introduzindo um modelo que conduziria,
quaisquer que fossem os dados utilizados, a esse resultado. O IPCC utilizou-o
abundantemente, dando-lhe uma posição de relevo. O outro é o chamado
“Climategate”, onde a divulgação de vários mails provenientes de uma unidade
de investigação da Universidade de East Anglia mostrou o inacreditável grau
de manipulação a que os resultados eram submetidos para parecerem revelar
concordância com as versões mais radicais das alterações climáticas propostas
pelo IPCC.
A fraude em ciência é
uma matéria largamente estudada e nada há de particularmente original naquela
que se observa no IPCC. O que há de original é o extraordinário
investimento passional que a ela preside e a fantástica cobertura mediática de
que beneficia (o jornalismo abre-lhe por inteiro os braços), e a que dão corpo
personagens como o sintomaticamente horrível Al Gore (o formidável exercício de
narcisismo e de manipulação de imagens, como a do urso polar, do seu primeiro
filme, Uma verdade inconveniente, é um dos mais tristes espectáculos a ver.) Esse
investimento traduz-se em proclamações sucessivas segundo as quais a última
probabilidade de “salvar o mundo” se mede em poucos anos sistematicamente
alterados a cada nova intervenção.
Não pretendo com tudo
isto, que é uma ínfima parcela do que haveria para dizer sobre esta tão poluída
controvérsia, insinuar que as alterações climáticas não existam e não sejam um
problema ou que não haja, pelo menos parcialmente, razões humanas, para elas.
Pelo contrário: do fundo da minha ignorância, se fosse obrigado a emitir uma
opinião na matéria, diria que sim a tudo, ou quase. Quero apenas dizer que o
velho preceito aristotélico segundo o qual em matérias onde não há demonstração
conclusiva é recomendável seguir as opiniões dos mais velhos e dos mais sábios
não parece aqui aplicar-se sem reservas. Se os mais sábios são gente como
esta, não são de confiar. Não vale tudo e a probidade científica é um
valor a defender. Até porque neste aspecto, é quase indistinguível da defesa da
democracia. O apelo a um governo global que resolva estes problemas observa-se
amiúde. E amiúde se ouve falar da China como exemplo, por oposição à democracia
americana. E não, não são só George Monbiot ou Naomi Klein que têm sonhos deste
tipo. É também gente na aparência mais pacata.
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