Um tom quase elegíaco se salienta
na crónica de Maria João Avillez – crónica a que apetece chamar “manifesto
poético”, de repúdio e de lamento, conjugando expressões de subjectividade de extremo
efeito expressivo, com as referências pontuais aos desmandos nacionais, logo
seguidos das considerações finais, de profunda repulsa, tudo isso envolto na
interrogação retórica de tão belo efeito do título – “Que vento é este
que passa?” – síntese da estranheza que causa a bipartição do
país em dois credos políticos onde um nitidamente se sobrepõe pela argúcia da
falsidade.
A esse texto literário
segue-se o artigo, marcado igualmente pela subjectividade da condenação e o
rigor do saber histórico, de Rui Ramos – “Um governo de
mortos-vivos políticos” - em que se admira a clareza dos argumentos,
que bem justificam o primeiro, na enunciação desses vários desmandos, e no
historial sobre o percurso socialista, de ideais primeiros, descambados no
pântano das suas exigências de pura sobrevivência actual, num esquema de
trapaça e logro.
Os textos completam-se, o
trocadilho do título, trazendo Manuel Alegre ao despique, serve para quem o
entender.
Que vento é este
que sopra?
OBSERVADOR,15/11/2017
“A culpa é do governo anterior” dizia o maestro Costa, fidelíssimo ao
seu tique número 1 de obsessivamente derramar culpas inventadas sobre a
governação a quem ele roubou a governação.
1. Há uma estranheza. Um vento desconhecido. Um
inconforto que se confunde com vergonha. Uma colecção de irresponsabilidades
políticas, desmazelos estatais, actos de irracionalidade. É uma sensação pouco
definível mesmo para quem lida com as palavras. Que vento é este que sopra?
2. O país parece capturado pela sua própria
incapacidade de travar a roda da irracionalidade. Como se as coisas
subitamente se desgovernassem a elas mesmas e nada o comprova melhor do que a
história do jantar dos “modernos” no Panteão: haverá mais irracional do que os
grotescos episódios que de imediato se seguiram? “Ali não há mortos”, dizia
uma, como quem diz podem comer e divertir-se à vontade; “é preciso respeitar os
mortos” clamava outro, numa admoestação supostamente respeitosa que La Palisse
copiaria; “a culpa é do governo anterior” dizia o maestro Costa, fidelíssimo ao
seu tique número 1 de obsessivamente derramar culpas inventadas sobre a
governação a quem ele roubou a governação. Isto enquanto a media punha o
carrocel do comentário ao comentário a girar com vertigem e a metade sã do país
hesitava entre rir ou chorar.
3. É como se estivéssemos diante de um escaparate onde
se misturam comportamentos insólitos, propósitos irresponsáveis, gestos
disfuncionais como este agora de uma qualquer brigada que entrou de rompante
num velório, se apropriou do caixão e abalou com ele. Sem mais.
A que ponto de
disfuncionalidade “administrativa”, digamos assim, se tem que chegar para que
um gesto violento de desrespeito máximo como este seja possível em 2017, na
capital de um país europeu (e não num subúrbio do Bangladesh ou numa
arrecadação do Burundi) é pergunta sem resposta. O melhor é
culpar os outros, mas a litania “do anterior governo” submerso de culpas que
não teve, para tapar tudo o que hoje corre mal, qualquer dia faz vomitar um ser
normalmente constituído (peço desculpa da horrenda expressão: está à altura do
horrendo tique em voga).
O certo é que com ou sem
vómito, há um permanente afastar de qualquer responsabilidade como quem enxota
uma varejeira incómoda. Ou há uma fuga. Ou um mergulho num estado de negação.
Uma pena só haver um Web
Summit por ano.
4. O balanço é malsão: de um lado, quem interessa
e quem conta para o trio político que diz governar-nos; do outro, um país
deixado de fora das prioridades, das escolhas e das atenções do terceto
político em causa. “Ah, não é do funcionalismo? Então não vale!”. Quem sabe
talvez não existamos e basta atentar-se na feitura tão cirúrgica do Orçamento
de Estado: estão lá bem impressos os dois países. Não se percebe bem o que
pensa o Presidente da República (sendo esta anomalia já tão indisfarçável)
sobre este mapa de Portugal com duas pátrias coexistindo tão desigualmente no
mesmo território. E ainda menos se sabe se ele aplaude que só um desses países
mereça o olhar benevolente e a bênção dos deuses, sendo embora o primeiro
grandemente financiado pelo suor e o trabalho do segundo. Filhos e enteados
numa geografia social talhada na lei do “quem não é do funcionalismo público,
não tem direito de cidade”.
E um dia não tem mesmo:
a acidez vigente não devia ser permitida, faz mal a qualquer ser humano. A
acidez, o acinte, a desconfiança, a má fé (outra colecção) despejadas sobre
quem não é da geringonça, vigiando, punindo, desclassificando. Exagero? Olhe
que não, caro leitor, olhe que não.
5. Começam a ser inquietantes as “descobertas” de
algumas decisões obscuras da governação. Como a última conhecida e não
desmentida, assinada pelo futuro ou ex-futuro líder do Eurogrupo (tão depressa
Centeno vai como não vai, processo bizarro, que se ressuscita ou se enterra
conforme é conveniente puxar ou não pelos galões do sempre risonho titular das
Finanças). Rezam, porém, as notícias, que Centeno guardou a sete chaves os
milhões deixados por Paulo Macedo para modernizar o IPO, preferindo para eles
destino eleitoralmente mais propício et pour cause. Diz-me para que
cativas, dir-te-ei quem és, e deste adágio não se livra o ministro, tão
eloquente ele é (o adágio). Não há desculpa mas talvez haja explicação, pois a quadratura
do círculo onde Centeno é obrigado (?) a respirar explica quase tudo: de um
lado alinhando com Bruxelas, do outro, obedecendo, sem sombra de pecado, aos da
geringonça. Os prejuízos estão já aliás devidamente contabilizados. Só não são
maiores ainda porque para matar a fome de despesa da esquerda radical,
justamente se “cativa”. Cativa-se em detrimento de prioridades sérias e
escolhas imperativas como seria cuidar do IPO. Cativa-se porque facilita a
vida, cativa-se para financiar a colecção de exigências de um acordo político
ruinoso.
6. O pior não é “isto”. Não é haver muito país
afogado em selfies e afectos, celebrando a geringonça e os seus feitos,
festejando quase com lágrimas de felicidade a dupla Costa/Marcelo tão “culta”,
“aberta”, “simpática”, “próxima”. É lá com eles (e com os filhos que pagarão a
conta dos feitos e afectos). O que me confunde é o tão espesso silêncio do
que sobra do mundo que não cabe nesse país.
Um governo de mortos-vivos políticos
OBSERVADOR, 14/11/2017
Ninguém perceberá o
actual governo se não perceber o enorme conjunto de fracassos que está por
detrás dele. Este é mesmo um caso de “mortos agarrados aos vivos", para
usar a expressão de Marx.
O padrão já é muito claro,
depois do incêndio de Pedrógão, do roubo em Tancos, do surto de legionella, ou
do jantar no Panteão Nacional: neste governo, a começar pelo
primeiro-ministro, ninguém sabe de nada, ninguém tem responsabilidade, e a
culpa é sempre do governo anterior.
Dir-se-ia que desembarcaram
ontem de Marte. Mas a sua história governativa não começou ontem, nem sequer há
dois anos. O governo de António Costa é apenas mais uma reencarnação
ministerial da geração socialista que em 1995 chegou a São Bento com António
Guterres, e que desde então tem sido assídua nos ministérios e nas direcções
gerais. António Costa foi membro do governo entre 1995 e 2002, outra vez entre
2005 e 2007, presidente da câmara municipal de Lisboa depois, e
primeiro-ministro desde 2015. Alguns dos seus colegas têm dos mais longos CV
governativos do regime. Augusto Santos Silva ocupou quatro ministérios, durante
dez anos, desde 2000. Vieira da Silva, entre adjunto de ministro, director
geral, secretário de Estado e ministro, tem 15 anos de governo desde 1995. Como é possível que,
sempre que alguma coisa acontece, se façam de recém-chegados?
Os actuais governantes formam
um grupo unido por velhas amizades e até por parentescos (maridos e mulheres,
pais e filhos). Chegaram aos lugares da frente depois da queda do Muro de
Berlim. São a geração da chamada Terceira Via. Nunca sofreram dos escrúpulos
ideológicos de “homens de esquerda”, como Manuel Alegre. São clubistas, mas não
doutrinários. Para eles, a política só faz sentido no governo. A fim de lá chegar, estão
prontos para tudo, como se viu em 2015, quando, após perderem as eleições,
aproveitaram a disponibilidade dos inimigos históricos da actual democracia
europeia para formarem uma maioria parlamentar. A acreditar nalguma coisa,
acreditam nos maquinismos do poder. A sua maneira de governar consiste, por
isso, em ocupar o Estado, manipular a comunicação social, controlar bancos e
empresas.
José Sócrates é, a esse respeito, muito mais representativo desta geração do
que agora lhes convém admitir.
Mas esta é, acima de tudo,
uma geração derrotada, uma espécie de mortos-vivos da política. Em 1995, vinham
com uma ideia: combinar a internacionalização da economia com investimento
público em educação e infra-estruturas. Tratava-se de transformar Portugal numa
Finlândia. Tudo isso acabou no mais longo período de divergência económica em
relação à Europa e num resgate europeu. Deixaram, desde então,
de ter ideias. Agora, acolhem a Web Summit e montam paraísos fiscais
para estrangeiros, mas desconfiados de que não conseguirão mais do que aumentar
os preços das casas em Lisboa. É verdade que estão no governo. Mas
apenas porque o PCP e a extrema-esquerda, eles próprios em crise, se penduraram
neles como último recurso. Têm disfarçado, assim, uma longa série de
choques: em 2014, viram o líder da sua única maioria absoluta preso por
suspeita de corrupção; em 2015, perderam umas eleições que ninguém acreditava
que perdessem; em 2016, não arranjaram verdadeiramente um candidato
presidencial; em 2017, assistiram à agonia da sua referência internacional, o
socialismo francês. Sim, estão no governo, mas como se fosse o último
refúgio contra um tempo que sentem escapar-lhes. A dependência em relação a
comunistas e neo-comunistas tira-lhes qualquer iniciativa reformista. Neste
momento, usam os benefícios da conjuntura para formarem uma guarda pretoriana
eleitoral, recrutada nos dependentes do Estado. Ao fim de vinte e dois anos, é
o seu último projecto. De resto, vivem no pavor dos acontecimentos e das
responsabilidades.
É isto o que passa por
governo em Portugal: um clã desesperado, representante de ideias em que já não
acredita e de um passado que falhou, a tentar fazer do Estado o bunker
derradeiro das suas ambições. Marx falou um dia dos “mortos agarrados aos
vivos”. Podia estar a falar da política de António Costa e dos seus colegas.
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