terça-feira, 21 de novembro de 2017

Histórias de sempre, para sempre


António Barreto explica o como, o porquê, o quando, João Miguel Tavares refere o exemplo mais recente - a greve dos professores - resultante, sem dúvida, do Estado a mais de que trata António Barreto, como privilégios da democracia, embora não cumpridos e por isso reivindicados da maneira vistosa a que assistimos a cada passo, agora, depois que Passos Coelho foi despejado, cada greve chamando outra, dado que o Governo passou a constituir o inimigo a abater, pela esquerda patriótica. Ou será antes do Estado a menos, subjugado pelas carências de vária ordem e sobretudo as de ordem económica que essa arrasa um país que não produz o suficiente, já por compleição já por falta de estímulo e por vezes de competência, e até está vocacionado para o empréstimo? O certo é que António Barreto bem explica essas antinomias do Estado a mais e a menos, na sua maneira ritmada, e João Miguel Tavares mostra abertamente a baralhação do Governo, e os ziguezagues da sua actuação discursiva, para responder às encomendas, além de que outras greves se irão seguir, que todos somos filhos de Deus.
Entretanto, recreemo-nos com a bonita foto de António Barreto, desta vez a partir do Padrão dos Descobrimentos, que fornece igualmente precisão de esclarecimentos de muito interesse, a fazer minimizar outras mazelas. Tudo irá passar, mas o Padrão vai ficar, como a Abóbada da Casa do Capítulo do Mosteiro da Batalha, nas palavras do moribundo arquitecto Afonso Domingues, que a construiu: “A Abóbada não caiu, a abóbada não cairá!”, no recontar de Alexandre Herculano. Embora Álvaro de Campos discorde, no seu complexo pessimista de que tudo vai morrer, mesmo a tabuleta da “Tabacaria” ali defronte da sua janela…

Estado a mais, Estado a menos
António Barreto
DN, 19/11/17
A luta entre liberais e dirigistas é antiga. Em Portugal, a tradição é a de Estado a mais: nos Descobrimentos, na colonização, na industrialização, na República, no corporativismo, na revolução e na democracia.
Há, em geral, Estado a mais nas leis e nas regras. Mas há Estado a menos na prática e na acção.
Há Estado a mais na administração central, nos privilégios da função pública, nos regulamentos urbanísticos, nas condições de investimento, na lei laboral, na concertação social, na burocracia e nos procedimentos judiciários.
Há Estado a menos na segurança, na defesa, na protecção pessoal, nas emergências, nas cirurgias, na luta contra os desastres, na protecção do património e na fiscalização de actividades financeiras.
Mas esta polémica esconde um aspecto crucial. Muitas vezes, o Estado, a mais ou a menos, é ignorante. O desenvolvimento do capitalismo, da indústria e dos serviços, assim como do comércio internacional e da integração europeia, não foi acompanhado pelo reforço das capacidades científicas e técnicas do Estado. Este prefere recorrer aos privados, a escritórios, a agências e a consultores. Subcontratação é a palavra-chave. Hoje, a administração pública não tem capacidade de planear ou seguir a maior parte das coisas que faz ou deixa fazer. Episódios como o dos aeroportos de Lisboa, da Ota, do Montijo ou de Alcochete nunca teriam ocorrido se a administração não estivesse esvaziada de conhecimento. As hesitações, a falta de clareza em temas como o comboio de grande velocidade, os terminais marítimos, a rede ferroviária, o Campus de Justiça, a construção das grandes pontes, os parques industriais e grande parte das auto-estradas construídas em sistema de parceria (PPP) não dariam tanto desperdício se o Estado não estivesse refém dos interesses económicos ou partidários. E talvez a eficiência e a segurança fossem superiores se o Estado, ao autorizar ou investir, estivesse dotado de capacidade técnica tão independente quanto possível, mas sobretudo conhecida, o que é uma notável fonte de independência.
Os recentes fogos servem para demonstrar esta aparente dualidade. Houve Estado a mais na fixação de um calendário de incêndios, na tentativa de dirigir a informação, na inexistência de entidades civis ou locais, no monopólio de funções, na inércia dos grandes dispositivos reféns de empresas e interesses e no esvaziamento de competências das autarquias.
Houve Estado a menos na previsão, na informação, na acção de emergência e na disponibilidade de sapadores profissionais; na falta de divulgação dos dados conhecidos e que definiam a ameaça; na incompetência técnica de tantos serviços, na falta de formação profissional dos bombeiros e na ausência de dispositivos céleres de emergência humana.
Haverá Estado a mais se as Forças Armadas forem enviadas para os incêndios sem missão legal, sem meios, sem equipamento, sem aprendizagem e sem formação adequada. Mas há seguramente Estado a menos, com a impossibilidade de intervenção por parte das Forças Armadas, que não estão devidamente preparadas, treinadas e equipadas.
Este governo portou-se mal em todas as frentes, até às mais simples tarefas de distribuição de água, pão e agasalho a quem precisava no dia seguinte. Foi incapaz na previsão e incompetente na coordenação. A desorganização, a ignorância, a falta de interesse e a insuficiência de conhecimentos são deste governo. Mas também são, em boa parte, do governo anterior e do governo de antes do anterior. E dos de antes desses. Isto é, do Estado, que perde em tudo o que importa a todos e que cresce em tudo o que interessa a alguns.
O problema parece ser mais do Estado do que do governo. É verdade. Mas isso não desculpa o actual governo. Pelo contrário, só o responsabiliza. E revela com mais nitidez a sua incompetência.

As minhas fotografias

À beira-Tejo, do alto do Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa
No estuário do Tejo, há alguns marcos de nobreza e memória. A Torre de Belém é o mais formidável. O Cais das Colunas tem admiradores, é um dos locais privilegiados para as selfies. A Central Tejo é edifício atraente. Entre os contemporâneos, podem citar-se a Torre de Controlo de Pedrouços, assim como a Fundação Champalimaud, o MAAT e o Terminal de Cruzeiros. Vamos ver como se comportam no futuro, o que deles dirão as novas gerações. Apesar da estética muito discutível, o Padrão dos Descobrimentos é um dos mais conhecidos. Foi construído em 1940 para a Exposição do Mundo Português. Mas era tudo de gesso e cal.
Foi reconstruído a sério, em pedra e betão, em 1960. O acesso público ao terraço, onde foi feita esta fotografia, só é possível a partir dos anos 1980. Lá em baixo, o passeio à beira-rio é de uma serenidade inesquecível. Ouvem-se as gaivotas e as vozes das pessoas a falar todas as línguas do mundo.

OPINIÃO
Descongela e põe no frigorífico
O Governo inventou ontem o descongelamento de carreiras sem impacto no Orçamento de Estado. O que é isso? Nenhuma ideia. Mas, por favor, palmas para os grandes artistas.
16 de Novembro de 2017

O segredo da actual solução de Governo sempre consistiu num jogo de sombras políticas: o Governo finge que dá mais do que efectivamente dá, e os partidos que o apoiam fingem que recebem mais do que efectivamente recebem. Este jogo infantil faz feliz a União Europeia, na medida em que o país lá vai cumprindo as metas sem chatear muito – e com o patrocínio, imagine-se, da extrema-esquerda –; faz feliz PS, Bloco e PCP, pois permite-lhes encherem a boca com o sucesso das reversões e com o esgarçado “virar da página de austeridade”; e faz felizes milhões de portugueses, estranhamente disponíveis para serem enganados. Contudo, há alturas em que o choque entre o simulacro de realidade e a própria realidade é inevitável, produzindo momentos absolutamente caricatos. Ontem foi um desses momentos, em pleno dia de greve dos professores.    
Como se sabe, os professores exigem não só o descongelamento das carreiras, até porque este já está garantido, mas também a contagem, para efeitos de progressão, dos oito anos em que estiveram congeladas (de 2005 a 2007 e de 2011 a 2017). O Governo fez as contas e disse que tal era incomportável: a medida teria um impacto imediato de 600 milhões de euros no Orçamento do Estado, o que é incompatível com o alegado rigor orçamental. A Fenprof e a FNE não se deixaram impressionar e avançaram para greve. Ora, como uma greve nos dias de hoje não é como uma greve de antigamente, porque é suposto o Governo ser muito amigo dos trabalhadores e estar disponível para lamber todas as feridas infligidas pela troika, a solução encontrada foi a do costume, mas em dose alucinatória: o jogo de sombras foi tão intenso que ao final do dia sobravam apenas informações desgarradas e totalmente contraditórias.
Senão vejamos. Durante a manhã tivemos as habituais rondas mediáticas por escolas fechadas e declarações sindicais de adesão acima dos 90% (como a escala sindical começa nos 90 e acaba nos 100, achei um pouco decepcionante). Até parecia que estávamos no tempo de Passos Coelho. Mas por pouco tempo. A seguir veio a primeira reacção do Governo, em modo compincha: a secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão, afirmou que iria procurar um modo “de a contagem da carreira docente ser, de alguma forma, recuperada”. O segredo está no “de alguma forma”, como é óbvio. Ainda assim, a frase foi mais do que suficiente para Mário Nogueira cantar vitória em frente ao Parlamento, dispensando grandes hermenêuticas. “O pulso dos professores é muito forte”, disse ele. Certo. Só que a língua do Governo também.
E então aconteceu isto: enquanto a Fenprof anunciava que a força dos professores tinha obrigado o Governo a alterar a sua posição negocial, o Governo garantia que não estava previsto gastar mais com progressões nesta legislatura. A mesma Alexandra Leitão que anunciou de manhã a recuperação da contagem do tempo de serviço congelado, afirmou à tarde que o tempo do congelamento “não é matéria para o Orçamento do Estado”. Neste jogo de sombras todos se mexem, todos dizem coisas, todos parecem desempenhar os seus papéis, mas ao fim do dia só sobra uma tremenda opacidade, porque ninguém fala claro. Não se percebe o que é que Mário Nogueira festejou, não se percebe o que é que o Governo prometeu, e não se percebe o que é que os professores ganharam. O Governo inventou ontem o descongelamento de carreiras sem impacto no Orçamento do Estado. O que é isso? Nenhuma ideia. Mas, por favor, palmas para os grandes artistas.


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