domingo, 19 de novembro de 2017

Pergunte ao “bento” que passa


Um tom quase elegíaco se salienta na crónica de Maria João Avillez – crónica a que apetece chamar “manifesto poético”, de repúdio e de lamento, conjugando expressões de subjectividade de extremo efeito expressivo, com as referências pontuais aos desmandos nacionais, logo seguidos das considerações finais, de profunda repulsa, tudo isso envolto na interrogação retórica de tão belo efeito do título – “Que vento é este que passa?” – síntese da estranheza que causa a bipartição do país em dois credos políticos onde um nitidamente se sobrepõe pela argúcia da falsidade.
A esse texto literário segue-se o artigo, marcado igualmente pela subjectividade da condenação e o rigor do saber histórico, de Rui Ramos – “Um governo de mortos-vivos políticos” - em que se admira a clareza dos argumentos, que bem justificam o primeiro, na enunciação desses vários desmandos, e no historial sobre o percurso socialista, de ideais primeiros, descambados no pântano das suas exigências de pura sobrevivência actual, num esquema de trapaça e logro.
Os textos completam-se, o trocadilho do título, trazendo Manuel Alegre ao despique, serve para quem o entender.

Que vento é este que sopra?
OBSERVADOR,15/11/2017
“A culpa é do governo anterior” dizia o maestro Costa, fidelíssimo ao seu tique número 1 de obsessivamente derramar culpas inventadas sobre a governação a quem ele roubou a governação.
1. Há uma estranheza. Um vento desconhecido. Um inconforto que se confunde com vergonha. Uma colecção de irresponsabilidades políticas, desmazelos estatais, actos de irracionalidade. É uma sensação pouco definível mesmo para quem lida com as palavras. Que vento é este que sopra?
2. O país parece capturado pela sua própria incapacidade de travar a roda da irracionalidade. Como se as coisas subitamente se desgovernassem a elas mesmas e nada o comprova melhor do que a história do jantar dos “modernos” no Panteão: haverá mais irracional do que os grotescos episódios que de imediato se seguiram? “Ali não há mortos”, dizia uma, como quem diz podem comer e divertir-se à vontade; “é preciso respeitar os mortos” clamava outro, numa admoestação supostamente respeitosa que La Palisse copiaria; “a culpa é do governo anterior” dizia o maestro Costa, fidelíssimo ao seu tique número 1 de obsessivamente derramar culpas inventadas sobre a governação a quem ele roubou a governação. Isto enquanto a media punha o carrocel do comentário ao comentário a girar com vertigem e a metade sã do país hesitava entre rir ou chorar.
3. É como se estivéssemos diante de um escaparate onde se misturam comportamentos insólitos, propósitos irresponsáveis, gestos disfuncionais como este agora de uma qualquer brigada que entrou de rompante num velório, se apropriou do caixão e abalou com ele. Sem mais.
A que ponto de disfuncionalidade “administrativa”, digamos assim, se tem que chegar para que um gesto violento de desrespeito máximo como este seja possível em 2017, na capital de um país europeu (e não num subúrbio do Bangladesh ou numa arrecadação do Burundi) é pergunta sem resposta. O melhor é culpar os outros, mas a litania “do anterior governo” submerso de culpas que não teve, para tapar tudo o que hoje corre mal, qualquer dia faz vomitar um ser normalmente constituído (peço desculpa da horrenda expressão: está à altura do horrendo tique em voga).
O certo é que com ou sem vómito, há um permanente afastar de qualquer responsabilidade como quem enxota uma varejeira incómoda. Ou há uma fuga. Ou um mergulho num estado de negação.
Uma pena só haver um Web Summit por ano.
4. O balanço é malsão: de um lado, quem interessa e quem conta para o trio político que diz governar-nos; do outro, um país deixado de fora das prioridades, das escolhas e das atenções do terceto político em causa. “Ah, não é do funcionalismo? Então não vale!”. Quem sabe talvez não existamos e basta atentar-se na feitura tão cirúrgica do Orçamento de Estado: estão lá bem impressos os dois países. Não se percebe bem o que pensa o Presidente da República (sendo esta anomalia já tão indisfarçável) sobre este mapa de Portugal com duas pátrias coexistindo tão desigualmente no mesmo território. E ainda menos se sabe se ele aplaude que só um desses países mereça o olhar benevolente e a bênção dos deuses, sendo embora o primeiro grandemente financiado pelo suor e o trabalho do segundo. Filhos e enteados numa geografia social talhada na lei do “quem não é do funcionalismo público, não tem direito de cidade”.
E um dia não tem mesmo: a acidez vigente não devia ser permitida, faz mal a qualquer ser humano. A acidez, o acinte, a desconfiança, a má fé (outra colecção) despejadas sobre quem não é da geringonça, vigiando, punindo, desclassificando. Exagero? Olhe que não, caro leitor, olhe que não.
5. Começam a ser inquietantes as “descobertas” de algumas decisões obscuras da governação. Como a última conhecida e não desmentida, assinada pelo futuro ou ex-futuro líder do Eurogrupo (tão depressa Centeno vai como não vai, processo bizarro, que se ressuscita ou se enterra conforme é conveniente puxar ou não pelos galões do sempre risonho titular das Finanças). Rezam, porém, as notícias, que Centeno guardou a sete chaves os milhões deixados por Paulo Macedo para modernizar o IPO, preferindo para eles destino eleitoralmente mais propício et pour cause. Diz-me para que cativas, dir-te-ei quem és, e deste adágio não se livra o ministro, tão eloquente ele é (o adágio). Não há desculpa mas talvez haja explicação, pois a quadratura do círculo onde Centeno é obrigado (?) a respirar explica quase tudo: de um lado alinhando com Bruxelas, do outro, obedecendo, sem sombra de pecado, aos da geringonça. Os prejuízos estão já aliás devidamente contabilizados. Só não são maiores ainda porque para matar a fome de despesa da esquerda radical, justamente se “cativa”. Cativa-se em detrimento de prioridades sérias e escolhas imperativas como seria cuidar do IPO. Cativa-se porque facilita a vida, cativa-se para financiar a colecção de exigências de um acordo político ruinoso.
6. O pior não é “isto”. Não é haver muito país afogado em selfies e afectos, celebrando a geringonça e os seus feitos, festejando quase com lágrimas de felicidade a dupla Costa/Marcelo tão “culta”, “aberta”, “simpática”, “próxima”. É lá com eles (e com os filhos que pagarão a conta dos feitos e afectos). O que me confunde é o tão espesso silêncio do que sobra do mundo que não cabe nesse país.

Um governo de mortos-vivos políticos
OBSERVADOR, 14/11/2017
Ninguém perceberá o actual governo se não perceber o enorme conjunto de fracassos que está por detrás dele. Este é mesmo um caso de “mortos agarrados aos vivos", para usar a expressão de Marx.
O padrão já é muito claro, depois do incêndio de Pedrógão, do roubo em Tancos, do surto de legionella, ou do jantar no Panteão Nacional: neste governo, a começar pelo primeiro-ministro, ninguém sabe de nada, ninguém tem responsabilidade, e a culpa é sempre do governo anterior.
Dir-se-ia que desembarcaram ontem de Marte. Mas a sua história governativa não começou ontem, nem sequer há dois anos. O governo de António Costa é apenas mais uma reencarnação ministerial da geração socialista que em 1995 chegou a São Bento com António Guterres, e que desde então tem sido assídua nos ministérios e nas direcções gerais. António Costa foi membro do governo entre 1995 e 2002, outra vez entre 2005 e 2007, presidente da câmara municipal de Lisboa depois, e primeiro-ministro desde 2015. Alguns dos seus colegas têm dos mais longos CV governativos do regime. Augusto Santos Silva ocupou quatro ministérios, durante dez anos, desde 2000. Vieira da Silva, entre adjunto de ministro, director geral, secretário de Estado e ministro, tem 15 anos de governo desde 1995. Como é possível que, sempre que alguma coisa acontece, se façam de recém-chegados?
Os actuais governantes formam um grupo unido por velhas amizades e até por parentescos (maridos e mulheres, pais e filhos). Chegaram aos lugares da frente depois da queda do Muro de Berlim. São a geração da chamada Terceira Via. Nunca sofreram dos escrúpulos ideológicos de “homens de esquerda”, como Manuel Alegre. São clubistas, mas não doutrinários. Para eles, a política só faz sentido no governo. A fim de lá chegar, estão prontos para tudo, como se viu em 2015, quando, após perderem as eleições, aproveitaram a disponibilidade dos inimigos históricos da actual democracia europeia para formarem uma maioria parlamentar. A acreditar nalguma coisa, acreditam nos maquinismos do poder. A sua maneira de governar consiste, por isso, em ocupar o Estado, manipular a comunicação social, controlar bancos e empresas. José Sócrates é, a esse respeito, muito mais representativo desta geração do que agora lhes convém admitir.
Mas esta é, acima de tudo, uma geração derrotada, uma espécie de mortos-vivos da política. Em 1995, vinham com uma ideia: combinar a internacionalização da economia com investimento público em educação e infra-estruturas. Tratava-se de transformar Portugal numa Finlândia. Tudo isso acabou no mais longo período de divergência económica em relação à Europa e num resgate europeu. Deixaram, desde então, de ter ideias. Agora, acolhem a Web Summit e montam paraísos fiscais para estrangeiros, mas desconfiados de que não conseguirão mais do que aumentar os preços das casas em Lisboa. É verdade que estão no governo. Mas apenas porque o PCP e a extrema-esquerda, eles próprios em crise, se penduraram neles como último recurso. Têm disfarçado, assim, uma longa série de choques: em 2014, viram o líder da sua única maioria absoluta preso por suspeita de corrupção; em 2015, perderam umas eleições que ninguém acreditava que perdessem; em 2016, não arranjaram verdadeiramente um candidato presidencial; em 2017, assistiram à agonia da sua referência internacional, o socialismo francês. Sim, estão no governo, mas como se fosse o último refúgio contra um tempo que sentem escapar-lhes. A dependência em relação a comunistas e neo-comunistas tira-lhes qualquer iniciativa reformista. Neste momento, usam os benefícios da conjuntura para formarem uma guarda pretoriana eleitoral, recrutada nos dependentes do Estado. Ao fim de vinte e dois anos, é o seu último projecto. De resto, vivem no pavor dos acontecimentos e das responsabilidades.
É isto o que passa por governo em Portugal: um clã desesperado, representante de ideias em que já não acredita e de um passado que falhou, a tentar fazer do Estado o bunker derradeiro das suas ambições. Marx falou um dia dos “mortos agarrados aos vivos”. Podia estar a falar da política de António Costa e dos seus colegas.


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