domingo, 31 de dezembro de 2017

Haverá sempre um Marte para o desencalhe


Mais uma excelente crónica de José Pacheco Pereira sobre  a  actualidade desta nossa novela, lembrando-me um gracioso livro, presente de Natal, que ando a ler no prazer do requinte quer da sua escrita quer da intriga e perícia caracterizadora das personagens da primeira novela – A arte de morrer longe - em redor de um quelónio e de um jovem casal desavindo e resolvendo o seu conflito bem à nossa maneira, nervosa, grotesca nas pequenas perfídias ou situações de dor e humilhação recíprocas, que trazem sempre as separações entre os casais,  e, afinal, de happy end simpático, humanos que eram, no dizer de Bárbara protagonista, a justificar a cedência momentânea – em previsão de  continuidade - aos doces ardores de uma reconciliação ansiada, mascarada embora de pueril zanga, entre ambos, mas para mal da pobre tartaruga, objecto de parca estima no lar de que haviam resolvido desfazer-se, despejando-a nas águas dum lago, para posterior conforto gástrico de um milhafre atento. 
Cronovelando”, o engraçado título do livro de novelas de Mário de Carvalho que ando a ler, bem se poderia aplicar também a esta crónica de José Pacheco Pereira sobre um país encalhado, tentando livrar-se da sua “tartaruga”, em episódios e obstáculos de diversa índole, que ele excelentemente analisa, em educada ironia, sem lhe descobrir, todavia, o desenlace, talvez por desconhecer ainda o livro de novelas de Mário de Carvalho e o triste fim do quelónio. Mas as descobertas de água e de dióxido de carbono em Marte, e as previsões de ocupação humana por lá, talvez lhe sugiram que, à falta do “Encoberto”, ou de um Cristo salvador no nosso “Ourique”, haverá sempre a possibilidade de nos transferirmos para Marte, ainda que levemos a dívida atrás, num povoamento à nossa maneira. Pelo menos, iremos morrer longe, como o pobre quelónio, que os milhafres apetecem .

OPINIÃO
Um país encalhado
Não é por acaso que usei várias vezes neste artigo palavras como “usura”, “desgaste”, “cansaço”. Trata-se em todos os casos da velha regra de que, nada mudando, o “tempo come as coisas”, tempus edax rerum.
José Pacheco Pereira
Público, 30 de Dezembro de 2017
Poupo-vos os balanços do fim do ano. Um ano é uma convenção e quando termina significa que há preços (muitos) que vão aumentar e alguns impostos (poucos) que vão descer. Espera-se. As pessoas vêm das festas e isso embota a consciência, o que certamente ajuda. Depois volta a rotina.
A comunicação social torna-se absolutamente aborrecida e repete todos os anos as mesmas reportagens. Gostava de saber o que é que aconteceria se houvesse uma estação de televisão em que nada tivesse que ver com o Natal, nem filmes infantis, nem reportagens sobre as consoadas nos hotéis, nem competições de árvores de Natal, nem corridas de Pais Natal, nem multidões nas compras, nem voos cheios e esperas nos aeroportos, nem as greves sazonais. Nem nada. Sem um átomo de “espírito natalício”. Infelizmente ninguém o vai fazer, pelo que estamos condenados a ter tudo igual. Na verdade, não é nada de diferente do que acontece todo ano, só que aqui nota-se mais.
Novidades em 2017? Houve algumas, mas só duas é que podem ser importantes para 2018. Uma foi a crise dos incêndios, que afectou e muito o Governo, e a outra é o contínuo “cumprimento das regras europeias” — saída do défice excessivo — Centeno no Eurogrupo, três aspectos da mesma coisa: o Governo socialista-comunista-bloquista vai governar com o mesmo modelo dos governos da troika, moderado pela margem de manobra de uma melhor economia, mas igualmente castrador.
No PSD, um demónio vingador condenou tudo a continuar quase na mesma. Rio não é igual a Lopes, nem em carácter, nem em competência, nem em seriedade e responsabilidade, é melhor, mas ambos resolveram fazer uma campanha péssima de continuidade e de medo de tomar posições, numa altura em que mais do que nunca o PSD precisava de rupturas. Tornam-se assim um factor de conservadorismo, de bloqueio do debate político, logo um impeditivo à abertura e à vitalidade do partido. Colocar Passos Coelho numa redoma não diminui o poder dos seus actores menores que conduziram um processo sinistro de mediocratização do PSD, e cuja principal preocupação é a sua carreira. Ainda recentemente um deles fez uma exibição televisiva de absoluta ignorância sobre o que estava a dizer e não é excepção nesse abaixamento de bitola de qualidade mínima. Apostaram quase todos em Lopes, mas como a sua legitimação e poder partidário vinha de Passos, deixando os anos do “ajustamento” intactos, ou vão fazer a transumância, caso Rio ganhe, ou estão em condições para lhe fazer a vida negra, como Passos fez a Manuela Ferreira Leite. Por aí, infelizmente não vai haver a força necessária para virar situação de decadênccia do partido.
Por isso, em 2018, digam o que disserem as sondagens, o Governo está mais fragilizado, o PSD idem, e o país está condenado a uma política de estagnação para a qual parece não haver forças endógenas que alterem o rumo. Daí que por muito que a situação pareça de estabilidade ela é inerentemente instável. A única efectiva criação na política portuguesa dos últimos anos, a aliança PS-PCP-BE, está por isso condenada a traduzir essa instabilidade de fundo, e, a continuarem as coisas como estão, não vai acabar bem nas eleições de 2019. O excesso de tacticismo que domina a política portuguesa faz com que todos os membros da aliança estejam a fazer navegação de cabotagem e a ver se ganham alguma coisa pelo meio, sem qualquer plano consistente para o futuro. O PS pode esperar por ter uma maioria absoluta, o que até agora, mesmo no contexto mais favorável antes dos incêndios, não estava adquirido. Penso que Costa, que já aprendeu com os erros da campanha de 2015, é mais prudente e deseja uma forma qualquer de acordo eleitoral prévio, mas no PS há muita gente a desejar alijar o PCP e o BE, ou a negociar com eles na base de uma posição de força. Saliente-se que uma das razões por que foi possível o acordo de governo PS-PCP-BE foi o facto de o PS não ter condições para negociar a partir de uma situação de força.
O BE é pessimamente dirigido no contexto do acordo, porque pensa que a dimensão tribunícia pode continuar na mesma num partido que partilha o poder político, como de facto partilha, reivindicando os louros mas recusando as responsabilidades. E o PCP está preso num enorme conservadorismo de linguagem, métodos e acção e já começou a perceber que, a não haver mudanças sérias, está condenado a perder posições em cada eleição. Não é a aliança com o PS e o BE que está a erodir o eleitorado do PCP, é o autismo da sua linguagem que nem sequer vagamente comunista é. Veja-se o seu último cartaz que diz “salários — emprego — produção — soberania”. E depois? Há um enorme cansaço no PCP, e isso é um dos factores de crise da “geringonça”.
O PS permitiu também um processo de usura, ao aceitar haver algum mérito em questões casuísticas e anedóticas, mas mediáticas, que a oposição usa bem. A questão é que à falta de questões de fundo e com uma comunicação social muito limitada ao “caso” da semana, explorado ad nauseam, seja ou não importante, o Governo desgasta-se ao actuar ao ritmo dos jornais e televisões, ou, ainda pior, das chamadas “redes sociais”. A oposição ao Governo socialista, liderada pelo CDS, afina pelo mesmo estilo casuístico, com um método de actuação pobre, simples, mas que o PS tem permitido ser eficaz ao morder o isco todos os dias. O CDS cria ou explora todos os casos sem excepção, sempre com o mesmo método: o Governo diz que vai dar 20, o CDS reclama 50; o Governo diz que o prazo é seis meses, eles reivindicam de imediato três, ou “já”; o Governo diz que vai dinheiro para isto, o CDS diz que o dinheiro deve ser dado àquilo, ou deve ser mais, ou deve ser menos. Muito barulho, mas pouca substância, com um PSD acéfalo atrás.
O Presidente da República vai ser também um factor suplementar de instabilidade. O Governo vai olhar para o lado, aquiescer, concordar, dizer que não se importa, com o contínuo metadiscurso da governação que o Presidente faz. Mas o próprio desgaste desse discurso vai tentar o Presidente a dar-lhe mais acutilância, logo em suscitar a atenção, através de recados, inuendos, sugestões ou críticas veladas. Ocasionalmente fará críticas mais abertas, ou opor-se-á frontalmente, em particular se se tratar de um tema populista. Os momentos em que mais se aproximou do Governo já estão no passado, até porque o Presidente encontrou naquilo a que se chama os “afectos”, que de afectos tem pouco, uma fórmula de aumentar tanto a sua popularidade que ela lhe serve de poder em matérias em que constitucionalmente não se devia meter.
O Presidente, que é o zelador dos efeitos dos incêndios, que é o zelador das “regras europeias” (onde não tem tido muito que zelar), está  a preparar-se para ser o zelador de tudo aquilo que entende ser “eleitoralista”, o que claramente está longe de ser uma função presidencial, porque implica opções de conteúdo que são eminentemente governativas.

Não é por acaso que usei várias vezes neste artigo palavras como “usura”, “desgaste”, “cansaço”. Trata-se em todos os casos a velha regra de que, nada mudando, o “tempo come as coisas”, tempus edax rerum. É por isso que estamos encalhados, num país que não pode ter as políticas de que precisa, onde as forças políticas ou são subservientes ao exterior, ou olham apenas para o seu umbigo, onde todos os dias a qualidade da governação e da oposição é menor, onde aumenta o ruído em correlação directa com a diminuição da substância. É mau para os costumes e péssimo para o futuro, mas é o que é.

Pontos de vista em final de ano


Acabo um serão de prazer em torno de um vasto programa de dança clássica, na TV5, com a jovem bailarina envolvida nos seus trabalhos de prática do ballet, os mestres ensinando, sem mimo mas com competência e simpatia, uma jovem mortal que engravida e tem um filho, retomando meses depois a sua prática de bailarina, com “sangue, suor e lágrimas” e beleza, rematando com trechos musicais bastamente aplaudidos por plateias atentas, tais as de outros programas ricos, em espectáculo e diversão, que por lá se fazem. Logo pensei nos nossos programas televisivos diários, de diversão popular, fomentadores da gula, da laracha, do interesse – o que não é despiciendo, mas cansativo da parte dos animadores desses programas, repetindo à exaustão a sua “banha de cobra” a distribuir pelo afortunado do telemóvel que respondeu ao anúncio. Programas do bailarico, mostrando, de passagem, coisas da materialidade habitual - doenças, crimes do dia-a-dia, que informam sobre assuntos de importância, mas frustrantes nas suas limitações fofoqueiras ou paternalistas.
Mas não quis acabar o ano sem deixar de parte um rol de opiniões não só sobre o nosso país e os nossos patrícios, denunciando falhas ou percursos da política.
Um texto de António Barreto, (DN), sempre rico e claro de informação, sobre o problema de despovoamento e envelhecimento das populações, problema referido anteriormente, por Diogo Queiroz de Andrade, em diferente perspectiva, mas valorizando as tomadas de posição de algumas zonas do país, cujas universidades atraíram gente estrangeira, susceptível de se fixar por cá.
Da Página 42 do PÚBLICO, para guardar do ano denúncias graves, cito, pois, a EDITORIAL por D. Queiroz de Andrade, seguida de Cartas ao Director, que exploram sucintamente e com graça crítica, quer acontecimentos recentes sobre Tartufos criminosos de seitas impunes, quer opiniões públicas desconcertantes, sobre acontecimentos alheios, encarados segundo o interesse próprio que a hipocrisia dita.
E, como remate, emAs minhas Fotografiasde António Barreto, o texto explicativo sobre “O Claustro de D. João III” no Convento de Cristo, a necessitar de obras de restauro, mas, de preferência, a canalizar dinheiros em papelada apelativa de distinção, em ano de Património Cultural. O bla bla bla do costume, formal e mísero em solução, apesar de vários monumentos já terem sido reparados.

I- Criar raízes, fixar populações
António Barreto
DN, 31/12/17
Os desastres deste ano vieram actualizar um velho problema: o despovoamento, para uns, ou a desertificação, para outros, de grande parte do país. Não apenas do interior clássico, mas do interior social e económico que por vezes se aproxima a escassos quilómetros do litoral ou até que inclui muita praia do centro do país ou do Alentejo. Aliás, visto de São Petersburgo ou de Istambul, Portugal é todo litoral.
Por causa da violência dos fogos e do número de vítimas mortais, os incêndios do Verão e do Outono deixaram marca indelével no território, nos espíritos e na política. O governo reagiu mal, mas, justamente corrigido pelo Presidente da República, mexeu-se e tentou recuperar o tempo perdido.
Rapidamente se começou a discutir as grandes questões, o ordenamento florestal e do território, as funções do mercado, a criação de parques nacionais e o destino a dar às matas abandonadas. Prontamente se ouviram promessas, umas velhas, outras muito velhas. A grande demagogia regressou. Quase não há político que não fale das "raízes", não as das árvores, mas as das populações. Com o que se pretende "fixar populações", evitar as migrações, controlar a urbanização, trazer novas pessoas para "criar raízes" Chega facilmente a dizer-se que é necessário fazer que as pessoas "devam" (na versão despótica) ou "possam" (na versão liberal) ficar a viver onde nasceram e cresceram. São temas inúteis que rendem sempre qualquer coisa em comício ou à saída de jantar: "revitalizar o interior", "impedir o despovoamento" e "incentivar a natalidade". Ao que não falta "trazer empresas para o interior", "criar incentivos fiscais", "proteger a produção local", "criar emprego" e "encorajar o artesanato". Há 50 anos e agora. As intenções são tão boas que falta coragem para criticar o erro, a demagogia e a ilusão.
A verdade é que, para fixar populações, só se conhecem meios ditatoriais, já bem rodados na China, no Camboja e na União Soviética. Com centenas de milhares de vítimas. Ou milhões. Fixar populações ou é demagógico e não serve senão para tentar ganhar votos, ou implica retirar aos cidadãos algumas grandes liberdades que são as de movimento e de mudança de local de vida. Para fixar populações, é necessário talvez o planeamento integral da vida das pessoas.
Confundir despovoamento com abandono é uma das raízes do problema. Terras despovoadas podem ser economicamente úteis, desde que bem tratadas. Em muitos casos, é mesmo o contrário que se produz: gente a mais significa incêndio, desleixo e acidente. A decisão de viver na vila, na pequena cidade, na grande metrópole ou no estrangeiro não é sempre uma decisão de miseráveis e desprotegidos. A decisão de mudar é muitas vezes um passo para a promoção e a mobilidade, para melhorar e subir na vida. Viver nas cidades traz quase sempre vantagens para a educação, a saúde, o emprego, a cultura, o casamento, a justiça e o conforto. Em poucas palavras, a liberdade é urbana. Em grande medida, o progresso também. Já se conhecem em Portugal centenas de agricultores que vivem na cidade e trabalham no campo. Felizmente que ninguém se lembrou de os fixar.
Evitar o abandono? Sim. Impedir a degradação do meio? Sim. Aproveitar os recursos sem os destruir? Sim. Fixar as populações? Não. Mas sim ao estímulo e à remoção de obstáculos. Assim como evitar que sejam as autoridades as primeiras a acelerar o abandono. Destruir instituições pode ser fatal. É o que tem feito o Estado, de esquerda ou de direita, para poupar pouco a fim de gastar muito. Não faltam exemplos por todo o país: escolas, centros de saúde, repartições, bancos, centros de emprego e da segurança social, centros de formação, esquadras de polícia, quartéis da GNR, regimentos militares, lares de terceira idade, serviços florestais, parques nacionais, áreas protegidas, serviços de conservação da fauna Houve decisões racionais? Talvez. Mas também as houve insensatas e de curtos horizontes.
Manter instituições pode ser muito mais barato, democrático e livre do que acudir depois a subsidiar causas perdidas. Áreas despovoadas podem não ser abandonadas. Áreas despovoadas podem ser ricas e aproveitadas.

As minhas fotografias - Claustro de D. João III, Convento de Cristo, Tomar
O convento é uma obra maior de vários estilos: gótico, manuelino, renascentista, maneirista.  Com obras-primas como o Claustro Grande e a Charola. Deixaram lá o nome o Infante D. Henrique, D. Manuel I, D. João III, D. Filipe I e os arquitectos Diogo de Arruda, João Castilho e Diogo de Torralva. Ali perto, o Aqueduto dos Pegões, a Ermida da Nossa Senhora da Conceição e a Sinagoga são obras de excepção a merecer toda a atenção neste Ano Europeu do Património Cultural que amanhã se inicia. Os textos portugueses e europeus relativos a este programa são recheados de lugares-comuns. Coesão. Diversidade. Riqueza. Diálogo intercultural. Patamar de visibilidade. Desafios. Oportunidades. Interesse transversal. Sustentabilidade. Está lá tudo. Uma parte dos recursos será gasta em gabinetes e publicidade. Numa palavra: eventos! Mas uma parte bem mais importante poderia ser gasta com operações simples (o que não quer dizer fáceis): tratar das coberturas dos monumentos, tirar a erva dos telhados, limpar as pedras, preservar a estatuária, restaurar esculturas, vitrais e pinturas. Conservar, cuidar. Era bom que fossem estas as iniciativas do Ano do Património! 


II- EDITORIAL
Trazer imigrantes para ganhar cidadãos
Com a crise financeira os imigrantes deixaram de aparecer. Agora, graças aos estabelecimentos de ensino e a empregos sazonais, estão a regressar.

Diogo Queiroz de Andrade
Público, 26 de Dezembro de 2017
O envelhecimento do país é particularmente sentido no interior, onde o cenário é dantesco: com as políticas de centralização a agravarem a falta de crianças, temos na prática metade do país a morrer aos poucos. Podemos fazer muita campanha em defesa do “vá para fora cá dentro”, mas não há políticas activas de fixação de populações no interior que possam fugir a uma palavra: emprego.
Para fixar populações, sejam elas imigrantes ou nacionais, é preciso que exista trabalho que as sustente. Com Lisboa e Porto a entrarem numa espiral de custos que prejudicam especialmente os jovens profissionais, outras capitais de distrito ganham apelo e interesse – até porque em várias cidades a qualidade de vida já pede meças à da capital. Mas sem emprego nada irá acontecer a não ser a criação de periferias mal reguladas, que colocam mais pressão sobre as maiores cidades e pioram o nosso índice médio de felicidade.
O trabalho de jornalismo de dados que hoje publicamos demonstra bem o impacto que políticas sensatas podem ter na aquisição de cidadãos. Exemplos como o de Bragança, que está a aumentar a população imigrante graças ao bom trabalho do Politécnico, são retemperadores. Que Bragança tenha uma das ruas mais cosmopolitas de Portugal é uma bela bofetada no suposto internacionalismo de Lisboa e Porto, onde muitos imigrantes representam mais problemas que soluções – exactamente ao contrário do que se passa no interior. Também há bons exemplos em Aveiro ou na Covilhã, casos em que as respectivas universidades se têm assumido internacionalmente e trabalham activamente na aquisição de alunos estrangeiros.
É certo que os estudantes equivalem a populações móveis e cíclicas, mas a boa gestão pode ajudar a que o ciclo se renove. Populações estudantis crescentes equivalem a clientes para bens e serviços, que acabam por ajudar a criar empregos e a fixar famílias nestas regiões. Se a isto se juntarem políticas que ajudem licenciados a ficar na região, com empregos, será meio caminho andado para diminuir o maior problema estrutural do país.
E, já que o estado central há décadas que nada faz nada para contrariar a desertificação do interior do país – estimulando até a concentração no litoral – resta pouco às regiões para agir no sentido de renovar populações. O nosso problema é tão grave que não serão os imigrantes a resolvê-lo, mas podem ser eles a evitar que algumas cidades morram. Ao menos isso

OPINIÃO
III - Cartas ao director
26 de Dezembro de 2017

Os vendilhões do tempo
Emanuel Caetano, de Ermesinde
Graças às privatizações e à abertura do capital de empresas públicas portuguesas ao exterior, vimos estrangeiros a apropriarem-se de firmas nacionais, mas o que nunca tínhamos visto era forasteiros a apoderarem-se de crianças através de adopções ilegais! Dizem que é uma igreja, eu digo que é uma seita que exige um dízimo mensal aos seus crentes. Dizem-se bispos e pastores com curas milagrosas mas eu só vejo um conjunto de empresários religiosos com influência política e que tem um império de comunicação.
À boleia destes alegados raptos, já era hora do Governo português impedir que estes vendilhões do templo comercializem a fé e desmascarasse o poder sobrenatural que engana os ignorantes e fragilizados.  

Curiosidades luso-catalãs
José A. Rodrigues, Vila Nova de Gaia
Ao que parece, a Catalunha está dividida em duas partes. Cada uma delas é atravessada transversalmente pelos espectros políticos habituais, a esquerda e a direita. Contudo, em Portugal, constato que todos os meus amigos de direita são adeptos do soberanismo espanhol, e que todos os meus amigos de esquerda se inclinam para, ao menos, reconhecerem o direito de expressão aos independentistas. O conjunto de todas essas pessoas é demasiadamente exíguo para poder servir de amostra em qualquer sondagem, e é possível que a conclusão a tirar possa estar enviesada. Mas que é um facto curioso, é! Ou talvez não…

Desigualdade de critérios
 Jorge Morais, Porto
Em Novembro de 2016 após a aprovação dos resultados das eleições nos Estados Unidos da América, onde Donald Trump apesar de ter tido menos votos que Hillary Clinton, saiu vencedor já que as regras assim o impõem, seja quem for o vencedor. De imediato, por lá e pasme-se, também por cá, logo se passou à discussão se aquela regra devia ser ou não respeitada.
Por vontade dos nossos politólogos, analistas, comentadores, políticos, mesas redondas, redes sociais, etc., Donald Trump jamais tinha legalidade para tomar posse. A 21 de Dezembro de 2017, nas eleições realizadas em Espanha na Comunidade autónoma espanhola da Catalunha saiu vencedor o bloco independentista, apesar do bloco unionista/neutral ter tido mais votos.
Claro que sabendo do que a casa gasta, jamais me passou pela cabeça que os mesmos viriam defender aquilo que defenderam nas eleições presidenciais dos Estados Unidos da América. Mas afinal que espécie de gente é esta? Eu disse gente? Gente não é, certamente a gente de bem não se comporta assim.



sábado, 30 de dezembro de 2017

Água mole


Alberto Gonçalves faz o balanço / Do ano, segundo o seu plano, / Claro, sintético, infernal / Em liberdade total / De um pensamento sem peias / Sem tréguas ou sem cadeias / Como nunca se viu / Em Portugal. / Bom representante, afinal, / Do mestre de antigamente / Que segundo se dizia / Usava a férula valente / Como meio de alargar / O saber / Nas cabeças dos discípulos / Resistentes, renitentes. / Mas a férula do articulista / É a férula dum artista / Extremamente analista / Sem medo de assim o ser, / E de receber de volta, / A par dos dados de apreço, / Outros de descortesia / De grosseria aviltante / Daqueles que se rebelam / Por não quererem encaixar / As verdades contundentes / Estridentes / De um realismo total, / Sobre um país marginal / E as suas gentes / Incompetentes / Com as excepções do costume. / É pena / Que a férula não nos valha.

2017, ano saboroso
OBSERVADOR, 30/12/2017
Na Autoeuropa já prometeram outras greves e é certo que não descansarão enquanto os direitos dos trabalhadores não forem devidamente acautelados e os trabalhadores acabarem na fila do desemprego.
Janeiro
Embora os pantomineiros do costume finjam ter visto o povo nas homenagens fúnebres a Mário Soares, a verdade é que as ditas suscitaram sobretudo indiferença. Os motivos serão diversos, mas é inegável que o dr. Soares da liberdade e da democracia fora vítima do dr. Soares antiocidental e “caudilhista” dos últimos anos, longos e humilhantes. O original falecera há muito, e ninguém o avisou. O povo, pelos vistos, estava avisado.
Fevereiro
Em países aborrecidos, as trapalhadas do governo em volta da CGD e do seu novo, e momentâneo, presidente levariam a demissões sumárias. Aqui, levaram o dr. Centeno a explicar-se nas televisões. “Explicar-se” é, claro, força de expressão, que os tremores do homem não deixaram perceber em pleno as frases sem nexo com que tentou brindar-nos. O prestígio internacional do dr. Centeno talvez tenha começado nesse instante. Por cá, a oligarquia reduziu a farsa da CGD a “tricas”, destinadas a esconder os “verdadeiros problemas dos portugueses”. Não há nada a esconder: por regra, os verdadeiros problemas dos portugueses são as criaturas que falam nos “verdadeiros problemas dos portugueses”.
Março
O país oficial indignou-se com a fuga de 10 mil milhões para “off-shores”, uma notícia requentada do “Público” que, apesar de imaginária ou em última instância irrelevante, procurava mostrar a vileza do governo de Pedro Passos Coelho. Quase em simultâneo, o país oficial não se indignou com a Grande Fome ucraniana de 1932-33, cuja condenação no Parlamento foi rejeitada com a abstenção do PS e a rejeição dos dois partidos comunistas. Salva-se a coerência “colectivista”, que prefere ver 40 milhões de pessoas sofrerem às mãos do Estado do que permitir que meia dúzia se livre dele.
Abril
Uma avioneta caiu em Cascais e foi o pretexto (como se fosse preciso um) para o prof. Marcelo irromper no local da queda e em todas as reportagens alusivas. Para a TVI, o prof. Marcelo evitou o pânico. Para o prof. Marcelo, podia ter sido muito pior. Podia, sim senhor: caso o prof. Marcelo estivesse retido numa sessão de “selfies” em Valença do Minho, os cascalenses ficariam desorientados e propensos a lançar-se à Boca do Inferno em quantidades consideráveis. Assim, só houve cinco mortos, no mínimo motivo de celebrações colectivas. E imensos afectos.
Maio
Portugal, Portugal em peso, ganhou o festival da Eurovisão, “certame” de avassalador gabarito. Após décadas de tentativas, mostrámos enfim que somos os maiores ou, pelo menos, tão bons quanto os melhores, leia-se o Azerbaijão, a Sérvia, a Estónia, a Letónia, o Mónaco, o Luxemburgo, a Grécia, a Turquia, etc.
Junho
Incêndios florestais arrasaram Pedrógão Grande e parte dos concelhos vizinhos. Sempre oportuno, às primeiras notícias o prof. Marcelo assegurou que fora feito tudo o que era possível. O dr. Costa, uma ministra macambúzia e um secretário de Estado disseram coisas ainda mais tranquilizadoras. No final, contaram-se, pelos vistos por baixo, 64 mortos, o 16º pior evento do género na História e o terceiro neste século. Para os poderes públicos, foi igual a nada, ou uma dispensável chatice que os obrigou a trabalhos para apurar quem se queimava (sem trocadilho) menos com o assunto. Pouco dado a trabalhar, o dr. Costa partiu para a praia.
Julho
O país viu-se informado de que desapareceu uma resma de armamento da base militar de Tancos. Mas o ministro da Defesa fez questão de acrescentar, primeiro, que o roubo não foi dos maiores de sempre na Europa. Depois, que o roubo se calhar nem aconteceu. Por fim, que o material roubado apareceu quase impecável. O mal destas notícias é chegarem a ser notícia. Felizmente, as chefias da Protecção Civil, rigorosamente escolhidas entre os melhores amigos do dr. Costa, proibiram os bombeiros de opinar sobre os incêndios. Ao esclarecer que “a informação devidamente organizada e estruturada é uma mais-valia para todos”, o dr. Costa exibiu relativa familiaridade com a “teoria da imprensa” de Lenine e maior familiaridade com o “Público”, o “DN”, a RTP, a TVI e a SIC. Essa história da liberdade é uma falácia burguesa.
Agosto
A xenofobia é má? Depende. Se for dedicada àqueles que, nem sei bem porquê, passeiam em férias por este abençoado país, é altamente recomendada. Em Agosto, os portugueses que, a julgar pelo Instagram, fazem turismo em praias exóticas ou outros lugares paradisíacos, não deixam de se sentar ao computador, a lastimar os estrangeiros que fazem turismo no Porto e em Lisboa, no Douro e nos Algarves. É uma actividade como qualquer outra, com a vantagem de despertar a atenção dos poderes centrais, locais e adicionais, todos empenhados em dificultar a entrada de incautos em Portugal ou, no mínimo, infernizar-lhes a estadia. Sujeito a incontáveis taxas e taxinhas, para não falar das greves dos transportes, do preço dos combustíveis e das restantes alegrias da vida lusitana, o turista fica a perceber o que os guias apenas prometem: a realidade indígena. Fica também vacinado.
Setembro
Os avanços civilizacionais continuam. Após o respectivo sindicato ser tomado pelo PCP, os funcionários da Autoeuropa entraram em greve, coisa nunca vista por ali. Entretanto, já prometeram outras greves e é certo que não descansarão enquanto os direitos dos trabalhadores não forem devidamente acautelados e os trabalhadores acabarem na fila do desemprego. O socialismo não se constrói sem umas dorzinhas pelo meio – e um sofrimento lancinante no fim. Parece absurdo, mas é absurdo.
Outubro
Por inúmeras causas, que inúmeros especialistas descrevem na televisão, metade do país voltou a arder. Desta vez, a quantidade de mortos não passou dos 45, insignificância que, somada aos 64 de Junho, serviu para demitir uma ministra. Por este irresponsável andar, não tarda que 200 cidadãos carbonizados demitam dois ministros, 300 baixas casuais demitam três ministros, 500 ocorrências a lamentar demitam um terço do governo e 1000 infelicidades provoquem – o diabo seja cego, surdo e mudo – a demissão do próprio dr. Costa. Não admira que Nádia Piazza, a mulher que perdeu o filho em Pedrógão Grande e, estranhamente, não ficou radiante, seja insultada com regularidade por certo PS: os danos colaterais não podem comprometer a felicidade da pátria.
Novembro
A saída de Pedro Passos Coelho foi uma alegria e um alívio para a frente de esquerda, para os comentadores de “direita” que votam no PS e, aparentemente, para a “direita” propriamente dita. Num ápice, o PSD arranjou dois candidatos à sucessão. Por coincidência, ambos parecem mais empenhados em demarcar-se do antecessor do que do dr. Costa. Ninguém quer carregar a fama de “neoliberal”. Mas não seria mau que, um dia, nos tocasse um bocadinho do proveito.
Dezembro
Em competição renhida com um luxemburguês, um eslovaco e uma letã, o importantíssimo dr. Centeno alcançou a importantíssima chefia do importantíssimo Eurogrupo. Numa notícia não relacionada, a dívida pública manteve-se em níveis impecáveis. Noutra notícia não relacionada, todos os partidos, excepto o CDS, aprovaram a isenção do IVA para os seus negócios. Numa terceira notícia igualmente solta, a autarquia da capital investiu 57 mil euros em cartolinhas para o Ano Novo. Uma última notícia avulsa: o Ano Novo tresanda a velho.





Figuras nacionais


Que haja figuras de realce no panorama social português - e tais são também as que se elevam pelo saber ou pela nobreza de opinião.
É o caso de José Pacheco Pereira, analista brilhante de uma sociedade de trapaça generalizada que vamos condenando na efervescência de uma indignação que a par e passo explode em novos exemplos comprovativos da ausência de princípios em que flutuamos. 
Quanto a João Miguel Tavares, autor do segundo texto, é exemplo que se destaca, pelo desportivismo e argúcia interpretativa orientadora da opinião pública, numa crítica sadia de jovem bem formado, merecedor da nossa gratidão. Exemplificando essa faceta de jovem alegremente positivo, o texto – de final de ano - que segue o brilhante artigo pessimista de José Pacheco Pereira - realçando dados positivos de que ainda nos podemos orgulhar, como esse dos jornais PÚBLICO e OBSERVADOR, de que aponta a importância de um jornalismo isento e livre.
Eis, pois, duas figuras, entre tantas, afinal, que são elementos dignos de formadores de opinião que se destacam no nosso apreço, e nos permitem júbilos de esperança, apesar do pessimismo.

OPINIÃO
A sopa envenenada
Como se comportamentos deste género não fossem o retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética colectiva.
José Pacheco Pereira
Público, 16 de Dezembro de 2017
Este artigo não é sobre as “raríssimas”; ou seja, sobre o caso da associação com esse nome. Este artigo é sobre as vulgaríssimas; ou seja, sobre aquilo que este caso revela sobre a nossa sociedade, sobre os nossos comportamentos, sobre o modo como os media e os seus consumidores estão impregnados da sopa envenenada que é hoje a chamada “opinião pública”. O caso em si é fácil de descrever: numa instituição de solidariedade social, com obra reconhecida como meritória (podia não ser), a sua responsável (e certamente vários dos seus colaboradores, incluindo os “whistleblowers”, como é costume) abusou da sua situação para obter vantagens materiais, viver à custa dos dinheiros “solidários”, ter luxos, e empregar a família e amigos. À sua volta, uma rede de cumplicidades, envolvendo o poder político, e membros do Governo ou ajudaram a causa, sem cuidados, ou participaram no festim. Nalguns casos pode ter havido crimes, noutros comportamentos eticamente reprováveis. A instituição vivia encostada ao Estado (como quase tudo em Portugal) e recebia apoios da sociedade civil, parece que com alguma eficácia.
Uma reportagem da TVI denunciou o caso, os abusos e as cumplicidades. Fê-lo com equilíbrio e com matéria probatória sólida, incluindo depoimentos, emails e alguns filmes, uns feitos às escondidas, outros às claras. Do ponto de vista da deontologia jornalística, a única coisa que podia suscitar dúvidas eram os filmes que foram fornecidos juntamente com as outras denúncias por gente de “dentro”. Não é incomum no jornalismo de investigação este tipo de técnicas e há doutrina estabelecida sobre as regras a seguir. Neste caso, no documentário original, tudo o que lá está é mais do que justificado pelo interesse público da denúncia de um caso de claro abuso desta natureza. Na sequência deste documentário original seguiram-se as linhas de investigação e escrutínio, jornalístico e público, obrigatórias: a senhora foi afastada das suas funções, o membro do Governo envolvido demitiu-se (e se não se tivesse demitido devia ter sido demitido de imediato) e prossegue o trabalho de esclarecer se existem outras responsabilidades no Governo, quer por acção quer por omissão. A realidade tem mostrado que os membros do Governo e os outros políticos envolvidos não estão a sair-se muito bem das explicações que têm de dar. Esta parte está ainda em curso e deve ser inteiramente esclarecida, assim como os inquéritos judiciais e investigações por quem de direito.
Nada disto é incomum, é até muito vulgar, e consideravelmente consentido quando dentro de portas, e quando ou se esconde bem a mão, ou quando se distribui alguma coisa do bodo colectivo e “comem todos”. Até um dia. Nesse dia vai lá tudo deitar pedras, como se não se soubesse de nada, ou, um pouco por todo o lado, como se comportamentos deste género não fossem o retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética colectiva, em parte porque somos ainda uma sociedade muito pobre, ou em que parte das pessoas saiu ainda há pouco tempo da pobreza, onde nunca na burocracia imperaram critérios de mérito, mas a cunha ou o patrocinato, onde esquemas de todo o tipo são tão comuns, no Estado, na política, nas empresas, nos bombeiros, nas casas paroquiais, nas escolas, nos quartéis, nos centros de saúde, um pouco por todo o lado. Talvez com menos gravidade, nem sendo muitas vezes crimes mas apenas abusos, mas com tanta trivialidade que não os vemos como culposos.
Significa isso que os portugueses não são honrados? Não, significa que são pobres, ou ainda que têm uma memória viva da pobreza, não sentem a coisa pública como sendo de todos, e sabem que, para empregar um filho, obter um papel na câmara, evitar pagar o IVA, passar à frente de uma fila, há um sistema de favores implantado que vive da complacência de quem se aproveita e da inveja de quem ficou de fora. E isto é de uma ponta à outra da sociedade. Desde os offshores “legais” ao planeamento fiscal, às compras para as cantinas, das empresas que fazem brindes para as campanhas eleitorais, até aos amigos e as empresas que arranjam sempre ser contratados sem concurso público, até ao autarca que “rouba mas faz” e a quem os mesmos que exorcizam a corrupção em cada palavra que dizem, afinal, votam.
Isto é corrupção, mas não só. É o retrato de uma sociedade disfuncional, muito desigual, onde quem tem acesso ao poder de gerir, ou de comprar, ou de vender, o faz quase sempre numa rede de amizades e cumplicidades, com proveito mútuo, e tão habitual que não merece condenação social. Até um dia, em que a complacência se substitui pela inveja. Nesse dia entra em cena aquilo a que chamei “a sopa envenenada”. Antes era a mesa de café onde quem estava à mesa era de uma honestidade férrea (até ao momento em que saía da mesa) e à volta, a começar pela mesa vizinha, era tudo ladrões, corruptos e desonestos. Agora a mesa de café é planetária e é nas sarjetas das redes sociais, onde o mesmo insuportável espírito domina os comentários e as entradas no Facebook. E é para esse público que hoje está o caso das “raríssimas”,
agora investigado já não pelas regras jornalísticas, mas pelas da exploração demagógica e populista, pela exibição do pior que há nos seres humanos, da inveja social, da calúnia, do ressentimento, do bater nos que estão em baixo, e mesmo outro tipo de comportamentos pouco recomendáveis.
E o assunto está hoje assim nos media formais e informais: desequilibrado, com um overkill desproporcionado à gravidade dos factos e com violações sérias da privacidade das pessoas. Se é relevante que a pessoa A tivesse uma relação íntima com a pessoa B, isso pode ser dito com a obrigação da proporcionalidade e do respeito pela privacidade. Para se dar uma informação relevante não é preciso ter um exibicionismo voyeurista, que é uma coisa de outra natureza. Já para não falar de alguma elegância — tão bizarra palavra nos nossos dias —, mas também a noção de que humilhar e amesquinhar as pessoas coloca quem o faz no mesmo plano da senhora culpada destes abusos.
Acresce que o facto de a principal culpada dos desmandos ser uma mulher não é irrelevante. Pior ainda é uma mulher “insuportável”, arrogante, atractiva e muito senhora de si para parecer um perigo para os homens e para as mulheres que no fundo temem as mulheres deste tipo, ou pura e simplesmente temem as mulheres como se fossem amazonas. O sexismo facilitou e muito o incêndio dos comentários e há uma espécie de exorcismo contra a sedução implícita. Se não querem ouvir as sereias, coloquem cera nos ouvidos e não fiquem babados a ver a televisão e a vociferar de inveja, de todas as invejas.
É por isto que quase tudo para além do caso das “raríssimas” é muito mais triste do que as gambas e o BMW, quer pelo que está antes e a gente faz de conta que não vê, quer pelo que está depois em que a gente faz de conta que vê demais.

OPINIÂO
Duas boas notícias
Não há democracia saudável sem bom jornalismo. Espero, também aqui, que 2018 continue a seguir as excelentes pisadas de 2017.
João Miguel Tavares
Público, 29 de Dezembro de 2017
Quem escreve nos jornais costuma ser dado a discursos pessimistas, mas sendo esta uma época festiva proponho olhar para as más notícias de uma perspectiva positiva, usando dois exemplos emblemáticos que vão com certeza marcar 2018: a confusão instalada na Catalunha e a sucessão de casos grandes e pequenos que têm fustigado o Governo e que certamente se irão intensificar com a aproximação das legislativas de 2019.
Ninguém pode adivinhar o que vai acontecer na Catalunha em 2018, mas há algo que me tem surpreendido: a total ausência de violência no meio de uma situação caótica. Aqui há 20 ou 30 anos seria impensável que um impasse político desta dimensão, envolvendo partes extremadas e discursos nacionalistas, não descambasse nalguma forma de violência — ainda para mais na sanguínea Espanha. Há algo de novo nesta coabitação de radicalismo com pacifismo que merece ser celebrado e que espero que se mantenha em 2018.  
Na vertente nacional, queria elogiar a qualidade do escrutínio jornalístico dos últimos meses. No meio de um discurso catastrófico sobre o futuro do jornalismo esquecemo-nos de ver o que de bom está a acontecer à nossa volta: uma nova dinâmica introduzida por projectos online como o Observador ou o Eco; a necessidade de meios tradicionais como o PÚBLICO ou o Expresso responderem a esse desafio; a revalorização das reportagens de investigação na TVI e na SIC. Não há democracia saudável sem bom jornalismo. Espero, também aqui, que 2018 continue a seguir as excelentes pisadas de 2017.



sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Aldeia nossa


Não global. Nossa. / Aldeia de afectos, de certezas, / Aldeia de espertezas, de vilezas, / Aldeia de competências / Urdindo manigâncias, / Aldeia de pesquisadores / Atentos e observadores, / Tais Bagão Félix, / Tais tantos mais / Artistas, / Articulistas, / Sensíveis e sofredores / Nos desmandos dos comandos / Nas pieguices dos avisos / Desses  repórteres convictos, / Do alto de um púlpito / De trapalhões peregrinos / Num jornalismo sem tino / Com avisos pequeninos / Pequeninos, pobrezinhos, / Aconselhando em doçura / De bondade e de ternura / Bons paizinhos, /Causando vómitos amargos / Em decepção e tortura, / Aos filhinhos, / Tratados como atrasados. / Cada vez mais afastados / Dos Vieiras oradores / Ou dos outros escritores / Que escreviam com nexo / Em requintes de saber / Para gente, afinal, / Mais normal, / Capaz de compreender / Os requintes da retórica / Sem as baboseiras em ais / De jornalistas / Em circulação nos jornais / Como se fosse em quintais. / Os tais / Que Bagão Félix ironiza. / Desgostoso. / Enjoado. / Sensível. / Conhecedor. / Bom ledor. / Um senhor.
Iº Texto: É fartar, camaradagem!
Público, 28 de Dezembro de 2017     António Bagão Félix
Entre o Advento e a Epifania, há festa. Não só na “aldeia”, mas, este ano, também no Parlamento, com os partidos a fazerem de colectivo de Reis Magos, oferecendo-se uns aos outros não mirra, nem incenso, mas generosas e endogâmicas leis.
Para tal, mãos à obra e, de mansinho e caladinhos, em jeito de Consoada plenária, os partidos aprovaram legislação vertida em quase 80 páginas, alterando quatro importantes leis orgânicas relativas ao seu financiamento, contas e controlo.
Partindo da necessidade de alteração processual para acautelar o princípio da separação de poderes sobre o controlo das suas contas e financiamento, os partidos aproveitaram a onda para legislar em proveito próprio, num estilo de desbragadas permutas de favores distintos, mas complementares. Um consenso alargado (embora não unânime, honra seja feita ao CDS) que todos dispensaríamos.
Começo por dizer que abomino a vertigem não democrática e anti-partidária que, nestas ocasiões, incendeia designadamente as redes sociais. Mas, uma coisa é certa: os partidos têm de se dar ao respeito dos portugueses e ser eticamente exemplares, a única forma de terem autoridade democrática. Tal exige transparência de processos, sentido de equidade entre eleitores e eleitos, qualidade da representatividade democrática.
Neste texto, concentro-me apenas nas mudanças do IVA. Os partidos que, há pouco tempo, aprovaram sofregamente mudanças que obrigam os trabalhadores independentes a arranjar facturas e facturinhas sob pena de pagarem mais IRS, são os mesmos que agora se geringonçaram para cozinhar a restituição do IVA pago para toda e qualquer sua despesa e, ao que parece, com efeitos retroactivos. Um café consumido numa qualquer sede partidária, uma refeição no restaurante por conta do partido, o combustível dos automóveis ao serviço seja de quem for e para o que for, etc. são patrioticamente exonerados deste encargo fiscal, quem sabe se por terem uma natureza superior que não têm o café, o almoço ou o combustível de qualquer cidadão contribuinte.
Até percebo como, no actual regime, era complicado, fantasioso e vulnerável à fraude distinguir a devolução do IVA na “aquisição e transmissão de bens e serviços que visem difundir a sua (dos partidos) mensagem política ou identidade própria, através de quaisquer suportes, impressos, audiovisuais ou multimédia” da não devolução no referente à actividade corrente partidária. Mas, vai daí, o que decidiram os parlamentares: a uniformização e maximização do benefício fiscal que passa a incidir sobre a “totalidade de aquisições de bens e serviços para a sua actividade”. Esta situação agrava, ainda, a inconstitucionalidade de tratar desigualmente candidaturas eleitorais apartidárias, a nível presidencial e local, que não têm IVA devolvido.
Ao contrário de qualquer contribuinte, os partidos juntam agora a isenção total do IVA às do IMI e IMT, imposto do selo, imposto automóvel, taxas de justiça e custas judiciais. Aliás eu nunca percebi porque é que quem tem o poder de fixar impostos – o parlamento (no taxation without representation) – tem a prerrogativa de se isentar dos mesmos.
Entretanto, “descoberta” a esperteza, choveram comunicados dos partidos que aprovaram a lei, com o desplante de até dizerem que desta “não resultam quaisquer encargos públicos adicionais para com os partidos políticos”. Então o não recebimento pelo Estado do IVA não tem o mesmo efeito nas contas públicas?! E eis que a esquerda verte lágrimas de crocodilo e proclama ter votado … sem concordar. Poupem-nos a estas tristezas!
A esperança para que tudo não venha a passar de uma tentativa abortada está agora nas mãos do Presidente da República.
2º Texto: A palavra de 2017 (onde falta … turismo)
Público, 5 de Dezembro de 2017           António Bagão Félix
Está a terminar o período da eleição da “palavra do ano”, iniciativa da Porto Editora desde 2009.
As dez palavras escolhidas para este ano foram afecto, cativação, crescimento, desertificação, floresta, gentrificação, incêndios, independentista, peregrino e vencedor. Acho que deveria ter estado na lista uma outra: turismo. Por razões óbvias e que são anteriores à escolha de Portugal, Lisboa e Madeira como os melhores locais de turismo no Mundo.
As palavras seleccionadas são comuns, se exceptuarmos gentrificação. Este vocábulo (mais um neologismo anglo-saxónico) é apresentado como exprimindo um “processo de transformação e valorização imobiliária de uma zona urbana, que acarreta a substituição do tecido socioeconómico existente (geralmente constituído por populações envelhecidas e com pouco poder de compra, comércio tradicional, etc.) por outro mais abastado e sem condutas de pertença ao lugar” (Infopédia, Porto Editora). Sem dúvida, um fenómeno contemporâneo que, em Portugal, é já notório em Lisboa em bairros populares.
Se exceptuarmos afecto que foi constante em 2017 graças à acção do Presidente da República, nota-se, como aliás em todos os anos, uma escolha que recai mais sobre palavras da segunda metade do ano e que desfavorece outros vocábulos com presença e significado mais fortes no seu início, mas que mergulham na sombra do esquecimento. Ainda aqui a lei do tempo e a desvalorização da correnteza da memória.
Das 10 palavras há 4 notoriamente políticas e económicas: cativação, nem sempre cativante (há quem cative sem afecto…); desertificação, dita para aquilo que não é desertificação, mas sim despovoamentocrescimento, que não é necessariamente o mesmo que desenvolvimentoindependentista, a única de pendor internacional. A importância do que se passou por Portugal é dada pela escolha de três palavras que, em boa verdade, são os vértices de um mesmo dramático triângulo (incêndios, desertificação e floresta). A tecnologia não teve, desta vez, o seu habitual quinhão, apesar do endeusamento algo quixotesco da Web Summit (recordo, nos últimos anos, drone, selfie), assim como a saúde ou falta dela (recordo microcefalia, legionela e ébola). Restam uma, de matiz mais religiosa (peregrino) que bem poderia também ter sido Fátima e uma mais mundana (vencedor), associada à vitória portuguesa na Eurovisão. Por falar em vencedor (que me perdoem, os não benfiquistas), falta o, simultaneamente prefixo e nome, tetra.
Ao invés de anos anteriores, as palavras submetidas á votação (exceptuando gentrificação) são velhinhas e simples. Desta vez não há cibervadiagem, gamificação, entroikado, vuvuzela, swap e outras que tais, que qual cometas, tão rapidamente surgiram, como logo se esvaneceram. Como diria Churchill, “palavras breves são as melhores e as palavras velhas, quando breves, são as melhores de todas”.
Ah, claro não podia faltar um vocábulo com grafia acordista. Desta vez, alterando a própria raiz etimológica da palavra. Refiro-me ao absurdo modo de escrever afecto sem c, assim se afastando de affectio (latim), affetto (italiano), affection (francês e até inglês) e afecto (castelhano). Originalidades nossas…
Em que palavra votei? Floresta. O meu palpite para o vencedor? Incêndios. Ou, se calhar, afecto, mesmo que sem c.
P.S. A mesma iniciativa em língua inglesa promovida por Oxford Dictionaries já foi anunciada. Trata-se de youthquake, um neologismo curioso que, partindo de earthquake(terramoto), lhe associa youth (juventude), significando uma “mudança cultural, política ou social desencadeada por acções ou influência de jovens”.

3º Texto - O frio, esse desconhecido
Público, 21 de Dezembro de 2017     António Bagão Félix
Estamos finalmente no Inverno-criança, depois do solstício de ontem, 21 de Dezembro. À míngua de chuva, mostra-se-nos o frio. Relativo, pois dez a catorze graus centígrados em Lisboa a meio do dia é uma incipiente amostra de frio, mesmo por cá. E noutras zonas do país, mais frias, também já não é como há décadas.
O frio não é apenas o contrário do calor, mas também o modo de procurar não o ter. Neste aspecto, o frio é mais meu amigo porque me dá a possibilidade de com ele saber conviver ou de o afastar. Ao contrário do calor, para o qual – insuficiência minha – não sou capaz de encontrar o antídoto eficaz para além do agressivo ar condicionado.
Vem isto tudo a propósito, ou talvez não, da apoplexia meteorológica por causa de uns graus Celsius a menos. Sempre pensei que o frio (e a chuva) fizessem parte dos Invernos, como o calor faz do Verão. Mas agora parece que não. Passou-se para a moda dos “alertas” de várias cores, amarelo, laranja e encarnado, sempre proclamados com voz vibrante. Não há um santo dia que, agora, não se sinalize com um qualquer aviso amarelo, senão mesmo laranja, porque está frio ou vai chover. Não imagino sequer a cor do frio em Moscovo, Berlim ou Toronto, certamente muito para além do mais retinto vermelhão.
Tudo por causa da anormalidade da normalidade. Alertas por haver frio no Inverno são tão despropositados, quanto inúteis. Entrevistam-se respeitáveis técnicos de meteorologia do agora arrebicadamente designado Instituto Português do Mar e da Atmosfera (curioso o Marestar antes da Atmosfera, mesmo que no interior do país!) e guarnece-se a “notícia” com um banal anticiclone ou uma habitual superfície frontal. E, claro está, tudo culmina com pessoas entrevistadas nas ruas, através de perguntas que envergonhariam o Senhor de la Palice e de óbvias respostas.
Toda esta excitação invernal culmina com as declarações dos serviços de saúde, que não param de nos dar conselhos a toda a hora. Fico pasmado, confesso. Não porque os evidentes aconselhamentos não sejam correctos, mas porque, no fim de contas, há um retrocesso ao considerarem-se as pessoas comuns como indigentes ou seres meteorologicamente atrasados.
Vejamos alguns desses doutos avisos, textualmente: 1) proteger-se do frio; 2) vestir várias camadas de roupa quente; 3) agasalhar-se quando se está na rua; 4) manter o corpo quente, através do uso de luvas, cachecol, gorro/chapéu, calçado e roupa quente; 5) tomar bebidas quentes (creio que não alcoólicas); 6) ingerir líquidos e sopas para manter o corpo hidratado; 7) no exterior, ter cuidado com situações de queda; 8) manter as casas quentes; 9) verificar se os equipamentos de aquecimento estão em condições de ser usados; 10) trocar informações e conselhos com amigos e vizinhos e manter-se em contacto com eles; 11) vedar bem as portas e as janelas; 12) em caso de chuva, ter à mão um chapéu-de-chuva e usar calçado adequado… etc., etc.
Não que desconsidere – bem pelo contrário – tudo o que seja a prevenção de doenças. Mas todos estas “achegas” quase partem do princípio que as pessoas são acéfalas e incapazes de se orientar com uns pingos de chuva ou uma temperatura absolutamente normal para a época.
Enfim, conselhos que estão para as pessoas, como as conferências de imprensa antes dos jogos de futebol estão para a inutilidade da palavra.

Mas atenção, caro leitor. Não se esqueça que está no Inverno. À cautela – se for distraído – ponha um alerta no seu telemóvel a dizer-lhe que pode chover e, pior do que isso, que pode fazer frio. E atenção não se esqueça dos cremes para sobreviver (sic) ao frio, como já li algures.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A Cruz


Sim. Maria João Avillez não recua no seu posicionamento reaccionário contra um status de valorização absurda do ego governativo que tudo leva de escantilhão no seu folclore forjador de mitos, coisa a que de há muito, afinal, nos habituáramos, na nossa fragilidade espiritual de competitividade essencialmente clubística, salientada em águias, leões ou dragões, para só citar os principais. Um folclore que, deslizando num sibilino discurso ora de ataque aos executores governamentais precedentes, ora de auto elevação na execução de medidas atamancadas em termos astuciosos de autopromoção, pela sua aparência de êxito, mas escondendo os sinuosos  remendos de composição enganadora, vai mergulhando o povo numa quase idolatria de adesão eleitoralista previsível. (O que é um facto, é que António Costa está livre das visitas frequentes dos lúgubres visitantes da Troika, a que o governo anterior estava sujeito, beneficiando, pois, de uma situação menos aperreada, como ele deveria reconhecer, pese embora a sua sujeição ao grupo dançarino que o ajudou a usurpar o seu governo, e que ele vai igualmente enganando, conforme as necessidades de momento).
Mas Maria João Avillez, naturalmente, não se deixa enganar, que não pertence ao rebanho domado por um big brother inquietante e sem escrúpulos, e o seu texto de altivez e elegância descritiva, explorando de início, sem receio de prováveis ironias, o cumprimento tradicional dos preceitos católicos, na quadra natalícia, pelo seu clã seguidor de regras, mais uma vez define o mundo inquietante que nos rodeia, centrando-se, como motivo preocupante acima de todos, no tal novo código de conduta tolhedor da liberdade real, desmentindo os preceitos de libertação igualitária que presidiram à revolução socialista anterior.
E transcrevo, como remate, a sua diatribe tão brilhantemente expressa: «Falo de uma sulfúrica espécie de mal, insidioso veio que tem vindo a corroer valores, razões morais, comportamentos, convicções, de uso e prática nesse ocidental lugar de onde vimos e somos (mas parece que agora já não nos deixam ser), substituídos por um Novo Código de Conduta, baseado em desqualificados mandamentos. E como tal aí esta hoje uma atenta, vigilante e policial guarda pretoriana, o Novo Código numa mão, na outra, denúncias, nomes e medidas censórias de aplicação imediata. Excesso e perseguição sobre fundo de impostura.»
Novo código de conduta
OBSERVADOR, 26/12/2017
Escasseiam-me os instrumentos para navegar na irracionalidade do que aí está, nos mandamentos politicamente correctos do “como” pensar, na perseguição/denúncia de tudo o que não é conforme ao figurino.
1. Era quase meia noite e chovia. Íamos a entrar no Santuário do Senhor da Pedra, para a missa do Galo. Natal fora de portas, as muralhas do Castelo de Óbidos ali mesmo, debruadas de mil fios brilhantes, cintilando na noite fria, o eco do coro ensaiando dentro da igreja, gente chegando das redondezas. Subitamente apercebi-me de como era verdadeira, real, concretíssima, aquela harmonia entre todos os que ali estávamos, uma terna cumplicidade, uma mudez quase comovida, sentimento de pertença na convicção comprometida com o recado do Presépio.
Mais tarde, os ciprestes, a palmeira, as camélias e esse inconfundível silêncio do campo, deram-nos as boas vindas quando as várias gerações da nossa tribo aportaram ao calor aconchegante da casa, para a consoada.
E foi então que olhando aquele milagroso pequeno-grande quadro familiar, por uns brevíssimos ilusórios momentos, o mundo e a vida pareceram-me mais que perfeitos.
2. Alguma gente que estimo reteve o adjectivo com que na passada semana abordei o Natal de 2017: “inquieto”. E não é? O breve apontamento natalício que descrevi, em nada desmente a consciência da inquietação porque as palavras acima não são desligáveis da sua efémera natureza: um momento de luz, que iria esmorecendo, apagado pelo estado das coisas.
Olhe-se à roda, o difícil é captar qual a mais inquietante, qual a que nos capturará decisivamente, a que nos extinguirá como produtos de uma civilização que ao consenti-las tão abulicamente se desmembra, fragiliza e nos fragiliza a nós. Não falo só da guerra (também falo); de lideranças políticas loucas ou miseráveis; da desordem internacional, das ameaças, do medo, pão nosso quotidiano. Nem sequer da galopante desigualdade, cada vez mais voraz.
Falo de uma sulfúrica espécie de mal, insidioso veio que tem vindo a corroer valores, razões morais, comportamentos, convicções, de uso e prática nesse ocidental lugar de onde vimos e somos (mas parece que agora já não nos deixam ser), substituídos por um Novo Código de Conduta, baseado em desqualificados mandamentos. E como tal aí esta hoje uma atenta, vigilante e policial guarda pretoriana, o Novo Código numa mão, na outra, denúncias, nomes e medidas censórias de aplicação imediata. Excesso e perseguição sobre fundo de impostura. (Sobre isto mesmo, leia-se aqui no Observador o último texto de Helena Matos)
Escasseiam-me os instrumentos de bordo para navegar na irracionalidade a que nos obrigam; para me formatar segundo esta nova geometria politicamente correcta do “como” pensar; arrepia-me a voragem da perseguição/queixa a tudo o que não esteja conforme aos novos usos e costumes. Pelos vistos tão pacificamente aceites e militantemente praticados pela generalidade (?) das elites intelectuais, culturais, científicas, do mundo livre.
Veja-se o puro gozo que conduz as acusações/perseguições relativas ao assédio sexual, que por vezes quase lembram processos nazis pela implacabilidade com que irrompem, sentenças de morte sem julgamento. Ou atenda-se ao actual questionamento — imbecil e inteiramente descontextualizado — de algumas telas ou pinturas, obras de arte universais cujo traço ou mensagem “colide” com as alíneas do Novo Código para captar a demencialidade desta cruzada feroz de incalculáveis e maléficas consequências. Triste sorte.
Dir-se-á que a civilização ocidental já conheceu pior e não soçobrou, que o valor da liberdade tem-lhe sido guia e farol e que de tudo tem renascido. É verdade. Sucede que conheço tais más sortes dos livros de História ou de as ter estudado enquanto aqui — e a diferença é forte — sou testemunha pessoal. Observadora directa e inquieta.
Não é bonito o que vejo.
Cada vez olho mais para nós como um sonâmbulo navio que devagarinho se vai afastando da costa para lado nenhum.
3. Já uma vez aqui deixei este bocadinho de poesia em estado quimicamente puro. Escreveu-o há anos e anos um tio com queda para cantar as palavras. Mas de tão belo, quase prosaico na simplicidade do seu contar poético, lembrei-me dele outra vez este ano e fui buscá-lo à gaveta do computador.
Boas Festas:
Quando o Menino Jesus fez cinco anos
Encheram-lhe a caminha de presentes.
Os seus vizinhos e os seus parentes
Vieram muito honrados, muito ufanos,
Presentear Jesus, que lhes sorria…
Chegou primeiro sua avó Sant’Ana,
Com uma gaiola e uma cotovia.
Zacarias, sem falar, pois não podia,
Deu-lhe uma flauta, que Ele fez de cana.
Santa Isabel,
Que costurava quase todo o dia,
Deu-lhe um lindo vestido de burel.
S. João, filho de Zebedeu,
Trouxe-lhe um cordeirinho igual ao seu
E umas romãs, de rubicundos bagos.
E vieram lembranças dos Reis Magos…
(Um ano antes, Jesus teve uma birra
Porque tornaram a mandar-lhe mirra,
Porque voltaram a mandar-lhe incenso,
O que o Menino Jesus achou esquisito…)
E então mandaram tâmaras do Egipto,
De que o Menino Jesus gostava imenso!
Seu Pai, e sua Mãe, Nossa Senhora,
Tinham feito os seus planos.
E numa caixa de madeira loura
Tinham metido, com o maior desvelo,
O seu presente de anos:
Um serrote de dentes muito finos,
Alicate, martelo,
E uma dúzia de pregos pequeninos.
E quando lhe entregaram o presente,
O Menino Jesus deu pulos de contente!
A ideia, claro, foi de S. José,
O melhor carpinteiro em Nazaré.
Ao fim da tarde, terminada a festa
Do Natal de Jesus,
Quando a Senhora acendia a luz
E S. José dormia a sesta,
Foi acordado por barulho enorme.
“Mas então o Menino ‘inda dorme?
Que está ele a fazer?
Maria vai tu ver…”
Mas a Virgem, com um sorriso brando,
Disse-lhe: “Deixa-o lá…Está trabalhando.
Quer fazer-nos talvez uma surpresa,
A consertar, - quem sabe? - o pé da mesa
Que tu ontem partiste na cozinha…”
E o Menino Jesus, candeia acesa,
Martelava com quanta força tinha…
Todas as tardes era a mesma cena: -
S. José dormia a sesta vespertina;
A Virgem Intrigada, mas serena;
E um martelar sem fim na oficina…
Até que um dia… S. José quis ver.
Disse a Maria: “É tempo de saber
O que o Menino há tantos dias faz…
Francamente, não sei…
Que pode ele fazer, não me dirás,
Com dois ou três sarrafos que eu lhe dei?
Vamos espiar, a ver o que será…
Achas feio espreitar?
Pois vai-te tu deitar,
Que eu levo esta candeia e volto já…”
E assim fez. Pé ante pé,
Tapando a luz da lâmpada co’a mão,
Afastou-se da Virgem S. José…
Silencioso, tal como um ladrão…

Da oficina vinha estranha luz…
Empurrou a porta, mansamente.
Hesitou…  Abriu-a, finalmente.
E S. José ficou petrificado,
Os olhos muito abertos, transtornado…
O Menino Jesus
Tinha feito uma cruz!

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Temas de meditação


As três “Cartas ao Director” do Público de 19 de Dezembro focam temas de extrema relevância:  
- A de Manuel Gomes Fernandes (Lisboa) sobre a participação do poder político na Iniciativa Privada;
- A de Carlos Anjos (Lisboa), sobre o conceito da liberdade de voto e a sua aplicação, no caso da eutanásia, inseridos no “artigo 155 da Constituição”, e a decisão dos concorrentes à presidência do PSD, relativamente a esse problema.
- A de Ademar Costa, (Póvoa de Varzim) sobre a indiferença do mundo relativamente ao povo rohingya, minoria étnica muçulmana estabelecida na Birmânia (actual Myanmar), em fuga para o Bangladesh, perseguida pelas autoridades birmanesas, que não lhes reconhecem nacionalidade birmanesa.

As três me parecem justas – o Estado tem o dever de apoiar as iniciativas privadas, servindo igualmente de controlador exigente de disciplina moral, para evitar os casos de fuga e corrupção, tão frequentes por cá; o esclarecimento sobre as opiniões ambíguas e idênticas dos candidatos do PSD, no caso da eutanásia, reafirma um comportamento de pusilanimidade de tais candidatos relativamente a um problema que contraria uma opinião julgo que maioritariamente avessa a essa, e esse facto vem demonstrar a falta de seriedade de ambos, essencialmente ávidos de penacho e glória e de ambição de permanecerem como figuras acompanhantes do progresso libertador do preconceito. Quanto ao problema da perseguição ao povo rohingya, parece-me bastante justo que o mundo se preocupe. Mas o mundo é indiferente, quando está longe das questões passadas do lado de lá dos oceanos, os povos mais ricos do lado de cá chegam até a fornecer os meios para tais destruições, como se viu e vê também nas Áfricas, para de seguida se apressarem com a ajuda alimentar e médica, curativa das dores e criadora de mitos de solidariedade.


OPINIÃO
Cartas ao director
19 de dezembro de 2017

Iniciativa privada
O processo do desenvolvimento humano assenta na indissociável trilogia dos conceitos de comunidade, de economia e de política, considerados integrados, em que a economia é representativa de todos os direitos e de todas as obrigações individuais e sociais de todas as pessoas de cada comunidade, na medida das necessidades e capacidades específicas de cada uma, que compete ao poder político assegurar.
Nesse sentido, compete ao poder político motivar e apoiar, tanto quanto possível, o espírito empreendedor, criativo e criador da iniciativa privada possível, mas compete-lhe, também, como responsável pelas finalidades da economia, designadamente, a garantia de uma constante situação de pleno emprego e o máximo aproveitamento dos recursos naturais disponíveis, intervindo em quaisquer sectores de actividade para esse efeito.
É preciso acabar com o falso slogan de que não compete ao poder político intervir na actividade económica, uma vez que a sua finalidade consiste, precisamente, em assegurar os referidos direitos e obrigações, ou seja, as finalidades da economia. A economia de qualquer país terá de assentar na iniciativa privada possivel, motivada e apoiada pelo poder político, bem como no poder político complementar.
Manuel Gomes Alexandre, Lisboa


O artigo 155 da Constituição
Os dois candidatos à liderança do PSD garantem que em caso de votação sobre a eutanásia darão liberdade de votos aos seus deputados. Esquecem eles e esquecem todos que o artigo 155 da Constituição portuguesa já garante essa liberdade de voto, pelo que é a restrição dessa liberdade que vai contra a Constituição.
Já Paula Teixeira da Cruz foi vitima de processo disciplinar no PSD por não ter respeitado a disciplina de voto e agora é Ascenso Simões do PS a ser alvo de medida semelhante, apesar de o actual Presidente da República dizer dia sim, dia não que vai fazer cumprir a Constituição, conforme é sua obrigação jurada.
Mas como nem o actual presidente da República nem os seus antecessores alguma vez contrariaram as inconstitucionalidades cometidas pelos partidos nesta matéria, julgo que seria mais saudável alterar o artigo 155 da Constituição que passaria a rezar assim: “Sendo os deputados eleitos em listas partidárias não têm valor por si mesmos, mas apenas o valor que o Partido tem nas mesas de voto. Assim, os deputados, salvo indicação expressa em contrário dos partidos a que pertencem, não votarão segundo a sua livre consciência, mas segundo as ordens da direcção do Partido.”
Passaríamos a viver constitucionalmente e não à margem desse documento fundamental.
Carlos Anjos, Lisboa

Salvem os rohingya
Não há ONU ou UE que valha ao povo rohingya. A minoria muçulmana mais perseguida no mundo continua a ser massacrada sem que o mundo mexa uma palha. As palavras do Papa, na recente viagem a Myanmar e Bangladesh, não chegam para salvar os rohingya do terror e da morte. A oração silenciosa pelos refugiados rohingya devia ser ensurdecedora.
Ademar Costa, Póvoa de Varzim